Um Escritor na Biblioteca: Milton Hatoum

Milton

O autor do romance Dois irmãos descobriu a literatura em uma biblioteca de língua francesa e teve em Raduan Nassar o primeiro leitor de seu livro de estreia. O escritor contou essas e outras histórias a um auditório lotado na última edição do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2011





Milton Hatoum nasceu em Manaus, em de agosto de 1952. É arquiteto de formação, mas a literatura sempre esteve no centro de sua vida. Hatoum deu aulas de literatura na Universidade Federal do Amazonas e na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Autor do livro de contos A cidade ilhada (2009), o escritor ganhou notoriedade com os romances Relato de um certo oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) e Órfãos do eldorado (2008), todos publicados pela Companhia das Letras. Os três primeiros foram premiados com o Jabuti. Cinzas do norte ganhou os prêmios Portugal Telecom, APCA e Bravo!. Sua obra já foi traduzida para diversos idiomas e está publicada nos Estados Unidos e na Europa.

Com a publicação do romance Dois irmãos, Hatoum se tornou um dos escritores mais importantes da literatura contemporânea. O livro arrebatou a crítica e caiu nas graças dos leitores, feito raro na literatura nacional. O romance também tem sido lido por leitores mais jovens, incentivados por professores, que frequentemente adotam o romance de Hatoum para trabalhar em sala de aula.

“Estou ficando com medo de Dois irmãos, porque é muito lido. Então penso: será que é de fato um livro que tem alguma qualidade? Quando se atinge um público muito grande, é de desconfiar”, diz o escritor, que esteve na última edição do projeto “Um Escritor na Biblioteca” em 2011. O autor também comentou o papel social do escritor, dizendo que “cada escritor tem a sua voz e a sua preocupação ética, moral, ou ideológica. Por isso, não me omito. A palavra omissão, desconheço”.

No bate-papo, Hatoum também falou sobre o seu próximo romance (O lugar mais sombrio, com previsão de lançamento para 2012), a biblioteca de língua francesa que conheceu ainda menino e que foi a porta de entrada para que passasse a se interessar por literatura, e seu método de escrita “flaubertiano”, em que as construções são de fato pensadas e refletidas. “Mesmo sabendo que depois muita coisa é imprevisível e vem do inesperado”.

Confira os melhores momentos da conversa, mediada pelo diretor teatral Flávio Stein.


Relação com as bibliotecas

A primeira biblioteca que tive contato foi, na verdade, de língua e literatura francesa. Minha mãe tinha a mania de me colocar para aprender línguas estrangeiras e, em Manaus, nos anos 1960, havia famílias de ingleses, franceses e alemães, que eram remanescentes do período áureo da borracha. De modo que ela quase me obrigou a estudar outras línguas. E essa obrigação depois virou prazer. Estudei francês com uma senhora muito simpática chamada Liberalina, esposa do cônsul da França em Manaus, uns 70 anos mais velha do que eu. Uma senhora muito elegante, simpática, altiva, que conhecia muita coisa da literatura francesa. Quando vi essa biblioteca fabulosa, muitos livros editados no século XIX, fiquei de fato extasiado. E foi nessa casa, e com essa professora, que era uma espécie de deusa tutelar, que li pela primeira vez textos originais, em francês, que era uma língua falada pela minha avó libanesa — que, por coincidência, tem o mesmo nome, Emilie, do personagem do meu primeiro romance, só para enganar leitores ingênuos.

Colégio

Também foi importante a biblioteca do meu colégio público, onde cursei o ginásio, o Colégio Estadual do Amazonas, antigo Ginásio Amazonense Pedro II. Havia também uma pequena biblioteca na minha casa, notadamente, a coleção de Machado de Assis, o Tesouro da juventude e a Barsa, que foram importantes nessa minha primeira juventude vivida em Manaus, antes do meu autoexílio, que durou mais de 15 anos.

