Um Escritor na Biblioteca - Ignácio de Loyola Brandão

Ignácio de Loyola Brandão

Ignácio abriu a temporada 2013 do projeto “Um Escritor na Biblioteca” contando um pouco de sua trajetória longa e brilhante na literatura brasileira. E em grande estilo. Mais de 250 pessoas se reuniram para ouvir o autor de Zero, que transformou o bate-papo em um show, contando histórias ao mesmo tempo hilariantes e dramáticas, como o episódio de seu aneurisma, diagnosticado em 1996 e que mudou – para melhor – a vida do escritor após uma bem-sucedida cirurgia.

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Desde 1956, quando saiu de sua cidade natal, Araraquara, rumo à capital São Paulo, Ignácio de Loyola Brandão sempre viveu da imaginação. Seja como jornalista, profissão que atuou durante algumas décadas, ou cronista, condição que ocupa hoje no jornal O Estado de São Paulo, Ignácio fez quase tudo utilizando as palavras. Em 39 livros, escreveu contos, cronicas, romances, biografias, relatos de viagem, memórias e narrativas infatojuvenis. Essas obras foram traduzidas para diversas línguas, como inglês, húngaro, alemão, espanhol, francês e italiano. O autor também teve livros adaptados para o cinema e para o teatro. Ganhou duas vezes o Prêmio Jabuti.

Ignácio também falou sobre a sua grande paixão, o cinema, e seu fascínio pelo clássico Oito e meio, longa de Federico Fellini visto pelo escritor brasileiro 112 vezes desde 1963. “O cinema está presente em todos os momentos da minha vida”, diz o escritor, que ainda revelou a influência de Fellini em um de seus principais romances, Zero.

Aos 77 anos e um dos escritores mais prolíferos do atual cenário, Ignácio deixou uma mensagem de otimismo ao público. “Eu me alegro muito em fazer parte desses bravos e humildes lutadores, que tentam definir o homem brasileiro, entender o que é vida, o que é o país, o que é a morte, enfim, entender por que estamos aqui. Como nunca se consegue, vou escrever até o final, até completar 104 anos e for visitar o Niemeyer.” Confira o papo.

Biblioteca em casa
Meu pai era ferroviário, quase operário. Um homem excepcional, porque na década de 1940, em uma cidade que não tinha livrarias, ele tinha uma biblioteca de mil volumes comprados com muito sacrifício e com muita economia. Ele, por exemplo, nunca tomava cerveja no domingo, porque era mais caro, então ele guardava o dinheiro. Lia uma notícia sobre um livro no jornal, a livraria era em São Paulo, ele economizada o dinheiro e dava para para o maquinista do trem, porque na estrada de ferro todo mundo se conhecia. Essas pessoas levavam o trem para São Paulo em um dia, passavam na livraria, pegavam a encomenda e voltavam no dia seguinte. Essa biblioteca de meu pai tinha Machado de Assis, Os sertões, de Euclides da Cunha, em uma edição muito antiga, havia uma enciclopédia Jackson, que era a grande enciclopédia da época, fantástica, com 20 volumes. Fico um pouco emocionado, pois essa enciclopédia está comigo hoje e foi ela o princípio do meu livro infantil O menino que vendia palavras, que é uma memória de infância onde entra meu pai e minha professora, Lurdes Prado, que está viva até hoje. Vou até Araraquara e sempre a visito. Imagine você, tendo escrito tantos livros, tendo feito uma carreira em cima da escrita, conversando com a mulher que me ensinou a ler e escrever, é uma coisa incrível.

“No fundo, meu primeiro sonho foi ser diretor de cinema. No fundo, meu sonho continua sendo ser diretor de cinema.” 


