Um Escritor na Biblioteca I Laurentino Gomes

Laurentino Gomes está popularizando a História do Brasil. O jornalista foi o convidado da edição de agosto do projeto Um Escritor na Biblioteca e contou, entre outros assuntos, como ocorreu sua “conversão” para o mundo dos livros, como autor. 

Da Redação
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                 Fotos: Kraw Penas
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Formado pela Universidade Federal do Paraná em jornalismo, passou pelas redações dos jornais Correio de Notícias, Estado do Paraná, Estado de S. Paulo, revista Veja, entre outros veículos, em três décadas de atuação na imprensa brasileira. 

Ainda na revista Veja, Laurentino preparou um especial sobre a chegada da corte de D. João VI no Brasil. O projeto foi cancelado, mas ele ampliou a proposta e lançou, em 2007, o livro 1808. O público brasileiro reagiu positivamente à proposta e Laurentino teve de pedir demissão da Veja.

O sucesso de 1808, obra sobre a fuga da corte de D. João VI para o Rio de Janeiro, foi imensa e teve continuidade em 1822, livro sobre a independência do Brasil, e posteriormente no terceiro volume da série, 1889, obra sobre a proclamação da República. A trilogia rendeu seis prêmios Jabuti, o mais importante da industria editorial brasileira, ao autor e vendeu, ao todo, cerca de 2,5 milhões de exemplares.  

Atualmente ele prepara um livro de uma nova trilogia, desta vez sobre a escravidão no Brasil. Coincidência ou não, Laurentino saiu das redações praticamente no mesmo período que tiveram início transformações irreversíveis na imprensa, com redução do espaço de impressos e ampliação de conteúdos em plataformas digitais. E, mesmo fora das redações, ele segue fazendo jornalismo, afinal, cada livro da trilogia é uma grande, uma ampla reportagem.

A boa aceitação de seus livros, inclusive, é creditada à pesquisa, que inclui leitura de documentos, viagens, entrevistas, reflexões, mas, principalmente, a linguagem. Linguagem perfeitamente compreensível, a linguagem jornalística. 1808, por exemplo, foi eleito o melhor ensaio de 2008 pela Academia Brasileira de Letras. Pós-graduado em  administração pela Universidade de São Paulo, com dois prêmios Esso de jornalismo, Laurentino ocupa a cadeira 18 da Academia Paranaense de Letras e, principalmente, é consagrado por milhões de leitores e leitoras do Brasil, que por meio de seus livros estão revisitando e até mesmo descobrindo a história.

Maringá
Em 1976, vim de Maringá para fazer a faculdade de jornalismo em Curitiba. Não conhecia virtualmente ninguém aqui. Então, o que eu fiz? Virei um rato desta biblioteca. Passava manhãs inteiras lendo. Li coisas maravilhosas aqui. Então, para mim, é muito emocionante entrar na Biblioteca Pública do Paraná, me remete à época em que tudo começou, em que a vida era um mar de possibilidades, muita insegurança em relação ao futuro, ao que iria fazer, começando minha carreira jornalística — aliás, nem começando. Ainda estava estudando. Mas tenho um especial carinho por esta biblioteca. E desde então passei por bibliotecas que marcaram muito a minha vida.

Biblioteca particular
Hoje devo ter uns 3 mil títulos em casa. Mas essa biblioteca já ocupou mais espaço do que deveria. Aliás, os livros tomaram lá uma sala enorme, tive que fazer várias prateleiras novas. É uma biblioteca muito especializada, com muita coisa de história do Brasil. Até porque é o tema com o qual venho trabalhando nos últimos 11 anos. Quando não estou trabalhando nos meus livros, gosto de ler ficção. Trabalho com não ficção mas quando não estou trabalhando gosto de ler ficção, ou poesia. Então, tem muito livro de poesia, muito romance, muita literatura brasileira. Porque é aí que eu me renovo, que aprendo a  escrever. É lendo ficção. A não ficção leio por obrigação, por trabalho. Caso contrário, não.