Futuro das bibliotecas

Em todo lugar que morei, frequentei bibliotecas: Manaus, depois Brasília, São Paulo, Santos, na Europa. A biblioteca é um lugar democrático do saber, do conhecimento, na medida em que os livros transmitem saber, conhecimento, permitem viagens imaginárias. Eu não sei qual será o futuro da biblioteca, e muito menos o futuro da literatura, por causa da tecnologia. Outro dia, um escritor americano afirmou que a tecnologia ia acabar com a literatura (se não me engano, foi o Philip Roth). Eu também não tenho certeza disso. Não sou tão pessimista nem catastrófico quanto ao destino da literatura. Acho que todas as tecnologias são válidas e todos os suportes são irreversíveis, já existem. Só espero que um texto de Kafka não seja diferente num ipad, ipod, não sei o quê. Que Kafka seja sempre Kafka, independente do suporte. Sou um cultor de livros, e não sei se não sou o último dinossauro a gostar dos livros.

milton
Arte da imensa minoria


A literatura sempre foi uma arte da imensa minoria, como diria o poeta espanhol Juan Ramón Jiménez. Embora alguns escritores tenham escrito romances que foram lidos por milhões e milhões de pessoas, são exceções. O espaço da literatura é um espaço mais íntimo. Segundo Borges, a leitura é mais civilizada do que a escrita, o leitor é mais civilizado do que o escritor, porque o leitor não se atormenta como o escritor — ele lê, imagina e constrói o seu livro. Esse lugar muito civilizado é também o lugar da solidão. Isso tem a ver com a origem do romance, dos grandes temas romanescos do século XVIII, o Robinson Crusoé, os romances ingleses, franceses. É também a solidão do leitor. A solidão do escritor, quer dizer: é um espelhamento mútuo: o leitor também é um solitário que lê. Escreve e reescreve o romance que está lendo.

Aumento de leitores

Aumentou o número de leitores dos meus livros. Mas graças a vocês, professores, e pessoas que me convidam a falar sobre literatura. Eu tive um susto com Dois irmãos, que alcançou um público grande de leitores, e depois com Cinzas do norte, menos pelos prêmios (pois acho que os prêmios não aumentam o número de leitores) e mais pelos leitores. O leitor que faz o livro, que participa diretamente da carreira, da história do livro. Aumentou também graças aos professores também, que trabalharam com os meus romances e contos em sala de aula. Não sei até quando serão lidos, também não estou muito interessado nesse tempo da leitura, mas o fato é que eu achei que todos os livros seriam um encalhe fenomenal. Relato de um certo oriente achei que ia ser lido só pela minha família e por alguns amigos.

Narrador versus autor

Acredito que a literatura seja uma forma de conhecimento e uma maneira de sair do seu lugar. A literatura sempre fala do outro, de um outro exterior, mas também fala da complexidade do ser humano. Todo o conhecimento ou a verdade que a literatura busca, não tem a ver com uma verdade ontológica, filosófica ou epistemológica, é uma verdade que fala muito do que é o ser humano. Da experiência humana, que pode ser a experiência do autor, mas pode ser também, e é muitas vezes, a experiência do narrador. Fica difícil, às vezes, imaginar que o narrador seja diferente do autor, mas podem acreditar, não são as mesmas pessoas. Não há gêmeos na minha família. E eu não sou o Nael, não sou o Lavo, não sou essa mulher do primeiro romance (evidente), mas alguma coisa de mim está neles, ou eles estão dentro de mim. E há um momento em que esta simbiose é tão forte que você não se separa do narrador. Essa é a pergunta eterna da literatura, e é uma pergunta sem resposta. Não adianta você buscar, separar, que nem o encontro das águas, na minha cidade, do Rio Solimões e do Rio Negro, que eles se encontram, mas continuam separados. Você não sabe até que ponto a experiência do narrador e dos personagens é a experiência do autor. Há uma dosagem — às vezes é uma experiência maior ou menor que você transforma em linguagem, mas na medida em que você transforma em linguagem, você está criando e inventando outra coisa, e dando possibilidade a vários tipos de leitura.

Formação do leitor

É difícil formar leitor. Essa formação não passa necessariamente pela academia, por um curso de Letras, mas pela formação do leitor em sua casa ou escola. Daí a importância da escola pública de qualidade. Milhões de crianças e jovens não tem acesso a bons livros e a um bom ensino público. Então, há uma verdadeira segregação na sociedade brasileira. Há escolas públicas boas, mas não são muitas. E a minha geração é uma espécie de elo perdido entre aquela escola pública razoável dos anos 1960, que era uma promessa de escola pública democrática, de qualidade, e o que veio depois, que foi totalmente desmontado pelo regime militar, inclusive pelo senhor Jarbas Passarinhos, que de passarinho não tem nada, assinou ato institucional e está ainda cantando de galo, foi ministro da Educação. Então, é difícil formar leitores, como é difícil formar também um grande matemático, um grande intelectual, é mais fácil ver um filme sobre Guerra e paz, porque a literatura exige um esforço constante, ininterrupto, em cada página você se depara com situações, eventos, conflitos, descrições, diálogos, uma espécie de aluvião de coisas que acontecem. Se for um livro complexo, você tem que redobrar essa atenção, não pode se dispersar, não pode ler um livro e ver o jogo do Flamengo, você tem que se isolar do mundo e entrar nesse outro mundo com a alma e com o pensamento, concentrado naquele momento que constrói um mundo paralelo ao seu. Isso é difícil.

