Um Escritor na Biblioteca : Marçal Aquino

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No sexto encontro do projeto “Um escritor na Biblioteca”, Marçal Aquino falou sobre sua formação como leitor, seu fascínio pelos livros e do sucesso de sua obra literária no cinema, outra arte pela qual o escritor se diz“apaixonado”


Nascido em Amparo, cidade a 140 quilômetros da capital São Paulo, Marçal Aquino é atualmente considerado um dos grandes autores da literatura brasileira contemporânea. Cultuado especialmente pelos livros de contos e novelas, geralmente de temática policial, Aquino começou a ler ainda na infância de forma espontânea. “Nunca tive um adulto dizendo para eu ler. Então li às cegas, durante muitos anos”, disse o escritor no sexto encontro do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, em 2011.

O início como ficcionista foi parecido. “Comecei fazendo redação na escola. Descobri, fascinado, que podia mentir à vontade. Essa foi a melhor coisa que descobri. Mentia impunemente”, diz o escritor, “porque a literatura, à semelhança do cinema, é manipulação. Um bom livro precisa de um bom leitor. Um bom livro sem um bom leitor não é nada.”

Entre seus principais livros, destacam-se as coletâneas de contos Faroestes (2001) e Famílias terrivelmente felizes (2003), a novela O invasor (2002) e os romances Cabeça a prêmio (2003) e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios (2005), os três últimos adaptados para o cinema.

Aliás, Aquino também falou sobre a parceria que mantém com o cineasta Beto Brant, que já rendeu sete longas-metragens. Além de adaptar seus próprios livros (como no caso de O invasor), Marçal roteirizou obras de outros escritores, como Lourenço Mutarelli. O escritor também trabalha como roteirista de TV, escrevendo, ao lado de Fernando Bonassi, a série Força Tarefa, da Rede Globo.

Durante a conversa, mediada pelo jornalista Irinêo Baptista Netto, Marçal — que também é jornalista e foi por muitos anos repórter policial — ainda falou sobre releituras, técnicas de escrita e resenhas literárias.


Começando a ler
O livro entrou muito tarde na minha vida. Comecei pelas histórias em quadrinhos, com as quais fui alfabetizado. Eu era louco por histórias em quadrinhos, e achava os livros muito chatos, porque não tinham figuras. Eu queria ver as figuras, não sabia ler. Lembro de um sujeito que foi à minha casa e levou uma edição do Tarzan, escrito pelo Edgar Rice Burroughs. Resolvi ler e descobri uma coisa fascinante: era muito melhor do que qualquer gibi do Tarzan, do que qualquer filme do Tarzan, porque a história se passava dentro da minha cabeça. Eu fiz a transição – abandonei os quadrinhos e passei para os livros, ali pelos dez anos. Foi a curiosidade que me levou a abrir um livro. Nunca tive um adulto dizendo para eu ler. Então li às cegas, durante muitos anos. Li errado, como se diz. Embora não exista isso de ler errado, o importante é ler. Mas eu li Nietzsche com 13 anos. Não entendi nada, achava curiosíssimo aquilo. Por que aquilo era importante? Li Machado de Assis muito cedo: achei uma droga. Dom Casmurro, durante muitos anos, considerei um engodo. Aí fui ler mais tarde, com uma experiência de vida maior, e, claro, encontrei um grande autor. Mas li de forma desordenada.

História oral

Eu fui muito pobre. Ainda sou, mas hoje pelo menos consigo pagar as contas. Nasci numa fazenda. Então essa história de que tem que ter livros em casa para o cara enveredar para a literatura não é verdade. Meu pai tem terceiro ano do antigo primário, minha mãe tem ginasial incompleto. Mas há vantagens e desvantagens nisso. A primeira televisão que entrou na minha casa foi quando eu tinha 14 anos. Então, eu sou uma raridade: vi cinema antes de ver TV. Isso é impossível hoje em dia, qualquer criança nasce vendo TV. Eu vi cinema primeiro, e fiquei encantado com aquilo. Toda a mitologia das histórias para mim está ligada à coisa oral, em que as pessoas se reuniam no final da noite e comentavam as histórias e os causos. Como eu era muito fã desse tipo de conversa, ficava perto dos adultos, então comecei a aprender técnicas narrativas inconscientemente. Meu pai, por exemplo, é um grande contador de histórias. Ele contava a mesma história meses seguidos. Só que cada vez que contava o causo, ele se modificava. Ele usava técnicas que aprendi ouvindo. Quando vou escrever, automaticamente penso no que pode e no que não pode ser revelado. Isso que você aprende depois nos grandes livros, sobre linguagem e tal.