Reportagem
Sempre gostei da editoria de geral. Embora tenha trabalhado com política, economia, sempre gostei daquele “miolão” do jornal ou da revista, onde tem de tudo um pouco, onde tem medicina, saúde, turismo, educação, ciência, astronomia. Aprendi muito. Eu diria que uma boa parte do que faço hoje, que transfiro para os meus livros, um olhar bastante amplo sobre a história do Brasil, que não fica só na literatura acadêmica, tem a ver com o aprendizado que tive no trabalho de reportagem da área de geral. Acumulei uma quantidade muito grande de conhecimento geral na minha vida. Sei um pouquinho de astronomia, de ciência, de medicina, de educação e assim por diante. Acho isso fascinante. Quando você se empenha nessa profissão, ela te transforma profundamente como ser humano. Você adquire uma amplitude de visão de mundo, de conhecimento de mundo e do ser humano, que é nossa matéria-prima.

Conselho
Eu tive uma colega aqui em Curitiba, Teresa Urban, já falecida, que era uma pessoa de uma vida muito sofrida. Tinha sido exilado política, torturada durante o regime militar. Trabalhei com ela na redação do Estadão. Eu era muito jovem e uma vez ela me falou uma coisa que eu trouxe para a vida toda: “Laurentino, o dia que você perder a capacidade de se emocionar com o ser humano que está na sua frente, que você está entrevistando, muda de profissão, porque essa é a essência do jornalismo”. A nossa matéria-prima são as pessoas. Cada ser humano, cada um desses sete bilhões e meio de seres humanos têm uma história única, extraordinária, maravilhosa, surpreendente. O papel do jornalismo é justamente trazer à tona essa história que às vezes está escondida.

Primeiro projeto
Eu trabalhava na Veja, que ia fazer uma série de especiais de história do Brasil. Fiquei encarregado de apurar um deles, que era a vinda da corte de D. João para o Rio de Janeiro e o projeto foi cancelado. Fiquei chateado num primeiro momento, mas percebi que havia uma oportunidade de transformar aquele projeto num empreendimento pessoal. Foi o que fiz. No jornalismo, temos um outro jargão que é o chamado gancho: a oportunidade de se dedicar a um determinado assunto porque naquele momento o leitor estará mais preparado para ler, se interessar em relação a esse assunto do que em outro momento. E havia uma efeméride no horizonte, que eram os 200 anos da chegada da corte de D. João ao Rio de Janeiro. E aí decidi publicar um livro. Agora, olhei muito para o que estava acontecendo fora do Brasil. Esse trabalho que faço é o que lá fora se chama, genericamente, de divulgação científica. Ou seja, você tem uma linguagem, um conhecimento acadêmico, que é muito profundo, muito segmentado, muito especializado e está cada vez mais especializado. Trata-se de uma linguagem intracorpuris, vamos dizer assim, que você filtra e decifra para um público mais leigo e mais amplo que não domina essa linguagem. Nós temos a obrigação de sermos didáticos, simples, na linguagem. E é o que tenho feito na história do Brasil. E a acolhida do público tem sido realmente uma surpresa para mim. Nunca imaginei que livro de história do Brasil pudesse ter essa acolhida. Acho que nós temos realmente um desafio grande de linguagem no Brasil. O Brasil é um país que vem se transformando muito rapidamente, tem novos leitores, novos estudantes. A gente precisa usar uma linguagem mais acessível, mais generosa com esses novos entrantes no mercado editorial brasileiro. Acho que é muito importante enfrentarmos adequadamente esse desafio de linguagem.