Influência do pai
Meu pai estudou esperanto sozinho, através dos livros. Ele tinha um livro muito interessante, que ficava sempre escondido, que se chamava Nossa vida sexual, do Fritz Kahn, que eu sempre pegava para ler e que tinha umas imagens maravilhosas e terríveis. Nossa vida sexual está dentro do Zero, quando José narra sua formação. Eu aproveito e reaproveito, porque a literatura é feita de memórias, é feita de fantasia, é feita de invenções, é feita de realidade. São os quatro pilares da literatura. Nessa biblioteca, eu via meu pai voltando do trabalho, tomando banho, sentando durante meia hora, quarenta minutos e lendo. Eu via meu pai muito concentrado, muito alegre, rindo e, de repente, triste. Sempre me peguntava por que aquelas caras que meu pai fazia. Um dia ele me respondeu que a cara dependia do livro. Se era um livro engraçado, alegre, ele o satisfazia, se era mais triste, o comovia. Sentia que inconscientemente a literatura era uma coisa que tocava e mudava meu pai. Essa biblioteca ainda existe, está lá na mesma casa, onde meu irmão ainda mora.

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Outras bibliotecas
Outra espaço importante para mim foi a Biblioteca Municipal de Araraquara, que se chama Mario de Andrade. Foi lá que descobri que se podia ler de graça. Ela era muito boa. Lembro, inclusive, que tinha toda a coleção do Jorge Amado. Curiosamente, o Jorge Amado era trancado em uma gaveta e proibido para mulheres. Estou falando dos anos 1950. A gente pegava Cacau, Capitães de areia, etc. Os palavrões já estavam assinalados com lápis. Claro que Jorge Amado influenciou muito minha cabeça. Nessa biblioteca tive acesso a toda literatura americana, desde John Dos Passos, que agora está sendo reeditado, Hemingway, Faulkner, Thomas Mann, Charles Morgan, toda a coleção do Graciliano Ramos, Machado de Assis, Eça de Queirós. Nos reuníamos nessa biblioteca, pessoas como Zé Celso Martinez Correia, que criou o Teatro Oficina, talvez o mais revolucionário dos anos 1960, tinha também o Salinas Fortes, que foi um grande professor de filosofia e tradutor do Sartre, o Marco Antonio Rocha, grande jornalista de economia, o Sidney Sanches, que veio a se tornar advogado, desembargador e presidente do STF, e a Ruth Cardoso, ex-primeira dama brasileira — a mãe dela, inclusive, me deu aula. Essa turma se encontrava na biblioteca e ficava trocando figurinha. Foi ali que li meu primeiro livro sobre cinema e que, encantado, busquei mais livros até me tornar crítico.

Cinema
Também me tornei crítico porque não tinha dinheiro e descobri que, em um dia da semana, o crítico tinha uma chamada permanente e entrava de graça. Fiz minha primeira crítica, levei ao jornal e foi publicada. Fiz várias críticas até ser efetivado como crítico do jornal. Aí eu ia ao cinema todos os dias. O cinema influenciou toda minha literatura, que é pura imagem. Cada um de meus livros nasceram de imagens. As imagens ficam gravadas em minha mente, me perseguem e eu acabo transformando em palavras. Fui crítico de cinema até o dia que eu descobri uma coisa muito impactante: eu nunca tinha colocado nenhum espectador dentro do cinema, nem tirado. Nunca mais fiz crítica. Recentemente me foi pedido que fizesse resenhas. Disse que podia fazer resenhas de livros estrangeiros, de livros brasileiros não quero fazer, porque o dia que eu não gostar de um livro, não vou falar mal de um companheiro, porque eu posso não gostar, mas outra pessoa pode gostar, então jamais serei um resenhador de livros.


“Outro espaço importante para mim foi a Biblioteca Municipal de Araraquara, que se chama Mario de Andrade. Foi lá que descobri que se podia ler de graça.”