Primeiros livros
Nunca vou esquecer: mentia minha idade para poder pegar livros proibidos. A biblioteca de Amparo, que na época tinha um acervo de uns 13 mil exemplares, era uma biblioteca bacana. Não sei como ela está hoje, mas para mim aquilo foi fundamental, porque eu não tinha dinheiro para comprar livros. E queria e precisava ler. Desesperadamente. Então, fui aquele rato de biblioteca. Houve momentos em que o bibliotecário me orientava, indicando autores e tal, mas na maior parte das vezes eu chegava lá e pensava: “isso aqui é um supermercado, posso ler tudo o que quiser”. Entrei pela primeira vez nessa biblioteca quando tinha onze anos. Outro dia eles me mandaram a minha ficha. Pude ver o que eu andava lendo naqueles anos. Pude ver que eu era um leitor onívoro, porque lia filosofia, poesia, prosa, policial, não tinha uma linha de leitura. Não era orientado para um só lado da literatura. Acho que isso me tornou um leitor sem preconceitos, um leitor que, para saber se um livro era bom ou não, tinha que ler. Houve um momento em que descobri Raymond Chandler, e aí li toda sua obra. Por sorte, tinha lá na biblioteca de Amparo. Descobri autores policiais e fiquei anos lendo romance policial. Lembro também quando li Moby Dick — eu estava na escola e torcia para a aula terminar logo. Quando todo mundo ia jogar bola, eu ia para casa terminar de ler Moby Dick. Estava encantado com aquilo. Então, há momentos e livros que foram muito marcantes na minha trajetória.

Biblioteca em casa
Chegou um momento na minha vida em que eu tinha quatro mil livros, o que não é muito. O problema é que, quando ia procurar um livro, dava tanto trabalho que eu preferia ir comprar outro. Porque eu não ia achar naquele manancial. Morei num apartamento em que a coisa ficou tão feia, que o Beto Brant foi lá e disse: “os livros vão acabar botando você para fora”. Eu tinha livros em tudo que era canto, adoro isso, livros na sala, na cozinha. Gosto da presença do livro. No meu quarto, hoje, tenho várias estantes. Essa conversa mole de e-book não pega em mim. Vou morrer antes, então não tem problema. Fiquei feliz tal como os livros existem hoje. Um formato invencível.

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Primeiras histórias

Comecei fazendo redação na escola. Descobri, fascinado, que podia mentir à vontade. Essa foi a melhor coisa que descobri. Mentia impunemente. Lembro que uma vez uma professora me chamou para perguntar por que eu tinha escrito uma história com um final triste. Ela estava toda cheia de piedade. Quando eu disse que aquilo não tinha acontecido, ficou mais chocada ainda. É a coisa de manipular o outro, o que o escritor faz muito. O escritor, claro, vive todas as emoções, mas como trabalhamos com o plano das emoções, adoro a ideia de que posso mexer com a cabeça dos leitores. Quero que você fiquei perturbado, triste, alegre. Já vi gente contando a história de um livro meu que não era nada daquilo. Fazem leituras próprias, e aí toda leitura é válida. Ela é tão importante quanto a minha. A minha leitura é apenas uma. O autor não pode ser autoritário a ponto de achar a própria leitura a única possível. Isso é uma bobajada que se inventou numa certa época por aqui, em que se perguntava a um escritor qual era a mensagem de um livro. Como assim, que mensagem? Livro com mensagem é do Chico Xavier. Não tem que ter mensagem. Livro mexe com a sua cabeça ou não. Mexe com a sua sensibilidade ou não, e assim por diante. O resto são invenções que as pessoas fazem para tornar complicado algo que é absolutamente simples. Quando você abre um livro, está em busca de um tipo de prazer que só a leitura pode dar. Nenhuma outra coisa é igual. Cinema, chocolate, nada é igual. O livro, até hoje, dá um tipo de gratificação que você não encontra em nenhum outro lugar. Sou viciado nisso.

