Um Escritor na Biblioteca - Marcelo Backes

Marcelo Backes

Há pelo menos uma tendência no mercado editorial brasileiro, que é a publicação, e a consequente badalação, do chamado autor jovem. A antologia Granta — Os melhores jovens escritores brasileiros, publicada ano passado, com textos de 20 autores com menos de 40 anos, evidenciou esse filão. De fato, há inúmeros autores de 30 a 40 anos sendo publicados no país, inclusive pelas maiores e mais importantes editoras e, entre eles, uns poucos conseguem se sobressair, como é o caso do gaúcho Marcelo Backes, de 40 anos. Ele participou da sexta edição do projeto “Um escritor na Biblioteca” em 2013 e contou, em detalhes, como foi sua formação de leitor, inicialmente realizada em uma biblioteca de uma escola de Campina das Missões, município de seis mil habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Backes formou-se em jornalismo e fez mestrado em literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), para em seguida viajar para a Alemanha, onde realizou doutorado. Apesar dessa formação, ele não se tornou professor universitário: é tradutor e autor de obras de ficção. “Sempre quis ser escritor, sempre me vi como escritor e sempre escrevi literatura. Desde os sete anos queria ser escritor e, devido a circunstâncias diversas e por uma espécie de autocrítica exagerada a qual eu agradecerei até o fim dos tempos, demorei para publicar literatura”, comentou Backes, durante o batepapo mediado pelo jornalista e tradutor Christian Schwartz. Backes é autor dos livros A arte do combate — A literatura alemã em cento e poucas chispas poéticas e outros tantos comentários (2003), Estilhaços (2006), Maisquememória (2007), Três traidores e uns outros (2010) e O último minuto (2013), sendo este um romance que trata, entre outras questões, do universo do futebol. O escritor falou sobre o seu envolvimento com a literatura alemã, confessou que se sente próximo do estilo de Heinrich Heine, antecipou que o seu próximo romance terá como título A casa cai e será ambientado em grande parte no Rio de Janeiro. Além disso, admitiu que a atividade de tradução teve reflexos em sua escrita literária — Backes já verteu do alemão para o português obras de Bertold Brecht, Franz Kafka, Ingo Schulze, Karl Marx, entre outros. “Cheguei à conclusão de que, provavelmente, a tradução tenha funcionado para mim como uma espécie de oficina literária que não fiz. Me dei conta de que já tinha traduzido cerca de 30 livros, com uma média de 300 páginas, e que isso deu, com certeza, mais de dez mil páginas escritas, reescritas. Você pode ser o escritor mais estúpido do mundo, mas se você não aprender a escrever depois de redigir dez mil páginas de escritores que são cânones da literatura alemã ou selecionados entre os grandes escritores contemporâneos, desista da profissão de uma vez por todas.” Confira, a seguir, os principais momentos do bate-papo.

Foto: Guilherme Pupo


CAMPINA DAS MISSÕES
Minha formação de leitor está vinculada diretamente às minhas origens que, não sei em que medida, são peculiares. Essa formação dependeu muito de uma biblioteca localizada no interior de um município minúsculo do Rio Grande do Sul, chamado Campina das Missões, que hoje em dia tem seis mil habitantes. Nasci não na sede municipal, mas no interior mais distante de Campina das Missões, quase na fronteira com a Argentina, às margens do Rio Uruguai. Lá, obviamente, só havia uma escola pública que, felizmente, era muito boa, assim como geralmente elas são no Sul do Brasil. Estudei os primeiros oito anos nessa escola e, até hoje, sou conhecido um pouco folcloricamente por ter lidos todos os livros da biblioteca da escola.

LER, COMER E DORMIR
Até os 13 anos, minha rotina era ler, comer e dormir. Era uma atividade quase volumétrica, mais do que qualitativa. Sempre me interessei muito pela leitura e lia tudo que encontrava pela frente. O que me deixava mais fascinado naquela época eram essas adaptações dos grandes clássicos da literatura universal feitas por escritores brasileiros. Lembro-me de uma adaptação de Dom Quixote que li e que me deixou maravilhado. Também havia adaptações de obras de William Shakespeare e de Homero. Foram, então, essas leituras que realmente me entusiasmaram na infância. Além disso, certamente sou um grande descendente da Coleção Vagalume, da Editora Ática, que fez, inclusive, com que eu ganhasse meu primeiro prêmio de crítica literária. Eu tinha 12 anos quando a Editora Ática promoveu um concurso de críticas sobre as obras da coleção. Fiz uma resenha a respeito de algum título do Marcos Rey, fui premiado, mas o texto se perdeu com o tempo.

