Um Escritor na Biblioteca: Luiz Ruffato

O autor mineiro, quarto convidado do projeto “Um Escritor na Biblioteca”, revela como, apesar de uma infância sem livros, tornou-se um dos escritores mais originais e premiados de sua geração

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Quando o próximo romance de Luiz Ruffato, Domingos sem Deus, chegar às livrarias, o escritor mineiro vai concluir um dos projetos mais ousados e premiados da literatura brasileira em várias décadas.

Domingos sem Deus é o último volume da série “Inferno Provisório”, iniciada em 2005 com a publicação do romance Mamma, son tanto Felice. Depois de cinco livros, mais de oitocentas páginas, dois prêmios da Associação Paulista de Críticos de Arte (Mamma, son tanto felice e O mundo inimigo) e um Jabuti (Vista parcial da noite), Ruffato completa seu grande projeto de retratar a classe operária, “esse pedacinho entre o lumpemproletariado e a classe média que não tinha sido tocado [pelos escritores brasileiros]”, conforme explica o autor, que participou do quarto encontro do projeto “Um escritor na Biblioteca”, bate-papo promovido pela Biblioteca Pública do Paraná.

Essa temática original, somada a um tipo de narrativa experimental, que abarca vários gêneros literários em um mesmo texto, fez de Ruffato uma das vozes mais originais de sua geração.

“Passei longos anos da minha vida lendo muito, me preparando do ponto de vista técnico e também de informações literárias e culturais, para chegar a ser, então, escritor.” Agora, depois de superado o “Inferno Provisório”, o escritor diz que se sente “absolutamente liberto desse projeto, dessa forma [de narrar].”

Mineiro de Cataguases, Ruffato é oriundo de uma família pobre, que não tinha o hábito da leitura. “O único livro que tinha em casa era a Bíblia, porque meu pai era diácono de uma igreja evangélica. Ou seja, estava tudo certo para eu não entrar na literatura. E eu entrei. Muito tempo depois. Porque até meus treze anos não tinha tido contato com livros. Aliás, achava até esquisito pensar na possibilidade de que alguém lesse, tivesse livros em casa.”

Durante a conversa, mediada pelo jornalista Christian Schwartz, o autor falou sobre os escritores que leu nos anos de formação, como Rubem Fonseca, Ivan Ângelo e Ignácio de Loyola Brandão. Também revelou reler certos livros e autores, como Balzac, Tchekov e Machado de Assis, “o maior gênio da história da literatura mundial.” O escritor ainda discorreu sobre o papel das oficinas literárias na formação de novos escritores, sua rotina de escrita e a polêmica antologia Geração 90: manuscritos de computador, da qual fez parte e que, dez anos depois de sua publicação, ainda continua fazendo barulho. Confira.

Formação como leitor
Na verdade, minha trajetória de leitor e, mais tarde, de escritor, é meio absurda, porque eu não tinha livros em casa, meu pai era um pipoqueiro semianalfabeto e minha mãe uma lavadeira analfabeta. O único livro que tinha em casa era a Bíblia, porque meu pai era diácono de uma igreja evangélica. Ou seja, estava tudo certo para eu não entrar na literatura. E eu entrei. Muito tempo depois, porque até meus treze anos não tinha tido contato com livros. Aliás, achava até esquisito pensar na possibilidade de que alguém lesse, tivesse livros em casa.

Meu pai era o segundo pipoqueiro mais importante da minha cidade, Cataguases. O primeiro era o pipoqueiro da praça onde ficava o cinema. E meu pai trabalhava na praça em que tinha a igreja, então o pessoal saía correndo da missa e ia para a outra praça, onde ficava o cinema. Certa vez, uma pessoa foi comprar pipoca com a gente. Eu era o responsável pelo troco. Ele olhou para mim e disse: “Olha, que menino inteligente.” Não sei o que ele viu de inteligente, mas aí me perguntou: “Onde você estuda?” Eu respondi: “No colégio Antônio Amaro”, que era um colégio muito ruim da cidade. Então ele disse: “Mas por que você não estuda no Colégio Cataguases?”, que era o colégio bom, onde estudava a elite da cidade. Meu pai então falou que todo ano a gente ia lá e nunca tinha vaga. O homem, que era o diretor do colégio, disse: “Ano que vem você me procura, que nós vamos arrumar uma vaga para o seu filho.” Foi assim que, no ano seguinte, eu fui para lá. Só que não consegui me adaptar, porque era um mundo completamente diferente do meu. Comecei a tentar me esconder daquele ambiente. Até que um dia descobri um lugar maravilhoso, que ninguém frequentava, um lugar bacana, silencioso, onde ninguém olhava para mim, que era a biblioteca. De tanto eu ir lá, a bibliotecária me perguntou se eu queria um livro emprestado. Não falei nada, era muito tímido. Ela então pegou um livro e falou para eu levar para casa, ler e devolver. Não falei nada, mas levei o livro para casa. Quando cheguei em casa, meu pai disse: “Que é que isso aí, menino? Onde você pegou isso?” Respondi: “Não, não peguei, a mulher lá da biblioteca falou para eu ler.” Então ele disse: “Agora vai ler.” Eu li o livro e pensei: “Graças a Deus, já acabei, agora entrego e pronto.” Só que quando entregava um livro, ela me dava outros. Aquele ano foi um inferno. Então, a minha experiência de leitor começou assim. Aquele ano, li uma quantidade de livros absurda, de autores mais absurdos ainda.