Releitura
Há alguns livros que reli muito. O estaleiro, do Juan Carlos Onetti, li cinco, seis vezes. Graciliano Ramos, também. Já li umas dez vezes o São Bernardo. Tem uma definição do Italo Calvino interessante. Quando eu estava relendo o Onetti, uma namorada chegou para mim e disse: “você está lendo esse livro de novo?”. Eu disse: “não, estou lendo pela primeira vez”. Porque o Calvino diz que o clássico é aquele livro que, quando se lê pela primeira vez, tem-se a impressão de já tê-lo lido. E quando você retoma esse livro para reler, sempre há a sensação de que é a primeira vez. O São Bernardo é assim para mim. Às vezes, há trechos que leio e penso como pude não ter percebido antes. Eu tinha lido, mas a mirada era de um outro momento. Até porque a gente vai mudando. Eu tinha outra idade, outras expectativas, tinha lido outras coisas. A verdade sobre um grande livro é que ele nunca termina de ser lido. Parecido com poesia. Não dá para dizer “eu li o Drummond”. Eu leio Drummond. Para o escritor, tem outra coisa também: mesmo que não seja essa a intenção, quando você vai reler um livro e já está a par da trama, do desenvolvimento e da linguagem, você relê para aprender. Você incorpora coisas. O aprendizado de escrever é inesgotável, não acaba. Nenhum escritor poderá sentar e dizer: eu sou um escritor pronto. Este escritor estará morto. Porque nunca acaba esse aprendizado. Fico fascinado com as coisas que descubro relendo. Porque aí você lê sem preocupação com trama. Você relê pelo prazer. Mas, obviamente, releio livros que amei, que amo.

Técnica
O grande escritor não mostra a técnica, não é evidente, você não vê os andaimes. Num livro ruim, ficam todos os andaimes que o cara usou na construção. Há repetição. Estava lendo James Wood, autor de Como funciona a ficção, ele faz um comentário muito engraçado. Já flagrei escritor que usa a mesma imagem em dois livros. Ele gosta tanto daquela imagem que a usou em dois livros. Eu, na ocasião, fiquei pensando que ele tinha um repertório pequeno. Mas não, o James Wood fala que isso é consolidação de estilo. Perfeitamente. É tão bom, é dele, que ele pode usar quantas vezes quiser. Então, essa coisa de prestar atenção na maneira que o escritor fez é ilusório, porque o bom escritor não mostra. Quando você lê um bom escritor, ele já te envolveu. Porque a literatura, à semelhança do cinema, é manipulação. Um bom livro precisa de um bom leitor. Um bom livro sem um bom leitor não é nada. Ele precisa para se completar, que esse leitor faça essa leitura, que não necessariamente é a leitura do escritor — e geralmente não é. O livro oferece essa possibilidade. A riqueza de leituras de um mesmo livro é um negócio absurdo. Todo mundo já deve ter vivido essa experiência. Às vezes, eu amo de paixão um livro, não aguento a gostosura, dou para um amigo que eu acho que vai ler e vai gostar, o cara lê e fala: “ah, achei ok”. É uma decepção muito grande para mim, porque aquilo foi transformador para mim. Então, literatura é uma viagem muito pessoal.

Vida de leitor
Só leio algo quando tenho um mínimo de curiosidade. Quando algum jornal fala para eu resenhar tal livro, recuso quando não estou curioso para ler aquilo. Por exemplo, tem autor que já sei que não vou conseguir ler. Nesta encadernação não vou ler alguns caras. O Proust é um deles. Não vou ler, não vai dar. Porque tem uns caras que eu quero reler. Mas quando você começa a reler, surge o seguinte problema: ao reler, você está ocupando um tempo de leitura que poderia ser dedicado a novos livros. Agora, se fica uma sequência de livro chato, você vai atrás do cara que conhece e gosta. É aquela coisa que o Raduan Nassar fala: é preciso afiar sua lâmina, se não ela fica cega. Então, você vai nos bons, nos caras que mexem com você e dialogam contigo. Hoje em dia não leio ninguém por obrigação. Nem amigo. Um dia um amigo levou um original lá em casa e disse: “eu vou deixar aí, mas você não precisa ler, tá?”. Eu disse: “que bom”. Porque eu não vou me obrigar a ler.