Trabalho de memória
 
O título do meu próximo livro é O lugar mais sombrio. O lugar mais sombrio é essa ruptura com o passado. Nos meus romances, se há um centro, um eixo mais ou menos secreto que se desvela para o leitor em algum momento, é a memória. Esse movimento da memória, e daquilo que não foi possível dizer. Porque nem tudo é possível ser contado. Mas o que pode ser contado é também um trabalho da memória e da imaginação. A grande literatura trabalha com isso. Grande sertão: veredas é um trabalho da memória, do grande jagunço que rememora sua vida pregressa, suas histórias proibidas e transgressoras de amor, as batalhas, toda a vida no centro-norte de Minas durante algumas décadas. Toda a obra de Proust segue no sentido de construir pela memória inventiva o passado da família, dos personagens. Qualquer grande obra tem a memória como uma espécie de quase irmã siamesa da imaginação.

Autobiografia e ficção

Não acredito em autobiografia. Há mentira disseminada em toda autobiografia. Como há verdades disseminadas no romance. Qual é a dose de mentira e verdade numa e noutra? Ninguém pode dizer. O melhor é ler sem elucubrar, sem ficar atrás de uma forma detetivesca do que é verdade e do que é mentira. Quem será esse cara, será que a irmã dele é isso, será que a mulher dele que está ali? Aí você enlouquece, porque há leitores loucos também. Convivi com leitores bastante pirados que afirmavam coisas que me deixavam perplexo, depois melancólico e finalmente em estado de total prostração. Diziam muitas coisas a respeito da minha obra. Como se quisessem provar alguma coisa que só estava na cabeça dele ou dela.

Dicção da literatura

Na voz de um narrador, de um personagem, há uma dicção e um tom que são coisas difíceis de encontrar num romance ou num conto. Qual é o tom dessa voz? Há um lado muito teatral, quase cênico, dessa voz quando ela sai das páginas do livro e é lida. Isso tem a ver também com a tradição da leitura no ocidente e no oriente. No mundo árabe, por exemplo, onde o romance é um gênero menor, digamos assim — a grande literatura no mundo árabe é a poesia — há uma tradição da voz, que vem dos recitais de poemas. Os próprios romances no século XIX eram lidos em voz alta. Às vezes os escritores pediam para que os amigos, ou às vezes eles mesmos, lessem trechos dos romances para sentir a dicção, o registro da voz. Eu acho maravilhoso. Quando Dois irmãos foi encenado, em São Paulo, me emocionei. O teatro é a presença física, do momento, do instante, dos personagens no palco. Foi encenado pelo Luiz Damasceno, que é um bom autor. Quando Halim morria, você percebia na plateia aquele silêncio que passava por uma emoção muito forte. O teatro tem esse poder de tornar presente àquilo que você só imagina ao ler um romance. Mas são atores maravilhosos, acho que uma boa leitura é sempre interessante.

Primeiras leituras

Li os livros fundamentais da minha juventude em Manaus, alguns romances do Graciliano Ramos, Jorge Amado, Érico Veríssimo. Nos primeiros, não tive nenhum problema porque eu estava diante de uma professora apaixonada. Acho que ela era uma viúva espiritual do Graciliano. Era tanta paixão! A leitura, quando é apaixonada, transfere isso para o jovem. Mas obrigar os jovens a ler coisas muito pesadas hoje é complicado. É um desserviço à literatura. Tem que atrair o leitor jovem para um texto de qualidade, mas que ele se entusiasme por esse texto. Não sei qual é esse texto. Eu lembro que os contos que li do Machado foram todos maravilhosos e ainda bem que comecei pelos contos. Se eu tivesse começado pelos romances, certamente não teria gostado do Machado, porque é de uma complexidade enorme: meio filosofante, com aquela galhofa com o leitor. Mas os contos são maravilhosos. Para os jovens, eu digo aos professores, trabalhe com os contos do Machado. Se entrar com José de Alencar, ou com uma literatura muito densa, não vai dar certo. Pelo menos, para um jovem que não tem o hábito de leitura.