Primeiros autores
Até hoje descubro autores que li naquele ano. Acho que a bibliotecária do colégio era completamente maluca. O primeiro livro que ela me deu era de um autor soviético – em plena Ditadura! E, lá em Cataguases, nós temos um sotaque bem carregado, não tem como falar o nome do cara. Se alguém me perguntasse na rua quem era o autor daquele livro, ninguém ia entender nada. O nome dele era Anatoly Kuznetsov. O título do livro era “Babi Yar”, que falava sobre o massacre de judeus na Segunda Guerra Mundial, na região de Odessa. Esse foi o primeiro livro que eu li.

Só fiquei um ano naquele colégio, não me adaptei. E só depois reatei essa relação com o livro. Fui então estudar no Senai, fazer tornearia mecânica, porque minha mãe achava que a gente tinha que ter uma profissão. E a profissão mais bacana naquela época era a de torneiro mecânico. Só que quando me formei, havia tido recentemente as grandes greves do ABC. Então fui para Juiz de Fora, trabalhar como torneiro mecânico e fazer faculdade, onde reatei minha relação com os livros e com a leitura. Eu convivia com os meninos da comunicação, que gostavam de ler, de discutir política, economia. Acabei me vendo numa situação de ter que voltar a ler.

Leituras de ficção

Fui um grande frequentador de sebos. Comprava livros a rodo, porque eram baratos, e passava o fim de semana inteiro lendo. Depois, com o tempo, passei a fazer leituras mais interessantes, direcionadas. Naquele tempo, curiosamente, os livros que apareciam nos sebos eram muito recentes, então eu lia toda a literatura brasileira contemporânea.

Li muito Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Rubem Fonseca. Tinha uma coleção, da editora Ática, chamada “Autores Brasileiros”, que era muito boa. A literatura latino-americana, também li bastante.

Influências literárias
Gosto de reler alguns autores porque, de alguma maneira, eles conversam com o meu trabalho. Por exemplo: gosto de reler o Balzac. Adoro reler o Balzac, acho-o um gênio. Não sei se ele está presente no meu trabalho, mas eu gosto. Como do Tchekov também. E do Pirandello, que é um dos pouquíssimos autores que eu tenho até fotobiografia. Gosto dele como personali
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dade. inclusive. Também não sei se estão presentes no meu trabalho. Adoro Guimarães Rosa, mas ele é a pior influência que você pode ter, junto com Clarice Lispector. O Machado de Assis eu acho o maior gênio da história da literatura mundial. Cada vez mais tenho certeza disso. Faulkner, gosto muito também. Enfim, sou um leitor meio voraz.

Em termos de afinidade estilística, não tenho influências da minha própria geração. Tenho grandes amigos, como o Cristovão Tezza, que está aqui presente, o que é uma grande honra para mim. O Marçal Aquino, o Fernando Bonassi, mas são amizades, não creio que há diálogo em termos de interesses estéticos.

Preparando-se para ser escritor
Para mim, isso foi uma coisa meio programática. Primeiro, fui um grande leitor. Lia tudo, era interessado mesmo. Não queria apenas ler, queria ler com a intenção de me formar. Aí passei a ler tudo, não só literatura. Foi um período que os meus colegas de república achavam que eu tinha ficado doido, porque eu lia física, química, lia história, geografia, tudo que de alguma maneira poderia me formar como cidadão, como pessoa, mas também como leitor.