Escritor dentro da história
Desculpa, mas continuidade não é só cinema. Eu, quando escrevo – digo por mim, cada um escreve de uma maneira — vejo aquilo que estou escrevendo. Sei a roupa que o personagem está vestindo, embora não vá descrever isso. Olho para ele e sei como é o seu rosto. Você tem que estar dentro da história. Esse é o escritor que respeito, que está lá dentro, isolado do mundo. O mundo exterior se perdeu. Eu abstraio o mundo ao redor. Não ouço que música está tocando, por exemplo, porque estou dentro do livro.

Relendo os próprios livros
Fiquei super ansioso quando lancei meu primeiro livro. Quando saiu, abri ao acaso e vi lá no meio: “Ela tinha...”. E eu tenho problema com cacofonia. Sou jornalista. Como que passou esse “ela tinha”? E aí eu fiquei com ódio do livro. Para piorar, fiz uma noite de autógrafos e um amigo jornalista chegou e falou assim: “sabe o que eu gostei? É que você não está nem aí para a linguagem, tem até um 'ela tinha' lá no meio”. Eu: “é, tem sim”. Porque isso acontece no jornal. Eu fui revisor. É horrível abrir uma página que revisou e o erro estar lá, brilhando em neon. “Saudade” com cedilha, cachorro com x, como é que pode? Mas passa, é humanamente regular. Só que tentei escapar disso, claro. O problema de reler seus próprios livros é que você tenta reescrevê-los. Aconteceu comigo. A pedido da Cosac Naify, lancei uma antologia [Famílias terrivelmente felizes (2003)] dos meus dois primeiros livros de contos [As fomes de setembro (1991) e Miss Danúbio (1994). Quando fui mexer nos contos, comecei a reescrevê-los. Só que aí pensei que não teria graça se fizesse aquilo. Não seria o escritor lá de 20 anos atrás. Publiquei tal e qual estava, com “ela tinha” e tudo mais. Então só releio quando vou adaptar para o cinema, aí sou obrigado. Mas, por diletantismo, nem a pau. Tenho medo de abrir um livro e achar um “ela tinha” lá no meio.

Caminho literário
O escritor não dá saltos. Ele tem que passar por determinados livros. Precisa escrevê-los, mas não sei quantos são. Não sei quantos livros de verdade deixam um escritor feliz. A gente, para uso público, diz que livro é que nem filho, gostamos de todos igual. Mas é mentira. A gente não gosta de todos por igual. Mas reconheço a importância de cada livro, sei que não chegaria no terceiro se não tivesse feito o primeiro. Não chegaria no quinto se não tivesse feito o terceiro. Não dá para não passar por isso. Tudo é aprendizado.


Histórias na rua
Gosto de ver gente no metrô. É importantíssimo para mim, ouvir conversas alheias, essas coisas bonitas aí. Gosto de ver gente, ir para a rua. Uma sala de espera de um consultório médico é um universo. Dependendo da especialidade do médico, é um universo muito grande. Porque aquela hora da rua é a hora de ver gente, de ouvir, de alimentar um outro tipo de mitologia que não a literária.

Leituras simultâneas

Leio mais de um livro ao mesmo tempo, sempre. A não ser que seja um livro avassalador, daqueles que você tem que ler e não pode se afastar, porque vai perder. Mas é raro. Eu gosto de ter dois, três livros na cabeceira, depende da hora. Mas, claro, você não pode ler, por exemplo, Onetti de uma forma leviana, ele vai exigir de você, porque ele é diabólico. Você não vai ler García Márquez como quem vai ler Onetti. Não vai ler o Cortázar, sei lá, Graciliano, da mesma forma que Machado. Cada escritor demanda um tipo de leitura. Tem escritor que é ciumento.