Sucesso
Acho que o brasileiro tem uma certa aversão ao sucesso. Percebo, por exemplo, uma reação muito grande ao meu trabalho — não pelo conteúdo dos meus livros, mas pelo fato de ser um best-seller. É como se o best-seller fosse algo menor. E que a literatura boa mesmo é aquela de nicho, com poucos leitores. Aliás, já ouvi isso em feiras literárias, escritores falando: “Escrevo para poucos”. Como se isso fosse um grande negócio. Eu pergunto: “Mas por que você não consegue fazer uma obra e ter uma linguagem que atraia um número de leitores?” Até porque nós já tivemos escritores no Brasil que fizeram isso muito bem. Jorge Amado, Fernando Sabino, Erico Verissimo. Existe uma galeria enorme de bons escritores no Brasil que fizeram boa literatura e conseguiram ter sucesso de venda. Sucesso popular. São inúmeros exemplos. Mas hoje percebo que as pessoas reagem um pouco a isso. Mas com uma certa razão também. Tem muita literatura ruim nas listas de best-sellers. Não vou dizer também que isso é um erro de avaliação, mas acaba afetando um pouco meu trabalho. No começo eu ficava um pouco incomodado, como se o meu trabalho fosse um trabalho menor pelo fato de ter tido um sucesso de vendas.

Mudança de rota
Estou escrevendo agora o primeiro livro da trilogia sobre a história da escravidão e tem capítulo que já mudou de posição sete ou oito vezes. Tinha capítulo que estava no cinco, foi para o 18, depois para o 27, voltou para o 12. Os capítulos passeiam pelo livro e não respeitam o planejamento inicial. Não adianta você planejar o livro, “vou fazer essa sequência assim”, porque no meio baixa um santo que fala “esse capítulo não é aqui, é lá”. 

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1808
Foi isso o que aconteceu com 1808 . Quando comecei a fazer o livro, o propósito era escrever uma biografia do Luiz Joaquim dos Santos Marrocos, que é um bibliotecário. Ele trabalhava na Real Biblioteca, em Lisboa, onde hoje é o Palácio Nacional da Ajuda. A biblioteca continua lá, no bairro de Belém, e na véspera da partida da corte o Luiz Joaquim dos Santos Marrocos foi chamado às pressas e recebeu a ordem de empacotar todos os livros da Real Biblioteca de Portugal. Que era uma grande curiosidade, porque embora Portugal fosse um país bastante conservador, atrasado, um país muito monolítico nas ideias, que tinha se colocado como um bastião da contrarreforma protestante e virou um lugar muito dogmático, os reis de Portugal tinham o hábito de colecionar livros e documentos antigos. Os embaixadores portugueses, na Europa toda e ao redor do mundo, tinham a missão de identificar obras raras e comprar para o rei de Portugal. Isso era uma política de estado. Então essa biblioteca era um dos grandes acervos bibliográficos da época, em 1807, lá no Palácio Nacional da Ajuda.

O Bibliotecário
O Joaquim dos Santos Marrocos cuidava desse acervo. Um emprego que eu adoraria ter. Ele foi chamado às pressas, empacotou os livros que pôde, levou para o cais de Lisboa, para a Ribeira das Naus, e não deu tempo, porque as tropas de Napoleão estavam chegando. Os livros ficaram abandonados no cais de Lisboa, encaixotados. E chovendo. Chovia muito no dia que a corte embarcou. Os franceses chegaram e, além dos livros, tinha prataria e o ouro das igrejas. Claro que eles pegaram a prataria e o ouro das igrejas, e devolveram os livros para os portugueses. Os soldados de Napoleão não estavam interessados em livros. E esses livros começaram a chegar no Brasil em três remessas consecutivas, a partir de 1809 até 1811.

Mudança
Depois de o livro já entregue à editora — o título seria Os segredos da corte, que eram segredos do Luiz Joaquim dos Santos Marrocos —, baixou um santo em mim e liguei para o editor: “Vamos mudar, vamos por 1808, como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil”. E aí mudou o Laurentino, porque o livro teve tal repercussão que seis meses depois pedi demissão do meu emprego, coisa que jamais imaginava que faria. A obra captura e transforma o criador. 