ASSIS, ALENCAR E ROSA

A escola onde cursei o primeiro grau, o atual ensino fundamental, tinha uma biblioteca relativamente orientada, mas me lembro de ter lido coisas esquisitas, como Eram os deuses astronautas?, um clássico da ufologia, entre outras obras com as quais eu não simpatizava. Até hoje não consigo gostar dessa derivação de livros de ficção científica. Não é uma literatura que me empolga muito. Mas, claro, li os clássicos brasileiros e consegui gostar de Machado de Assis, que normalmente é considerado intolerável ainda aos 13 anos — e com uma certa razão. Gostava muito de Dom Casmurro, já sentia aquele nó na garganta absolutamente terrível ao final do romance, mas hoje quando o releio, percebo que existe a possibilidade de leitura muito mais profunda, e que o leitor tende a compreender as nuances, em geral, depois dos 20 anos e com uma bagagem de leitura ampla. Também gostava dos livros do José de Alencar naquela época. Hoje, salvaria poucas obras dele, mas gostava de O Guarani e até de O Gaúcho, romance pra lá de esquisito. Apesar de tudo, como era uma biblioteca de interior, não me foi permitido contato com escritores que se tornariam os meus favoritos mais tarde, como Guimarães Rosa.

“Cheguei à conclusão de que, provavelmente, a tradução tenha funcionado para mim

como uma espécie de oficina literária que não fiz.”


AUTORES FUNDAMENTAIS

Lembro de obras que me marcaram profundamente, uma delas, inclusive, li aos 14 anos. Trata-se de O vermelho e o negro, do Stendhal. Talvez tenha sido o primeiro livro no qual me dei conta de que se podia fazer literatura de uma maneira complexa, ampla. Então, logo em seguida, tive acesso a um dos livros mais fundamentais na minha formação, Dr. Fausto, de Thomas Mann e, também, ao Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Esses foram os romances decisivos nessa minha primeira fase de formação.

PAI PROFESSOR
Também havia muitos livros na minha casa. Meu pai era professor de português e recebia, pelo correio, livros da Coleção Vagalume. No entanto, na condição de alemão, meu pai considerava que a única tarefa digna para se fazer na vida era trabalhar, e eu tinha outro ponto de vista. Detestava qualquer tipo de trabalho rural. De modo que tínhamos uma série de brigas, pois ele achava o trabalho edificante e eu queria ler. Então, apesar de meu pai ser professor de português, ele não gostava da minha dedicação integral à leitura, que absorvia cerca de 15 horas com livros todo dia.

FUGA PARA O SEMINÁRIO
Fiz o segundo grau, atual ensino médio, em um seminário, o quê, de fato, foi fundamental para minha formação de leitor, escritor e cidadão. Diria que, quando tinha 7 anos, descobri quê, de um jeito ou de outro, eu precisava sair de Campina das Missões. O motivo? Não me adequava àquele local. Então, em determinado momento de minha vida, percebi que a maneira mais eficaz de sair de minha terra natal seria ingressar em um seminário. Realmente, deixei minha cidade e entrei em um seminário, onde estudei latim e grego, algo que, por exemplo, é uma lacuna para a minha geração. Mas nunca cogitei vir a ser padre. Aproveitei aquele período para ler, inclusive trabalhei no seminário como bibliotecário.

Foto: Guilherme Pupo

Christian Schwartz e Marcelo Backes falaram sobre vários temas, entre eles a atividade que ambos têm em comum: a tradução.

JORNALISMO, NÃO JORNALISTA

Desde pequeno eu queria ser escritor e, como sempre fui muito sistemático, fiz uma relação de todos os escritores brasileiros vivos e importantes, chegando à conclusão que a vasta maioria tinha algum vínculo com o jornalismo. Logo, resolvi cursar jornalismo, mesmo não tendo nenhum entusiasmo com a profissão. Terminei o curso de jornalismo, em Porto Alegre, por pura teimosia. Nos primeiros semestres, até que tinha alguma satisfação com as aulas de filosofia e sociologia. Mas, próximo ao fim do curso, tínhamos aula de como manejar uma câmera, de produção de texto jornalístico, o que não me interessava. Foi aí que cheguei à conclusão de que eu precisava terminar o curso no menor tempo possível para poder seguir em um mestrado em literatura.