Método
aquino

Escrevo à mão, em cadernos. De todos os meus livros existem manuscritos. Não tenho nenhum livro escrito no computador. A literatura para mim é tão pessoal e intransferível que escrevo em cadernos. Tudo começou porque eu morava numa pensão e não podia bater à máquina de madrugada. Então, escrevia à mão, melhorei minha letra, etc. Mas tem essa coisa de você estar perto do livro, não se desligar emocionalmente dele. Quando se passa muito tempo, o retorno é doloroso. Já perdi livro por causa disso. Perder significa que deixei de concluir um livro que eu tinha pela metade, por ficar muito tempo sem escrevê-lo. Há um problema para quem escreve. Eu, por exemplo, não sei nada do que vai acontecer. Vou descobrindo na medida em que escrevo. Há escritores que fazem um plano de trabalho. Eu, se fizer isso, não vou escrever o livro. Por que é que eu vou escrever se já sei o que acontece? Gosto de descobrir, de mergulhar no vazio. Isso implica o fato de que, se o escritor ficar muito tempo longe, as coisas ficam difíceis. Voltar é sempre muito difícil. É uma coisa demorada, tem que reler tudo, se perguntar “o que mesmo eu quero contar aqui?” Isso é um desastre. Tem uma hora que o livro vem até você. Não estou interessado em saber como é o processo de escrita, por que faz assim e não faz assado, tem gente que diz que baixa o santo, e tal, não acredito em nada dessas besteiradas. Eu sou escritor, escrevo. Eu sou jornalista, escrevo. Eu sou roteirista, escrevo. Tenho que sentar diante da mesa e escrever.

Rotina
Claro que há dias em que você tem mais facilidade, o dia está favorável, etc. Têm dias que é mais difícil, você escreve menos. Tenho um amigo que fala: “não saio do computador se eu não escrever trinta linhas”. Eu não. Se eu conseguir escrever duas linhas definitivas, estou feliz. Porque, às vezes, você escreve 50 linhas e depois lê e começa a cortar, cortar... E no final cortou 49. O importante é estar próximo do livro, dar ao livro o tempo que ele pede. É ilusão achar que você pode apressar o processo: “ah, vou terminar rápido porque o editor está pedindo”. Um bom editor jamais aperta um escritor. Até porque não adianta. Eu devo um livro para o meu editor há quatro anos. Ele faz o que pode, às vezes manda uns bilhetes, mas não adianta forçar. Tem uma coisa dentro da literatura que ainda é artesanal. Volto a dizer: estou falando da minha experiência e de alguns escritores que conheço. Tem escritor que faz diferente. Eu acho difícil escrever. Imaginei que com o tempo fosse ficar mais fácil, mas é o contrário. Você fica mais exigente, fica mais difícil se contentar. É infernal a literatura. A tendência do escritor é realmente parar de escrever. Chega um momento em que ele fala: “não dá mais, já escrevi o que tinha que escrever”. Também tem que saber parar. Temos uns amigos aí que não souberam parar, mas é um direito.

Leitura marcantes em 2011

Foram releituras. Herzog é um lançamento, embora já existisse por aqui em outra tradução. É um livro excepcional. Quem diz isso é o Phillip Roth, num prefácio: “Saul Bellow é o maior escritor americano de todos os tempos”. Se ele diz isso, quem sou eu para dizer que não. Também li um livro muito interessante, do David Lebedoff, em que ele junta as biografias do George Orwell e do Evelyn Waugh. O livro se chama O mesmo homem — no amor e na guerra e mostra que os dois tiveram biografias absolutamente semelhantes, embora fossem duas pessoas completamente antípodas. Mas ele mostra que não, que andaram pelos mesmos caminhos, é um livro incrível.