Ideias
Depois que terminei essa trilogia [1808, 1822, 1889], pensei em fazer dois projetos novos. Um seria sobre a Guerra do Paraguai, que acho que é um tema muito importante, mal contado, embora existam bons livros — como Maldita guerra, do Francisco Doratioto, um excelente livro. O outro seria uma biografia do Tiradentes. Mas aí fui me convencendo que o assunto importante mesmo era a escravidão. Primeiro que ele permeia esses três livros que já lancei. Se você observar, têm vários capítulos sobre escravidão e eu me dei conta de que me envolvi mais profundamente ao fazer esses capítulos do que os outros na verdade. E que, para explicar o Brasil de hoje, era importante olhar para a escravidão menos do que para Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, para os generais de 64. Até porque também já existem outros bons livros. Por exemplo, recomendo muito a biografia do Lira Neto, os três volumes sobre o Getúlio Vargas, que cumprem exatamente esse papel. O Lira Neto começa na Proclamação da República, finalzinho ali, na infância do Getúlio e vem até 1954, com o suicídio. E a outra série maravilhosa é a do Elio Gaspari, sobre a ditadura, As ilusões armadas, que são quatro livros que também cobrem esse período.

Escravidão
Os dois personagens que considero entre os mais importantes no Brasil do século XIX, José Bonifácio de Andrada e Silva e Joaquim Nabuco, já falavam isso. Em 1823, o José Bonifácio apresentou um projeto à assembleia constituinte prevendo acabar com o tráfico negreiro e a abolição gradual da escravidão. E ele diz, ali, que o Brasil não conseguirá ser uma sociedade organizada, funcional, digna dos nossos sonhos, enquanto tiver escravidão. Essa foi a principal razão pela qual D. Pedro fechou a constituinte, outorgou a Constituição de 1824 e mandou o José Bonifácio para o exílio na França. Porque, para a aristocracia rural e escravagista, era insuportável essa ideia. O Brasil estava viciado em escravidão. O Brasil foi o último país do hemisfério ocidental a acabar com o tráfico negreiro, em 1850, com a lei Eusébio de Queiroz, e a acabar com a escravidão em 1888, com a lei Áurea. Ou seja, o Brasil resistiu o quanto pôde acabar com a escravidão. E o Joaquim Nabuco dizia que não adianta abolir escravidão, era preciso acabar com os traços da escravidão na sociedade brasileira, ou seja, educar os ex-escravos, seus descendentes, lhe dar terras, oportunidades, incorporá-los à sociedade brasileira na condição de cidadãos de pleno direito, com iguais oportunidades. O Brasil não fez isso. O Brasil aboliu a escravidão e abandonou seus escravos e a sua população negra à sua própria sorte. Ou seja, empurramos com a barriga um problema gigantesco que nós acumulamos ao longo de 350 anos. E tanto o José Bonifácio quanto o Joaquim Nabuco diziam: “Isso não vai dar certo. Se a gente não promover essa população, o Brasil vai virar uma coisa esquizofrênica para o resto da sua história.” E é o que nós temos feito até hoje. 

Novo projeto
Já fiz os três títulos dos meus novos livros: Todos vão se chamar Uma história da escravidão. Volume I: Do primeiro leilão de escravos à morte de Zumbi dos Palmares. O segundo: Da corrida do ouro em Minas Gerais à chegada da corte do D. João no Rio de Janeiro. E o volume III: Da independência à Lei Áurea. Embora a forma esteja preservada, tem muita história interessantíssima, pitoresca. Aconselho vocês a lerem. É interessante. Não é tão pesado quanto se imagina o tema. O primeiro sai na bienal do Rio de Janeiro, em setembro de 2019, outro em 2020 e o terceiro em 2021. Acabei de escrever o vigésimo primeiro capítulo, de um total de 25, do primeiro livro. Quero entregar para a editora até dezembro, ou janeiro, aí começo a escrever o segundo. Depois o terceiro. Tem muito trabalho pelo frente.  