Operários na literatura
Fui descobrindo, aos poucos, que, de alguma maneira, queria entrar na literatura, como um leitor mesmo. Mas, sem saber, eu estava procurando um caminho como escritor. Essa descoberta foi muito por acaso. Chegou um tempo em que pensei que deveria ler coisas da literatura brasileira que refletissem um pouco sobre o ambiente que eu conheço bem, que é o ambiente operário. Fui operário têxtil também. Então, esse ambiente me interessava muito, até mesmo para eu compreender minha história. Aí foi um susto, porque percebi que a literatura brasileira nunca tinha se debruçado sobre esse mundo. O mundo rural é muito bem representado. O mundo urbano é muito bem representado na classe média, na classe média alta, no lumpemproletariado, que seriam os bandidos, a prostituição, etc. Mas esse pedacinho entre o lumpemproletariado e a classe média não tinha sido tocado. O que existiu foram alguns autores comunistas brasileiros que colocaram operários na literatura, mas como militantes políticos. Eles representavam apenas uma ideia, não eram personagens de carne e osso. Eu pensei que talvez pudesse escrever sobre isso, porque conheço esse mundo. Mas não me sentia capaz, do ponto de vista técnico, nem mesmo de experiência de vida. Então foi nesse momento que pensei: “Eu quero me programar para escrever sobre esse ambiente.” Passei longos anos da minha vida lendo muito, me preparando do ponto de vista técnico e também de informações literárias e culturais, para chegar a ser, então, escritor.

Começando a escrever
Se eu considerar que meu projeto começa no momento em que penso que quero me preparar para escrever, então o início da década de 1980 é marco zero de minha trajetória. Mas, efetivamente, foi no início de 1996 que eu me sentei, pela primeira vez, com o intuito claro de escrever um livro. Mas, pensei assim: “Vou escrever esse primeiro livro, mas só vou fazer o segundo se conseguir ser publicado por uma editora comercial e, além disso, tiver alguma visibilidade crítica.” Porque senão, não ia escrever o próximo livro. Ser escritor é muito chato. Dói as costas, você fica sozinho em casa, não é como as outras artes, que são coletivas, pode-se dividir com alguém. Na literatura, não tem ninguém para olhar para você. Em 1998, consegui publicar meu primeiro livro por uma editora pequena de São Paulo, chamada Boitempo, que foi Histórias de remorsos e rancores. O livro teve certa visibilidade e a editora perguntou se eu tinha outro livro. Falei que tinha, mas não tinha, então tive que escrever o segundo livro. Aí este segundo livro, (os sobreviventes), ganhou o Prêmio Casa de las Américas. A editora me pediu então um romance. Falei que tinha, mas não tinha. Tive que escrever Eles eram muitos cavalos. O livro foi muito bem. A partir daí que a minha carreira – se é que eu possa chamar de carreira – toma um rumo.

Inferno Provisório

Na verdade, quando eu pensei em ser escritor, quis fazer o “Inferno Provisório”. Só que, em 1996, quando escrevi meu primeiro livro, ainda não tinha compreendido o projeto muito bem. Sabia que ele existia, mas não sabia como era. Nem no segundo livro, (os sobreviventes), tive essa compreensão. O projeto tinha um problema técnico a ser resolvido, que era o seguinte: Eu não queria escrever um romance nos moldes tradicionais. Não que eu tenha algo contra, muito pelo contrário, adoro romances nos moldes tradicionais. Mas imaginava que para escrever a história que eu queria escrever, não poderia usar essa forma, porque ela foi pensada e criada para expressar uma visão de mundo burguesa. Não é um conceito ideológico, é um conceito sociológico. Pensei então como poderia resolver essa questão, como falar do proletariado usando a fórmula do romance burguês. Não sabia resolver isso. Aliás, até hoje não sei se consegui resolver. Quando escrevi Eles eram muitos cavalos, em 2001, que é um romance muito particular, porque é todo entrecortado, compreendi que poderia escrever o longo romance exatamente usando aquela mesma estratégia.

Eu sempre achei que Eles eram muitos cavalos era uma experiência formal, que faria com que eu compreendesse meu projeto de escritor. Então, pensei em pegar os dois primeiros livros, reescrevê-los dentro desse formato, que é a série “Inferno Provisório” [partes dos dois primeiros livros de Ruffato, Histórias de remorsos e rancores e (os sobreviventes), foram retrabalhadas e inseridas, junto ao material inédito, nos livros Mamma, son tanto felice, O mundo inimigo e O livro das impossibilidades, três dos cinco livros que compõem a série “Inferno Provisório”], que se inicia em 2005. Embora nesse período de 1998 a 2005 o projeto já existisse, eu não sabia. Quando ele começa a ser publicado, em 2005, é quando compreendo isso. Fiz uma loucura de oferecer um livro de cinco volumes para a editora Record. Os editores cometeram a loucura de aceitar e aí tive que escrever. O último volume sai este ano, depois disso me sinto absolutamente liberto desse projeto, dessa forma, e aí vou fazer outras coisas.