Relato de um certo oriente

A ideia era construir um personagem por meio de outras vozes, foi inspirado em alguns romances da Virginia Woolf, que eu lia muito na época. Eu era relativamente jovem e quis construir alguns personagens pelas vozes dos outros, montar esse quebra-cabeça do Relato de um certo oriente com vozes alternadas, dando versões diferentes a certas situações e lances do passado. No caso da Emilie, foi uma personagem construída pelos outros, pela memória dos outros. O esforço de construir esse romance tentando desfocar a voz do narrador, a identidade de cada narrador, me deu trabalho, foi como montar um quebra-cabeça — o que duas editoras europeias fizeram o favor de desmontar, porque colocaram no capítulo o nome de cada narrador, e eu passei anos tentando construir isso. Mas isso foi totalmente deliberado, não foi um lance do acaso. Há menos acaso do que se imagina quando se escreve um romance, ao menos no meu caso, pois sou flaubertiano e tenho uma verdadeira paixão pelo cálculo, pela matemática, pela arquitetura da obra. Aprecio algumas construções que são de fato pensadas e refletidas. Mesmo sabendo que depois muita coisa é imprevisível e vem do inesperado.

Leitura entre jovens
Eu poupo os jovens dessa obrigação [ler seus livros]. Nunca indiquei nenhum livro meu, nem para os jovens nem para os velhos. Mas os professores indicam, com muita frequência, até nos vestibulares. Muitos devem ter odiado, mas a maioria gostou e demonstrou isso, mandou e-mail, mensagens, mas também não sei até que ponto gostaram. O fato é que eu posso falar mais de um livro que tem um público maior: o Dois irmãos, que foi muito adotado nos vestibulares e escolas. Até hoje vou às escolas em São Paulo. Não aguento mais falar sobre Dois irmãos. Ontem eu falei [no evento Conversa entre Amigos, realizado em 05 de dezembro] durante algum tempo. Nunca falo dos meus livros quando estou numa universidade, ou numa escola, prefiro falar de outros livros. Mas às vezes eu tenho que falar dos meus livros, e é uma coisa um pouco constrangedora. Prefiro falar das dificuldades de escrever e da perplexidade de quando você escreve um livro. É uma viagem longa, que envolve muita coisa do seu tempo, dos seus conflitos interiores, da sua visão de mundo. Não sei exatamente o que os jovens pensam. A resposta que eu tenho, quando vou às escolas, é animadora para mim. Mas não sei se isso me deixa muito contente, eu que sou pessimista em vários assuntos. Mas é um prazer saber que os jovens estão lendo.

Função social do escritor

Bom, na literatura, quanto menos explicar, melhor. Melhor ainda é não explicar nada. O mais importante é você compreender os personagens do que julgá-los. Se julgá-los, você está partindo de um pressuposto ético do autor. Muitos leitores passam por cima do narrador. Acham que aquela posição moral, aquele sentido moral que está no personagem pertence ao autor, quando na verdade pertence ao personagem, e tem que entender isso no romance: como essa moralidade existe, como ela muda com o tempo, qual a relação dele com os outros personagens.

Regime militar

Sou de uma geração que atuou contra o regime militar. Enfim, fui estudante da FAU/USP, participei do movimento estudantil, não me arrependo, em São Paulo — eu ouço tantos arrependidos por aí. O que houve foi um terrorismo de Estado. Havia uma democracia neste país e a democracia foi interrompida brutalmente, bruscamente. Participei do movimento estudantil como milhares de jovens brasileiros participaram. Felizmente, não entrei em nenhum grupo clandestino, nenhum partido, talvez por uma lucidez ou intuição naquele momento. Se eu tivesse entrado, talvez não estivesse aqui falando com vocês. Mas acho que hoje, diante de desmoronamentos de tantos sonhos — pertenço também a uma geração de desiludidos, Cinzas do norte é sobre a desilusão —, não perdi a esperança de lutar e ver um mundo melhor. Quando posso, falo das injustiças, das desigualdades, da desfaçatez de tantos políticos, das tenebrosas transações, como disse Chico Buarque numa música belíssima. Agora, cada escritor tem a sua voz e a sua preocupação ética, moral ou ideológica. Não me omito. Desconheço a palavra omissão. Também não tenho nenhum problema em criticar a direita, que por si só eu já tiro como desprezível e nefasta, nem esquerda, quando deve ser criticada. A minha posição é quase de um franco atirador solitário, que paga um preço por isso. Não tenho partido. Traduzi um livro do palestino-americano Edward Said, que se chama Representações do intelectual. Ele fala que a posição do intelectual é de um outsider. Ele está fora, não está dentro de um sistema, ou de um partido, ele tem que criticar, com lucidez, as injustiças sociais, guerras, invasões. É isso que acontece. Não calo diante das direções.