Imaginação
Eu me emociono com o meu professor de matemática, já morto, Ulisses Ribeiro, que foi uma figura fantástica. Fui fazer o científico, após ter terminado o ginásio, que era todo diferente, porque você tinha o primário, o ginásio e o científico. Científico era para exatas, clássico era para humanas, mas ambos eram cursos pré-universitários da época. No científico tinha matemática, química e física, três matérias mortais para mim. Entrei no científico. No último dia, o exame final era de matemática. Se reprovasse em uma matéria, teria que fazer de novo o ano inteiro, não tinha brincadeira. Eram treze matérias. Todo meu grupo já tinha ido embora para São Paulo, só faltava eu. Deixei a mala pronta, porque odiava Araraquara, não podia mais ver aquela cidadezinha chata, onde não acontecia nada, onde o bar fechava à meia-noite, as meninas todas queriam casar. Fiz o último exame de matemática, era um exame oral feito em um grande salão, chamado Salão Nobre, a mesma sala em que [Jean-Paul] Sartre fez a famosa conferência de Araraquara sobre existencialismo e marxismo. O professor Ulisses, que era magro, severo e um grande gozador, me perguntou se eu já estava com a mala pronta, pois sabia que eu queria ir embora. Ulisses perguntou de quanto eu precisava para passar. Nove ponto sete, respondi. Ele riu e me passou somente uma equação, era tudo ou nada. Quem não tem nada a perder, arrisca tudo. A gente está arriscando a vida o tempo inteiro, é sempre um risco. Ele me chamou para um canto da sala, colocou uma equação na lousa. Podia ser hebraico, aramaico, hieroglifo, eu não tinha a mínima ideia do que estava lá. O professor me pediu que olhasse para a equação. Vi diversas alunas da classe normal, aquela que forma professoras. Olhei aquelas menininhas lindas, cheirando sabonete, me olhando e olhando para a equação, e pensei: “Posso fazer tudo, menos feio”. Cheguei à lousa e comecei a colocar todos os símbolos matemáticos que vieram à cabeça porque era bonito, inventei um bando de fórmulas e terminei. Até hoje, quando volto a Araraquara e encontro uma daquelas meninas, já avós, me dizem que nunca esqueceram daquela manhã. Nem eu, respondo. O Ulisses corrigiu a equação, me deu nota dez. Fomos para a mesa, sentei e falei que sabia que somente o lado direito da nota que valia, falei que não poderia fazer feio lá na frente, “além de repetir de ano, ririam de mim”. Ainda asim, o professor manteve a nota, “é dez pelo delírio, pela invenção, pela fantasia e imaginação. Vai embora Ignácio, porque seu mundo é o da imaginação.” Ele manteve a nota. Aquele professor olhou dentro de mim e sabia que meu mundo era outro. Daquela tarde de 1956 até esta noite aqui em Curitiba, vivi da imaginação, com toques de realidade. Esse é o professor que eu gostaria que pudesse ter em todo lugar do Brasil.

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Solidão no fundo da agulha
É um livro muito querido. Foi feito pela Fundação Carlos Chagas, uma coisa toda especial dentro de um projeto chamado “Livro para Todos”. É um dos meus livros mais bonitos, bonito graficamente, pois tem fotos e um CD com músicas. A Fundação Carlos Chagas é instituição que consegue doações, patrocínios, etc., e forma bibliotecas, que são enviadas para cidades com menos de 20 mil habitantes. É uma coisa muito interessante. Um projeto que já tem quase três anos e sempre tem uma madrinha, um padrinho. No primeiro ano foi a Lygia Fagundes Telles, no segundo, eu. Este ano o padrinho é o Milton Hatoum. Em uma reunião desse projeto, ouvi no rádio de uma secretária um bolero. E nessa hora falei para um das diretoras: “Nossa, agora fui remetido a Araraquara, em um domingo a noite, sentando em frente ao clube, ouvindo a domingueira. Não podia entrar no clube, mas adorava a orquestra e o cantor de bolero, que era o melhor da região”. Ela me perguntou se eu já havia escrito sobre isso, falei que não, então me perguntou se eu tinha outras lembranças com músicas. “Se eu fizer um esforço, tenho”, disse. Aí fiquei pensando naquilo, e ela me falou para fazer um livro sobre isso. Já que a Rita [Gullo], minha filha, que estudou canto lírico, desistiu e foi tentar música popular brasileira, eu quis que ela cantasse as músicas sobre as quais escrevi no livro. Durante nove, dez meses eu escrevi, reconstituindo momentos e, quando a memória falhava, eu inventava.