“O poeta Heinrich Heine é o escritor com o qual me sinto mais aparentado espiritualmente.”


RETORNO ÀS ORIGENS

Após concluir a graduação em jornalismo, fiz um mestrado em literatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), planejando uma viagem para a Alemanha, para onde, de fato, fui e fiz meu doutorado, na Universidade de Friburgo, tendo à disposição uma biblioteca de quatro milhões de exemplares. Comecei a ler textos em alemão aos quinze anos. Em casa, aprendi a falar apenas um dialeto alemão, bastante distante do padrão que se fala hoje na Alemanha. Mas, apesar de diferente, era suficientemente parecido para permitir que eu nunca precisasse estudar o idioma. Fui para a Alemanha sem fazer nenhum curso de alemão, já havia, inclusive, traduzido três livros relativamente cedo e iniciei o doutorado com 25 anos.

LITERATURA ALEMÃ
Os primeiros livros que li em alemão foram obras de teatro, o que achei absolutamente fascinante, tanto que mais tarde eu viria a traduzir dramaturgos germânicos. Eram livros escritos ainda em alemão gótico, uma escrita que para todos parece praticamente impossível de ler, mas na verdade é muito fácil quando se sabe ler o idioma alemão. Comecei a ler em alemão gótico as obras de Gotham Efraim Lessing quê, não por acaso, é o pai da pátria intelectual alemã em todos os sentidos, um formador da pátria alemã, o sujeito que forma a literatura alemã, antes mesmo de Goethe.

SEM PRESSA PARA ESTREAR
Na verdade, sempre quis ser escritor, sempre me vi como escritor e sempre escrevi literatura. Desde os sete anos queria ser escritor e, devido a circunstâncias diversas e por uma espécie de autocrítica exagerada a qual eu agradecerei até o fim dos tempos, demorei para publicar literatura. Poderia ter publicado ficção, por exemplo, na época em que, quando tinha 22 anos, trabalhei numa editora de Porto Alegre. Eu era praticamente o editor e poderia decidir tranquilamente se um livro meu seria publicado. Mas, felizmente, não publiquei, apesar de ter, na época, um livro pronto. Era um romance breve.

ÍNDOLE NARRATIVA
Meu livro Estilhaços, de 2006, é de aforismos e epigramas, e tem muito a ver com a minha formação na literatura alemã. Mas, se você conferir o que há efetivamente de lirismo nesse livro, vai perceber que é uma lírica de índole mais filosófica, até mesmo combativa em certo sentido. Isso mostra que não sou um lírico de verdade, algo que nunca fui. Estudei muito e sei fazer versos, inclusive com rima e metro, mas sei que não sou um poeta essencial. Sempre tive uma índole mais narrativa.

PROGRESSÃO FICCIONAL
A arte do combate, de 2003, não é essencialmente um livro de escritor, por ser uma espécie de história subjetiva da literatura alemã sob o ponto de vista da briga, da agressão e do combate. No entanto, aquele livro já apresenta alguns indícios de vontade narrativa, uma noção, minha, de querer meter o bedelho e contar algumas coisas pessoais. Em 2006, publico, então, Estilhaços que, mesmo não sendo completamente ficcional, aponta para um caminho em direção à ficção. Maisquememória, de 2007, é ainda mais ficcionalizado. E, o mais recente, O último minuto, de 2013, é ainda mais ficcional do que Três traidores e uns outros, de 2010. Consigo fazer essa leitura hoje e não enquanto estava escrevendo. As interpretações sobre os meus livros são sempre feitas, por mim, posteriormente.

FUTEBOL
Tratei do futebol em dois dos meus livros e também tento entender o motivo de falar tanto desse esporte. Afinal de contas, por que me interesso por futebol? Eu mesmo busco respostas para essa pergunta. Afinal, é difícil aceitar o fato de não haver nenhum grande romance sobre futebol no Brasil. É absurdo isso, mas não escrevo sobre futebol porque não há ainda um grande livro sobre o tema em nosso país. Sei que há menos obras sobre o futebol do que o esporte mereceria, devido à sua importância na estrutura de funcionamento do país, numericamente falando. Mas há sim romances escritos e publicados em tempos recentes sobre futebol, entre os quais O segundo tempo, do Michel Laub.