Limites entre contos e romance
Quando entreguei o romance Eles eram muitos cavalos para a editora, ela me disse que aquilo não era um romance, que não iria vender e que eu ainda estava devendo um romance a ela. Fiquei frustradíssimo. Mas acabei concordando que não iria vender e que não era um romance. Também não sabia o que era. No entanto, o livro acabou ganhando prêmios e tal [Prêmio APCA de melhor romance e Prêmio Machado de Assis de Narrativa]. Minha editora me dizia que não queria publicar livros de contos porque eles não vendem. Eu falei: “Então, resolvi o problema, não é um livro de contos, é um romance.” “Inferno Provisório” pode ser lido como um conjunto de contos, só que chamei de romance. Passei a publicar os mesmos contos como romance. Foi a mesma coisa na França. Meu primeiro livro publicado lá foi Eles eram muitos cavalos. A editora de lá falou a mesma coisa. Agora, cheguei ao final de um romance, que não é romance, que tem quase mil páginas [a série “Inferno Provisório”], com um monte de histórias que se entrecruzam. Penso que aquilo não é um romance, mas também não é um livro de contos.

Realidade e ficção
Sinceramente, não tem nada de autobiográfico nas minhas histórias. Absolutamente nada. Mas isso também não é verdade. Tenho uma teoria estranhíssima: eu, como escritor, tenho um papel muito limitado e secundário, quando sento para escrever. Acredito que exista uma memória coletiva, que eu então visito e trago dela essas histórias que de alguma maneira me convém. Escrevo livros que são lidos, e eles voltam a realimentar a memória coletiva.

De onde saem as histórias
Não anoto nada, nunca. É uma porcaria, porque adoro quando me dão de presente aqueles moleskines. Mas não consigo. De alguma maneira, tenho um método de escrita muito estranho, porque gosto muito de escrever com o corpo inteiro. Falo que escrevo com os seis sentidos – mas não são seis, são cinco sentidos. Gosto de sentir o cheiro do que estou escrevendo, a temperatura, o gosto. Quero ver e ouvir o que estou escrevendo. É por isso que eu não anoto nada. Quando sento para escrever, essas histórias já me convenceram o suficiente para eu poder escrevê-las.

Geração 90
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Eu tenho um pouco de responsabilidade, inclusive na criação do rótulo “Geração 90”. De 1998 até 2002, um grupo de escritores se encontrava aos sábados em um porão de uma livraria em São Paulo. E lá a gente passava a tarde falando sobre um monte de coisa.

Era a “Geração 90”: Nelson de Oliveira, Fernando Bonassi, Marçal Aquino, eu, Marcelino Freire, enfim. Fora o Marçal e o Bonassi, quase ninguém tinha livro publicado. Aí o Nelson teve a brilhante ideia de nos intitular de “Geração 90”. Começamos, então, a falar para as pessoas que fazíamos parte da “Geração 90”. O livro [Geração 90: manuscritos de computador, antologia organizada por Nelson de Oliveira em 2001] veio depois, como uma realização desta ideia inicial. Depois do livro, a imprensa começou a falar, e viramos, enfim, a “Geração 90”. Mas nós não temos interesses comuns, nem estéticos, nem políticos, nem nada. Era simplesmente um encontro de pessoas interessadas em literatura. Depois que cada um começou a publicar, nos separamos. Mas não acho que exista uma “Geração 90”, estética e politicamente.

Literatura brasileira contemporânea

Leio tudo. Inclusive porque participo de júris de concursos, tenho obrigação de conhecer e ler. Não gosto de citar nomes. Gosto de pensar que existe algo que está se consolidando: um trabalho que vem da década de 1970, que foi o momento em que as coisas começaram a acontecer, uma tentativa de criar um mercado próprio, etc. Infelizmente, a década de 1980 teve problemas políticos e de inflação. Mas tem muita gente legal escrevendo – e muita gente ruim também. Há um mercado hoje, que existe, dá para pensar em sobreviver do mercado editorial.