Publicação de iniciantes

O [Manuel] Bandeira pagou a primeira edição do seu livro. Imagina, um poeta como Manuel Bandeira. No caso da poesia, é muito mais complicado porque há poucos leitores de poesia. Sobretudo de um jovem poeta. Eu acho que se você de fato acredita naquilo que escreveu, não vejo nenhum problema em bancar a edição do seu livro, nem que seja uma edição pequena, depois mandá-lo a alguns amigos, críticos e jornalistas. Acho que um bom livro, cedo ou tarde, vai ser divulgado e lido. Nos anos 1980, fui à casa do Raduan Nassar, autor de Lavoura arcaica, um clássico da literatura brasileira contemporânea, e na garagem havia pilhas e pilhas da primeira edição de Lavoura arcaica. Eu perguntei o que ele ia fazer com aquilo. Ele disse que ia dar ou jogar fora porque ninguém tinha lido o livro dele. Poucos tinham lido um dos maiores romances brasileiro, certamente um dos maiores da literatura contemporânea. Depois, quando a Companhia das Letras republicou e o livro foi adaptado para o cinema, os leitores e críticos começaram a se interessar, o livro alcançou um público grande de leitores. Então, foram necessários uns 20 anos para que Lavoura arcaica tivesse alguma repercussão. E o Raduan, para minha sorte, leu os manuscritos do Relato de um certo oriente. Depois, leu o manuscrito de Dois irmãos. E deu opiniões valiosas, sobretudo sobre Dois irmãos, que foram talvez decisivas para reescrever o livro.

Estreia
O Raduan e outros amigos, que não são escritores, mas que são bons leitores, leram meus primeiros manuscritos. E a história da edição do Relato de um certo oriente é longa. Demorou anos para ser publicado. Eu estava em Manaus, no meu autoexílio, dando aulas, exilado na própria pátria, como dizia o Euclides [da Cunha], e aí um editor do Rio me ligou, mandei o livro, que me disse que iria publicar, que havia gostado, etc. Sei que acabou não publicando. Isso demorou anos, até sair pela Companhia das Letras, em 1989. Mas não sou do tipo ansioso. Eu olhava para aquilo e pensava “ah, o que é um livro?, deixa pra lá”. Um dia foi publicado. Quando ganhou o Jabuti, eu estava em Manaus e o pessoal do prêmio me ligou para eu ir receber o Jabuti. Eu disse que iria, mas que precisava que eles me enviassem a passagem, porque eu era professor e não poderia pagar. Então me disseram que não iriam mandar a passagem. Não fui ao prêmio.

Método de escrita

Preciso ter a estrutura [do livro] na minha cabeça. Preciso ter ideias mais ou menos claras quanto à estrutura dessa ficção. Até algumas personagens, quem vai narrar, tudo isso é anterior à escrita. Se isso não estiver elaborado na minha cabeça, não começo a escrever, sinto que não estou preparado. Por isso demoro tanto para sentar e escrever. E depois demoro a escrever também. Nunca escrevi como se fosse um jorro, como faziam os escritores do Noveau Roman francês, que não tinham plano nenhum: tudo mentira, não acredito em nada disso. Os escritores mentem muito também. Eles criam uma mitologia pessoal, de como trabalham, criam fetiches incríveis. Não tem nada disso: você vai lá e escreve. Eu não preciso nem de computador para escrever, quer dizer, eu preciso apenas estruturar essas ideias. Mas, como dizia o Zola, um romance não é feito de ideias, é feito de palavras. E o problema é transformar as ideias em palavras, e depois as palavras bem escritas também não bastam, o problema é costurar todas as situações, cenas, paisagens e conflitos num todo orgânico. Para deixar, lá em baixo, o centro secreto do romance. Tudo isso envolve questões técnicas, que vão além do escrever bem. Mas vou um pouco além disso. Faço esboços contínuos do que vou escrever: e nisso eu guardo uma relação muito próxima com o meu duplo frustrado, que é o arquiteto que não fui. Como ainda tenho noções básicas de desenho, representação, espaço e perspectiva, faço as casas dos romances. Uma tradutora alemã do Relato de um certo oriente e do Dois irmãos pediu para eu enviar o desenho da casa desses romances. Fiz com um prazer imenso, cada detalhe e tal.