“Até hoje, sou conhecido um pouco folcloricamente por ter lidos todos os livros da biblioteca da escola.”


O PERSONAGEM SOU EU?
Até O último minuto, todos os personagens que eu criei tinham relação comigo. Em Três traidores e uns outros, o personagem principal é um tradutor fracassado e sempre me perguntaram se é uma obra autobiográfica. Costumo responder que se eu fosse um canalha como o personagem do romance, cometeria suicídio prendendo a respiração. O que está acontecendo, principalmente nos livros mais recentes, é um distanciamento cada vez mais direto entre o personagem narrador e a figura do autor. Sempre procurei confundi-los, propositalmente, nos primeiros livros, mas agora não. Me dei conta disso após terminar O último minuto.

A CASA CAI
O meu próximo romance, A casa cai, já está pronto e nas mãos da minha agente literária. Nessa nova obra, o Rio Grande do Sul aparece apenas durante algumas viagens esporádicas de um personagem. Mas o enredo é completamente ambientado no Rio de Janeiro, abrindo espaço para falar dos absurdos da construção civil e do desenvolvimento da cidade, dos delírios imobiliários que fazem com que um metro quadrado no Leblon custe R$ 58 mil, enquanto o metro quadrado na Favela da Rocinha vale apenas R$ 2 mil. No livro, o personagem carioca começa a contar a história da construção da casa dele enquanto também revela, como pano de fundo, a construção do Rio de Janeiro, na qual o pai dele esteve envolvido.

Foto: Guilherme Pupo
TU FOSTE?
Pelo fato de o narrador de A casa cai ser carioca, ele não pode usar expressões gaúchas, como guaipeca. Essa transição, para mim, foi tranquila. No entanto, senti muita dificuldade para usar o você. Até lamento que tenha que ser assim, porque sou um sujeito que milita a favor da manutenção do “tu”, de preferência em sua utilização correta, que não é usada nem mesmo no Rio Grande do Sul, onde costumamos dizer “tu foi” e não “tu foste”, como eu falo. Essa foi, enfim, a única questão realmente difícil para mim, mas todo o resto foi absolutamente natural e será perceptível nesse novo livro.

MONTAIGNE
Sou um daqueles escritores de alguma índole ensaística que tem a velha visão do Montaigne, e de comentar, com um ponto de vista ensaístico, as coisas do mundo que o tocam da forma com que elas ecoam subjetivamente dentro dele. É um processo que ocorre em todos os meus livros, e confesso não conseguir largá-lo. E para seguir com esse ensaísmo em meio à ficção sempre tive de elaborar personagens verossímeis. Meus personagens eram intelectuais e não um cara capinando na roça no interior do Rio Grande do Sul.

DEZ MIL PÁGINAS
Tenho certeza absoluta que a minha atividade de tradutor influenciou e ajudou muito na carreira de escritor. Cheguei à conclusão de que, provavelmente, a tradução tenha funcionado para mim como uma espécie de oficina literária que não fiz. Me dei conta de que já tinha traduzido cerca de 30 livros, com uma média de 300 páginas, e que isso deu, com certeza, mais de dez mil páginas escritas, reescritas. Você pode ser o escritor mais estúpido do mundo, mas se você não aprender a escrever depois de redigir dez mil páginas de escritores que são cânones da literatura alemã ou selecionados entre os grandes escritores contemporâneos, desista da profissão de uma vez por todas.

INFLUÊNCIAS
Já tentei identificar com qual escritor me aparento entre os alemães, qual deles têm o estilo mais próximo ao meu, e realmente não consigo ver. Recentemente, tive que responder a algumas perguntas a respeito das influências presentes em O último minuto, por incrível que pareça, acho que o escritor que tem um estilo ou um processo de trabalho mais parecido com o meu é Vladimir Nabokov. Em Lolita tem um narrador que conta sua história como documento de defesa em um tribunal, conta de dentro da cadeia. Além disso, Nabokov apresenta uma espécie de elaboração lírica em alguns momentos, às vezes há uns desvios ensaísticos interessantes, que é muito parecido com o meu trabalho. Não vejo muito isso em qualquer escritor alemão e, pensando bem, talvez o escritor que mais se aproxime do meu estilo seja o Heinrich Heine, mas lamentavelmente há poucos títulos dele disponíveis no Brasil que permitam essa comparação.