Oficinas de Criação Literária
Não acredito que uma oficina de criação torne alguém escritor. Eu, inclusive, não chamo meus encontros de “oficina”. Esse termo para mim é meio mecânico. Chamo de “laboratório”, porque no laboratório existe a possibilidade de se misturar várias coisas. Na verdade, faço terapia em grupo. Primeiro tento fazer com que a pessoa descubra por que está ali. Depois, qual é a sua expressão de mundo, qual é o pedaço da memória coletiva que ela quer tratar. Por fim, que ela encontre uma voz própria para narrar o que quer narrar. Só isso. Não dá para fazer mais nada além disso. Exige-se que a pessoa que vai participar saiba que escrever é uma possibilidade entre muitas outras. Não é nem a mais interessante. Ele só pode manter-se num laboratório se tiver muita vontade mesmo, porque não é nem interessante. Existe uma ideia de glamour em torno do escritor, mas esse glamour é falso. É muito chato, como eu falei, dói as costas, os braços, você fica sozinho. Então, tem que ser uma coisa muito importante para a pessoa. Por isso também sempre digo para quem frequenta os laboratórios que eu faço, que não pode ter a ilusão de que vai sair de lá escritor. Vai sair de lá com mais dúvidas do que quando entrou.

Crise da literatura
Essa crise existe desde sempre, ou seja, é uma crise que não existe. Eu me lembro que na década de 1960, falava-se claramente, existiam estudos definitivos, sobre a morte do romance. Não havia dúvidas quanto a isso. E o romance não morreu. Na verdade, o que acontece é que sempre vai haver um monte de autores escrevendo, alguns vão ficar, outros não. Nós, no Brasil, estamos vivendo um momento muito importante hoje. Existe uma efervescência como em poucos momentos existiu no Brasil. Às vezes até fora da normalidade. Eu não vejo crise. Aqui em Curitiba, por exemplo, estou impressionado. Além dos escritores já consolidados, como o Tezza, o Castello, o Dalton Trevisan, tem uma nova geração: o Paulo Sandrini, o Miguel Sanches Neto, o Luís Henrique Pellanda. Tem um monte de gente.

O problema é que nós nunca tivemos oferta de cultura. Sempre tivemos uma defasagem muito grande entre a elite esclarecida e o resto da população. Pessoas que não poderiam ser leitores um tempo atrás, agora estão começando a entrar no mundo da leitura. Claro, a cultura não é uma coisa para todo mundo, mas ela tem que ser ofertada para todo mundo, porque aí pode surgir interesse. Nunca houve leitura no Brasil porque não era ofertada a leitura. É o primeiro momento que tem oferta, tem biblioteca, tem livros e tem pessoas que potencialmente vão estar interessadas. Por isso sou otimista.

Profissão escritor
Trabalho desde os seis anos de idade, então eu sei exatamente o valor do trabalho, quanto a isso nunca tive dúvida. O trabalho tem que ser pago. Em 1998, quando publiquei meu primeiro livro, fiz uma projeção para mim: Em dez anos iria abandonar o jornalismo para viver de literatura. Mas aconteceu uma coisa no meio do caminho: Três anos depois, eu publiquei Eles eram muitos cavalos, que foi um grande sucesso, com reedições contínuas. Então, em 2003, cinco anos depois do meu primeiro livro, consegui sair do jornal, onde ocupava uma posição bastante confortável. Meus amigos mais próximos tentaram me fazer ir ao psiquiatra antes. Mas eu pensei que, se não desse certo, voltaria ao jornalismo, sem nenhum problema. Mas eu queria tentar viver de literatura. Naquele mesmo ano, recebi propostas para escrever roteiros para a Rede Globo e para cinema. Mas nunca quis fazer nada disso. Eu queria viver de literatura, dos meus livros. Desde então, venho renovando o contrato comigo mesmo.

Revisões constantes
Nunca entreguei um livro para uma editora em que eu não tivesse trabalhado umas 15 ou 20 versões diferentes. Porque literatura é artifício, é uma coisa artificial. Então, o grande barato para mim é, a partir de um artifício, tentar ser o mais artificial possível, ao mesmo tempo que pareça o mais real possível. É o que Guimarães Rosa fazia. Por exemplo, às vezes ouço pessoas dizendo que o Rosa é genial, que no interior de Minas Gerais as pessoas falam assim e tal. Eu sou mineiro, conheci Minas Gerais inteira, e nunca vi uma pessoa falando como os personagens de Guimarães Rosa. A não ser o Manoelzão, que falava porque aprendeu nos livros do Guimarães Rosa, para se parecer com um personagem dele. É absolutamente artificial. No entanto, é tão bom, é tão genial que parece que é real e concreto.

Ler a própria obra
Sou muito narcisista nesse sentido, releio bastante. Todos os livros que publico, faço revisões. Não é nem questão de achar ótimo, ou maravilhoso, mas de tentar encontrar a palavra certa para aquela situação específica e tal. Eu penso que os livros que escrevi, gostei de ter escrito porque eu gostaria de ter lido esses livros. Não é pretensão, é porque essas histórias de alguma maneira estavam para ser escritas. Eu gosto de reler até para entendê-las, se elas funcionam em algum lugar e por que funcionam.