Outras canções
Em 1978 eu tinha separado da minha primeira mulher e fui para Cuba. Fiquei lá quarenta dias, onde participei de um juri do prêmio Casa de las Americas. Estavam presentes Fernando Morais e a mulher, Chico Buarque e a Marieta Severo, eu e Wagner Careli. Foi o primeiro grupo que conseguiu ir para Cuba em plena ditadura. E uma noite, em uma cidade do interior, onde estávamos confinados em um hotel para lermos os originais, fui para a beirada de um lago junto com uma jornalista mexicana chamada Irene. Estávamos ali e começou a nascer uma coisa muito gostosa entre nós. Nesse momento ouvimos a Mercedes Sosa cantando a música “Alfonsina e o mar”, que é uma música maravilhosa sobre uma poeta chilena ou argentina, que teve um câncer e se suicidou entrando no mar. Essa canção da Mercedes me perseguiu a vida toda, até recentemente. A Irene foi uma pessoa muito curiosa, porque o sonho dela, aos 24 anos, era ir para a Nicarágua lutar com os sandinistas. E ela foi. Anos depois, em um dos aniversários da Revolução, um grupo de intelectuais foi convidado para ir a Manágua. Também fui. Eu estava no palanque e havia uma multidão de umas 500 mil pessoas. No meio de toda aquela gente eu vi a Irene. Era uma loira de olhos verdes. Ao lado dela tinha um cara com um fuzil nas costas. Do palanque eu acenava, mas ela não respondia. Desci e me meti no meio daquela multidão na direção dela, porém fui sendo empurrado até sair do meio da multidão. Nunca mais vi Irene. Será que era mesmo Irene que eu vi? Então esses pequenos mistérios eu deixo dentro deste livro, muitas dessas coisas do que é e não é, do que a gente quer ver e do que não quer ver. 

“De 1956 até esta noite aqui em Curitiba, vivi da imaginação, com toques de realidade.”


O que é literatura?
Literatura é um pouco de reconstituição da vida, um pouco de você tentar se encontrar, um pouco de você procurar os outros. Um pouco de você tentar saber o que é a vida, tem sentindo ou não tem? E a morte? Eu já estive à beira da morte e recuei. Não passei para o lado de lá. Em 1996 descobri que tinha um aneurisma cerebral, coisa que ninguém descobre, porque aneurisma não tem sintoma. Na medicina, é chamado de assassino silencioso. Quando ele dá o sintoma, que é uma dor de cabeça fortíssima, ele já explodiu na sua cabeça e você parte. Um dia fazendo um exame de rotina, o médico achou o aneurisma na artéria cerebral direita. Ele falou que não era grande, dava para conviver com isso, mas a qualquer momento ele poderia estourar. Me informei da cirurgia, mas disse que não faria. Quando eu ia saindo, ele chamou minha mulher e disse a ela que em dois dias eu estaria ali no consultório novamente. Em três dias eu voltei. Enquanto andava na rua, ia imaginando em qual esquina ia cair. Na redação da Vogue, onde era diretor, ficava me perguntando quando ia cair em cima da máquina. Acabei operando e resolvi escrever sobre essa experiência, de acordar e não saber se estava morto ou vivo. Acordo em uma UTI, ainda meio sonado com a anestesia, 13 horas de cirurgia, e o médico querendo fazer uns exercícios, que eram bem bobos por sinal. E aí pensei que eu estava vivo e tinha passado por uma experiência, a qual eu precisava passar para o papel. Então escrevi Veia bailarina. A primeira versão desse livro era cheio de auto piedade. “Por que eu? Coitadinho de mim.” De repente, parei e pensei: “Porra, estou vivo”. Logo depois da minha cirurgia, morreu um repórter de O Estado de S. Paulo, com 24 anos, por conta de um aneurisma estourado. Alguém me avisou, não é misticismo não, fui avisado, descobri que tinha e estou aqui. Minha vida mudou. Eu era cheio de ansiedade, saia correndo para tudo, trabalhava sábado, domingo e feriado, não tinha férias. Depois da operação, nunca mais trabalhei nos finais de semana, tirei férias, passei a conviver mais com minha família, meus amigos. 