Cinema
Sou um cara que aguenta filme cabeça, filme encrencado que tem sete horas de duração. Se o cara não insultar minha inteligência, tudo bem, mas se tiver uma coisinha que caia de repente, eu saio. Não deixava livro sem terminar e jamais saía de cinema antes de acabar. Hoje eu saio. Outro dia estava no júri de um festival e uma hora o filme me encheu tanto o saco, era tão agressivamente ruim, que resolvi sair. O diretor estava presente e me disse: “se você sair agora vai perder a melhor parte”. Aí fiquei, assistimos à melhor parte e eu lhe disse: “você está enganado”. E saí. Também não vou ver cinema de entretenimento. Acho que as pessoas vão hoje ao cinema para usar mais o estômago do que o cérebro. Acho horrível a pessoa comer no cinema. As pessoas entram com verdadeiros jantares nas salas de cinema.

Resenhas em jornais
Eu não sou crítico, não tenho substrato para falar. Até porque as resenhas que faço têm 15 linhas. Em 15 linhas, se o nome do autor for muito comprido, você já gasta a metade. Então não me arvoro na ideia de que sou crítico. Acho que a resenha cumpre bem o seu papel se disser que o livro saiu, se der uma palhinha do que se trata e, se puder, trouxer a opinião de quem escreve. Essa história de aprofundar e tal, não existe mais espaço no jornal para isso, talvez só na internet. Tem que virar a chave. Evito fazer crítica de cinema também, especialmente de cinema brasileiro, porque conheço todo mundo. E os caras não aceitam crítica. Diretor não gosta de crítica. Não faço para evitar problemas. Prefiro trabalhar com os clássicos. É muito mais confortável. Cinema que eu já conheço, é uma oportunidade de rever.

Escrever para o cinema
Nunca penso em cinema quando vou escrever. Sou escritor puro-sangue. Sempre falo que, no dia do juízo final, espero estar na fila dos escritores. Porque quando tenho uma ideia, penso logo: “isso dá um conto, um romance ou uma novela”. Nunca penso “isso dá um roteiro”. Tem um único caso na minha vida que peguei um livro e pensei: “dá um puta filme”. Que é O Cheiro do ralo. Costumo ouvir sempre que determinado livro é “cinematográfico”. Eu penso: “todo livro é cinematográfico”. Porque, quando se está lendo, você vê os personagens e situações. Livro é livro, fico feliz com isso. Só começo a pensar naquilo como um produto audiovisual quando um diretor diz para adaptarmos. Aí, seja meu livro ou de outro, tenho que fazer uma mirada muito diferente. Tenho que ler ou reler o livro já entendendo como que a gente vai transpor aquilo para essa outra linguagem. Nunca tive essa ideia de sair do cinema dizendo “o livro era melhor”. O livro é sempre melhor. O livro é outra coisa, não dá para comparar o livro ao filme. Eu acho engraçado que em peças de teatro ninguém fala isso. O cara adapta uma peça de teatro e ninguém fala “a peça era melhor”. Mas o livro, todo mundo diz que era melhor. Acho que o grande cinema, quando parte de uma matriz literária, deve estabelecer um diálogo com o livro, propor algo a partir desse livro.

Ensino da literatura
Acho errado o modelo que as escolas adotam para formar leitores: dar o livro e aplicar prova. O cara vai odiar Machado de Assis, Graciliano Ramos, todo mundo. Até Marçal Aquino. Um dia minha filha me mostrou na internet uma menina comentando: “Marçal Aquino? Um corno”. Como assim, um corno? Aí, fui ler qual era o assunto. A professora deu meu livro na sexta-feira e na segunda-feira aplicou prova sobre o livro. Ela passou o fim de semana tendo que ler meu livro. E odiou. Então, o livro tem que dar prazer. Dizem: “o livro é difícil”. Difícil para quem, cara pálida? Se o livro exige que você se esforce um pouco mais do que está habituado, ele é valoroso. Ele está chamando você para cima, não para baixo. Quem gosta de ler, pega um livro e tem um genuíno prazer. É esse o momento da literatura. O resto é conversa mole.