Chocante
Vou antecipar uma coisa do próximo livro que me deixou realmente chocado. A mortalidade nos navios negreiros era uma coisa absurda. Não só nos navios negreiros, a mortalidade do tráfico era uma coisa, assim, inacreditável. Existe um pesquisador americano chamado Joseph Miller, que escreveu um livro chamado Way of death [O caminho da morte], em que ele estimou: de cada dois africanos capturados em guerras, sequestros, razias, no interior da África, só um chegava vivo no litoral para ser embarcado no navio negreiro. A mortalidade nos navios negreiros era em torno de 20% até chegar ao Brasil. Aqui, mais 5% morriam antes de ser leiloados. E mais 20% morriam nos três primeiros anos nos seus locais de trabalho. De maneira que, de cada três escravos capturados na África, só um sobrevivia mais de três anos na chegada ao Brasil. E o que mais me impressionou foi o número de mortos no mar. Morreram, ao longo de 350 anos, cerca de dois milhões de pessoas. Existem casos de navios negreiros que perderam mais de metade da carga — e jogavam no mar, todos os dias, de quatro a cinco cadáveres. Têm depoimentos que mostram que houve uma mudança nas rotas migratórias dos tubarões no Atlântico, durante o período do tráfico negreiro, porque era uma tal quantidade de pessoas que eram jogadas no mar todos os dias que os tubarões passaram a seguir os navios negreiros da costa da África, até o Caribe ou até o Brasil. Fiquei absolutamente chocado com isso.

Método
O que eu faço é um livro de não ficção, mas usando uma linguagem jornalística, uma maneira de construir o texto para capturar e reter a atenção do leitor. Por isso que uso esses títulos provocativos na capa — Como um imperador cansado, um marechal vaidoso e um professor injustiçado contribuíram para o fim da monarquia e a proclamação da república no Brasil. Um historiador acadêmico não usaria essa linguagem — aliás, não deve. O que eu estou fazendo? Eu estou lançado uma isca, tentando capturar o leitor pela capa do livro. E essa captura continua lá dentro, na forma como eu abro uma sequência dos capítulos. Alterno perfis de personagens — acho que sempre dão um refresco no livro quando você joga luz num personagem — com narrativas de acontecimentos e às vezes uma análise um pouco mais estruturada sobre a escravidão, a monarquia, o latifúndio no Brasil. Nesse caso, também tenho que me prender às fontes. Então, por exemplo, quando falo da chegada da corte no Rio de Janeiro, abro o capítulo dizendo que na manhã do dia 8 de março de 1808 uma brisa suave soprava do oceano em direção ao continente refrescando o verão carioca, e que as pessoas estavam na rua, que o céu estava azul, tinha uns retalhos de nuvem no horizonte. Não estou romanceando, tem um personagem que conta exatamente isso, o padre Perereca, que foi uma testemunha. Abro com ele. Então uso uma linguagem literária, mas me prendo às fontes de referência. Não posso preencher lacunas de conhecimento histórico com ficção. Não posso florear. Não posso criar um ambiente que não tenha referência bibliográfica, referência documental, embora a linguagem que eu use seja literária, seja mais próxima da ficção.

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Rede social
Estou um pouco assustado com rede social. Acho que o ambiente está corrosivo, uma coisa de absoluta intolerância. Minha relação com rede social é um pouco esquizofrênica, porque preciso dela para capturar os leitores, especialmente os mais jovens. Se eu não estiver em rede social, os mais jovens provavelmente não vão se interessar pelo meu trabalho. E é lá que eu encontro essa turminha. Mas ao mesmo tempo é um ambiente tão hostil ao debate civilizado, à argumentação com o mínimo de bom senso, que às vezes tenho vontade de cancelar, parar com Twitter, com Facebook e nunca mais olhar rede social.