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Veia bailarina
O livro se chama Veia bailarina porque uma enfermeira estava tentando colocar um cateter em mim e não conseguia. Tentou uma, duas, três, quatro, cinco vezes e reclamou: “Ah, meu deus, o senhor tem veia bailarina”. Na hora eu estava meio dopado por uma pré anestesia. No meu bolso sempre tem minha cadernetinha. Saí da UTI e perguntei para a enfermeira o que significava veia bailarina. “Gíria de enfermagem”, disse ela. Poesia tem até no hospital. E me disse que era quando a veia dança, recusando a agulha. Esse livro acabou sendo muito usado por médicos, que o recomendam para quem vai passar por uma cirurgia de alto risco e muito evasiva. Então acabei fazendo livro de autoajuda, coisa que odeio.

Crítica de cinema
Fui, primeiramente, um crítico de cinema para me divertir. Sempre adorei cinema. O meu primeiro chefe, que era um velho jornalista de Araraquara, sempre dizia assim: “Para falar mal de um livro ou um filme, você está gastando espaço, então aproveite para indicar uma coisa boa”. Agora, quando eu não gostava mesmo, quando ficava irritado, para desafogar, eu fazia o que todo crítico faz: mete o pau. Crítico adora meter o pau. Eu adorava mais ainda utilizando palavras difíceis e técnicas, que era para o público não entender nada. Mas a crítica que eu gostava de fazer era para ressaltar determinados momentos. Uma luz dentro de um filme, uma canção, um diálogo. Sempre anotei muito diálogo de filmes, peças, frases de canções. Até hoje anoto, porque isso eu uso depois. Foi importante para mim, aprender a ver o filme uma primeira vez pelo puro prazer, e a segunda para tentar desconstruir o filme, onde eu ia analisando como o diretor fazia cada cena.

O sonho da direção
No fundo, meu primeiro sonho foi ser diretor de cinema. No fundo, meu sonho continua sendo ser diretor de cinema. Eu tenho tanto projeto, e um deles é dirigir um filme, porque sem sonho e sem projetos, a vida não é nada. Ainda faço meu filme. E meu filme será algo no tom, no estilo do Oito e meio, que já vi 112 vezes, desde 1963. Adoro cinema, mas também vejo muito DVD, porque em São Paulo está cada vez mais complicado ir ao cinema.

Anotações
Desde os 18 anos carrego uma cadernetinha comigo. Outro dia fizemos uma reforma no apartamento e começamos a achar coisas em armários. Minha mulher e minha filha foram recolhendo em uma caixinha as caderneta. Encontramos 4.912. Sei lá, qualquer dia eu coloco fogo nelas. Às vezes nem sei o que marquei lá.

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Zero
O Zero é um dos meus livros mais conhecidos, mais polemizados, mais traduzidos. Foi o primeiro romance brasileiro que enfrentou a ditadura, que falou como era a ditadura neste país, com prisão, com tortura, com os desaparecimentos, a luta armada, com tudo que estava acontecendo. Esse livro começou com o olhar de uma mulher. Eu estava em um restaurante típico, e quando olhei, tinha na janela da cozinha uma auxiliar olhando para o restaurante com o olhar mais triste que já vi. Um olhar melancólico, um olhar de solidão. E aquilo ficou na minha cabeça.

Rosa e José
Decidi que aquela mulher tinha que ter um nome brasileiro e a chamei de Rosa. Um personagem precisa de um contraponto, aí criei o José, que era um cara que não tinha emprego e ficava guardando um depósito de livros, e é nesse depósito que ele lê tanto livro político, que a mente dele se forma. E a ditadura comendo aqui fora. Eu precisa de um emprego para o José, é aí que entra o cinema. Fui ao cinema em uma tarde, pois tinha que fazer uma crítica para o jornal Última Hora. Não tive tempo de almoçar, então levei um sanduíche. O filme estava muito interessante e coloquei o sanduíche na poltrona ao lado. Quando virei para pegá-lo novamente, tinha um rato gigante o comendo. Quando sai, falei para o porteiro que um rato estava comendo meu sanduíche e ele me respondeu que estava cheio de ratos por lá e que até procuraram alguém que estivesse interessado em matar ratos, mas ninguém queria. Aí eu descobri a profissão do José. É a primeira frase do livro: “José mata ratos em um cinema poeira”.