Incentivo à literatura

A minha preocupação maior é com a educação pública, porque a cultura depende da educação pública. E aí, a gente volta para o ensino público de qualidade, para as deficiências do ensino público, para o salário vergonhoso, obsceno, dos professores do ensino público, para as condições materiais das escolas, para a falta de segurança em algumas escolas. Tanta coisa que está envolvida na qualidade do ensino que eu acho até um luxo pensar na cultura quando a nossa educação pública é tão precária. Acho que deve existir uma política cultural, como todo país tem. O futuro do país depende disso, que deveria ser uma obsessão do povo brasileiro. Bem, já que os políticos não querem, o povo brasileiro deveria se manifestar. Deveria ir às ruas reivindicar educação e saúde de qualidade. Cidadania é isso. Não é por acaso que a Alemanha tem o maior número de leitores na Europa, é um dos países em que mais se lê. Por quê? Vá ver as condições das escolas alemães.

Leitura entre a classe média

O brasileiro de classe média está preocupado em ir para Miami gastar dinheiro. Não tem problema nenhum. Mas você pode ir para Miami e ler O coração das trevas no caminho. Falei isso para minha tia, para ela levar um livro quando fosse lá. Aliás, o Alejo Carpentier, escritor cubano, dizia que a classe média da América Latina não está nem um pouco preocupada com a leitura de qualidade. Isso deve estar mudando um pouco, ou eu estou ficando com medo de Dois irmãos, porque é muito lido. Então penso: “será que é de fato um livro que tem alguma qualidade?” Quando se atinge um público muito grande, é de desconfiar. Mas as universidades também estão formando gente. Mesmo as particulares, que às vezes a gente torce um pouco o nariz. Aonde eu tenho ido, no interior do Brasil e tudo mais, há sempre bons professores. Bem formados e exigentes. Isso cria um público leitor, mas é um processo lento. De um modo geral, do brasileiro comum, que pode ler um livro ou frequentar uma biblioteca para ler, nós estamos ainda devendo muito.

Literatura brasileira

A literatura brasileira começou como um espelho distorcido da literatura europeia. O Machado de Assis não seria o Machado se não tivesse lido literatura francesa, inglesa, russa. Mas também poder ler os grandes escritores brasileiros. Aqui, vocês têm um grande contista, o Dalton Trevisan, tem grandes narradores contemporâneos, por todo o país. Graciliano Ramos, Osman Lins. Nós já temos alguma tradição. Não tenho nenhum complexo de inferioridade com a literatura brasileira. Porque a partir do Machado, que foi de fato o maior escritor da América Latina do século XIX, esse grande arco que vai até Clarice Lispector e Guimarães Rosa, a gente não deve nada à literatura americana, por exemplo. Qual escritor americano, a não ser William Faulkner, pode ser comparado ao Guimarães Rosa? Agora, a desgraça é que a língua portuguesa é pouco traduzida, e o Rosa é mal traduzido. Inclusive para o inglês. É pessimamente traduzido. Por exemplo, uma política cultural seria bancar tradutores para a obra do Guimarães Rosa para o inglês. Reunir um grupo de tradutores, porque um só não dá conta. Traduzam Grande sertão: veredas. Bem, vocês que são jovens corajosos, abram o Grande sertão e leia as 565 páginas. Isso para mim é um ato de coragem, ler O jogo da amarelinha, do Cortázar. Leia Guerra e paz. É um ato de coragem, transgressor, vai fazer bem para a sua vida, para a sua alma, para as conversas com a namorada. É um assunto e tanto. Já pensou, Guerra e paz? Três anos de conversa. Poucos momentos de silêncio e tédio. Chega o tédio, você fala “tem uma cena no Grande sertão...”. É um casamento, uma vida inteira. Quando ele entra nas veredas mortas... sabe por que veredas mortas? Porque alguma coisa vai acontecer. É um lugar sombrio, obscuro. Conta isso para ela.