Parceria com Beto Brant
Eu não queria nada no cinema. Achava que de matéria de atividade economicamente inviável já bastava a literatura. E aí o cinema veio até mim. Existe um diretor em São Paulo, o Beto Brant, que leu um livro meu [As fomes de setembro] e resolveu adaptar um conto. Como a editora não tinha os direitos, ele teve que vir a mim. Saímos beber e ficamos a noite toda falando de cinema. Ele ficou abismado ao saber que eu tinha visto muito mais filme do que ele. Então ele disse que eu era um cara do cinema. Eu falei que não, que só gostava de cinema. Ele acabou não fazendo o filme sobre meu conto. Mas quando foi fazer seu primeiro longa, que é Os matadores, fui chamado. Eu estava escrevendo um romance e precisei parar para fazer outras coisas, desandou, que nem maionese. Não consegui retomar. O Beto chamou dois roteiristas para fazer Os matadores, o Fernando Bonassi e o Vitor Navas. Durante um ano e meio eles trabalharam no roteiro, sem satisfazer o Beto. Um dia eu brinquei com ele: “sabe o que falta nesse roteiro? Isso, isso e aquilo”, que era o que eu teria posto no meu livro se tivesse ido até o fim. Ele concordou e me chamou para dar um tapa no roteiro. O tapa foram 70 dias escrevendo e uma viagem ao Paraguai. A partir daí estabelecemos uma relação profissional.

Roteiro
Eu não sou roteirista. Roteiro não tem nada de literário. Não é preciso figuras de estilo. Um bom roteiro é informativo, diz o que acontece e o que se fala. O plano das intenções pode ou não estar no roteiro. Então, eu virei roteirista porque era a coisa mais óbvia do mundo. Eu já contava histórias no jornalismo e na literatura. Ir para o roteiro foi uma coisa que me pareceu natural. Aí, fiz Os matadores, Ação entre amigos, O invasor, Cão sem dono, Crime delicado, O cheiro do ralo e Nina. No Cabeça a prêmio dei uma mão para o Marco Ricca, mas pequena. Hoje, escrevo roteiro profissionalmente para a televisão, com a séria Força tarefa. Agora, é uma atividade como outra qualquer. É uma maneira de contar histórias, não tem nenhum segredo. Não acredito na ideia de que o roteiro tem que ter figura de estilo. Acho que o cara que compra roteiro é meio tarado, porque não é possível, o roteiro é só a receita do bolo, ele não é o bolo. É necessário que ele exista, sem roteiro dificilmente você vai conseguir fazer algo razoavelmente bom, mas, uma vez feito o filme, o roteiro deixa de ter razão. Ele não é um texto teatral, que pode oferecer várias leituras. O roteiro, quando é bem filmado, é filmado uma vez só. Para mim, é supernatural fazer roteiro. Tem lá as dificuldades, você é obrigado a apertar a tecla sap. Quando escrevo literatura, não estou preocupado com o meu leitor. Eu tento ser o mais claro possível, mas se o leitor não me entender, o problema é dele, não meu. É o poema do Drummond: “não é o meu verso que é ruim, é o seu ouvido que entortou”. No cinema, não. Primeiro, dezenas de pessoas vão depender daquele material para fazer o trabalho delas. O maquiador precisa do roteiro, o iluminador, o fotógrafo, o diretor, etc. Então, tem uma responsabilidade muito grande.

Diálogos
O Nelson Rodrigues, maior dialoguista da literatura brasileira, dizia que o grande defeito do escritor brasileiro é que ele toma muito pouco cafezinho. Ou seja, é preciso ir ao bar e prestar atenção no outro. Estou sempre prestando atenção no outro. Morei num apartamento que era uma festa. A mulher que morava imediatamente acima do meu apartamento usava telefones sem fio. Então eu tirava o meu do gancho e ouvia ela conversando com as filhas. Comecei a montar uma história, porque ela falava mal de uma filha para outra. Comecei a ficar interessadíssimo nessa história. Eu não contava para ninguém, obviamente, porque isso é muito feio. Um dia o Naum Alves de Souza disse: “sabe de onde nascem as peças? Da rua, das pessoas”. Claro. Como você vai escrever sobre pessoas se você não sabe como elas falam, ou como elas pensam? Que diabo é isso. Uma frase ouvida na rua, ao acaso, pode fazer com que eu vá para casa, sente e escreva um conto.