A censura
Assim que começou 1964, cada empresa de comunicação tinha um censor. Para sair ou entrar, precisava da autorização deles. Tudo o que eles proibiam, eu, como editor de redação, guardava. Depois de um ano, quando tirei aquilo da gaveta, sabia que era tudo o que o país não tinha visto, tudo que o brasileiro não soube. O Zero é uma história oculta. E eu tinha centenas de histórias, então comecei a reescrevê-las. Ao pensar sobre qual seria a estrutura para o livro, assisti Oito e meio, que foi fundamental, porque sua estrutura tem absoluta liberdade. O [Federico] Fellini não se prendeu a uma narração com começo, meio e fim. Tem plano da realidade, tem plano da realidade imaginada, idealizada pelo personagem, tem o plano da infância, o plano do sonho, tem o plano da imaginação. Ele compõe um painel por meio de um diretor de cinema em crise de criação, porque o Marcello Mastroianni [principal ator do longa] é um cineasta que não consegue fazer um filme. Foi inspirado nesses vários planos que o Zero nasceu, o cinema me deu a estrutura do livro. Então o cinema está sempre presente em todos os momentos da minha vida.

Nobel
O Prêmio da Academia sueca é uma coisa tão aleatória, que não tem norma nem nada. De repente eles buscam um autor que nunca se ouviu falar. Não dá para saber. A grande vantagem do prêmio Nobel é o milhão de dólares que o vencedor leva. Mas há, nesta lista de ganhadores, grandes autores. Mas há também grandes autores que nunca ganharam o prêmio. É como a Mega-Sena, um para 57 milhões. No mundo deve ter muito mais de 57 milhões de escritores, então a gente luta contra isso. Mas Seria muito agradável de ganhar.

Paraná
Eu só gostaria de dizer que tem uma coisa muito gostosa entre minha carreira e o Paraná. No primeiro concurso da Fundação Paraná (Fundepar), de contos, em 1969, fui um dos ganhadores. O grande prêmio foi do Dalton Trevisan, e os outros foram para mim, Flávio José Cardoso e Lygia Fagundes Telles. Então, o primeiro concurso que eu ganhei na vida, um dinheirinho bom, foi aqui no Paraná.

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Objetivos

Literatura é, acima de tudo, prazer, sem isso, é bobagem. A literatura tem que ser também um divertimento. Claro que tem que ser uma obra bem construída, bem feita, com estilo e tudo mais. Porém, ela tem que tocar as pessoas. Literatura é emoção e sentimentos. A literatura, ao longo de sua imensa trajetória, sempre falou do homem e sempre falou de emoção. Desde Shakespeare, falando do ciúmes e dúvida, até Dom Quixote, que foi o primeiro romance estruturado da história, até Jorge Luis Borges, passando por Vidas secas, tudo isso é a condição humana colocada no papel. E eu me alegro muito em fazer parte desses bravos e humildes lutadores, que tentam definir o homem brasileiro, entender o que é vida, o que é o país, o que é a morte, enfim, entender por que estamos aqui. Como nunca se consegue, vou escrever até o final, até completar 104 anos e for visitar o Niemeyer.

Livro no lixo
Nós, que escrevemos, não temos a mínima ideia onde vai chegar o que a gente escreve. Eventualmente, encontramos um leitor, alguém que leu um livro, alguém que leu uma crônica, e assim você vai vendo que vale a pena escrever. Esse encontro também pode ser de uma maneira que emociona muito. Hoje, no começo da noite, no hotel onde estou, foram me entrevistar para uma revista. O fotógrafo Henry Milléo me levou uma fotografia. Ele fez um grande documentário sobre lixões e a vida das pessoas que moram neles. Em Telêmaco Borba o Henry tirou uma foto que me tocou muito fundo. Um menino do lixão que encontrou o meu livro Não verás país nenhum. Então, o livro vai para o lixo mas é recolhido por um menino semianalfabeto. O fotógrafo perguntou se ele havia lido o livro. O menino respondeu que leu um pouco, mesmo não entendendo muito, mas que queria lê-lo por completo, porque em determinado pedaço que havia lido, ficara interessado. Aos 94 anos, com cara de 77, ainda vale a pena escrever, para encontrar um momento como esse aqui em Curitiba.