Politicamente correto
Existe uma história politicamente incorreta hoje no Brasil, que foi muito incorporada por essa nova direita, né?, que nos EUA chama-se alt-right [direita alternativa]. É uma direita muito preconceituosa, xenófoba e que tenta reescrever a história, porque acha que essa história foi capturada pela esquerda no ambiente acadêmico. É muito interessante porque, antigamente, se dizia que a história politicamente correta seria a história oficial, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e coisas assim. Aí, a esquerda promoveu uma primeira onda de história politicamente incorreta. Mas agora a direita incorporou essa bandeira, de fazer uma história politicamente incorreta, porque acha que a história foi capturada pela esquerda. É interessante isso. É um movimento muito pendular. Mas no que implica isso? Uma desconstrução como se na verdade tudo o que se estudou nos livros de história, cursos de graduação, pós-graduação, fosse falso. Como se houvesse uma agenda escondida no estudo e no ensino de história. E que na verdade tudo o que você aprendeu até agora, não existe.

Jornalismo
O fake news é um fenômeno brutal, ao ponto de ter influenciado as eleições nos Estados Unidos, a mais antiga e consolidada democracia do planeta, democracia representativa, com quase 250 anos. O resultado foi alterado pelo fake news, pelo trabalho das redes sociais. E isso está acontecendo no mundo todo. Mas isso é um fenômeno típico de momentos de ruptura — de ruptura produzida, inclusive, pela tecnologia, e não nos deve assustar. Os formatos tradicionais de jornalismo estão morrendo rapidamente. Recentemente, a editor Abril demitiu 600 pessoas e fechou 10 revistas. Eu trabalhei lá durante 22 anos. É assustador. Os jornais estão em uma queda drástica de circulação, há uma perda de audiência da televisão aberta, do rádio não segmentado. O que está em crise não é o jornalismo, é a forma de empacotar e distribuir a informação. Até porque o jornalismo, para mim, é a única proteção que nós temos ainda contra o fake news. Esse é o trabalho do jornalismo, ou seja, de apurar, ter credibilidade, ter marcas que tenham credibilidade junto aos leitores, telespectadores, profissionais que tenham essa imagem de credibilidade e que avalize. 

Jornalista e historiador
A história do Brasil sempre foi para mim uma segunda paixão, vamos dizer assim. Eu era jornalista do dia a dia, nas redações dos jornais e revistas onde trabalhei, mas sempre li muito sobre história do Brasil. Era, digamos assim, um hobbie meu. Até porque não existe tanta diferença entre o jornalista e o historiador quanto se imagina. Os dois têm o mesmo objetivo, que é olhar um acontecimento, um personagem, um fenômeno, decifrá-lo e tentar chegar o mais próximo possível da verdade desse personagem, desse acontecimento e relatar. Claro que o historiador faz isso com método, com processo de validação no ambiente acadêmico, nas mesas de mestrado, de doutorado, onde estão seus pares. E o jornalista faz isso numa velocidade muito maior no dia a dia. Tem que fechar e publicar matérias em questão de horas às vezes. Então eu diria que o historiador tem a oportunidade de ser mais consistente na sua pesquisa, de mergulhar mais fundo. O jornalismo, não. Mas diria que o nosso trabalho é muito parecido. O historiador é o repórter que olha pro passado e o jornalista é o repórter que olha para o presente.  

Historiadores
Minha relação com os historiadores está muito boa, historiadores que eu respeito muito tem falado do meu trabalho — José Murilo de Carvalho, Lilia Moritz Schwarcz, Jean Marcel Carvalho França, entre outros, fizeram resenhas elogiosas ao me trabalho. Mas, no começo, o problema é que não criticavam o conteúdo dos meus livros, mas a minha qualificação. O fato de eu não ser historiador me desqualificava automaticamente para escrever livro de história do Brasil. Então, supostamente, se tivesse feito um curso de graduação numa faculdade de história estaria qualificado. Agora, o fato de eu ter pesquisado 100 livros para escrever, não, isso não qualificava.

Plural
Mas acho que isso primeiro tem a ver com a disciplina de história, que é uma disciplina que tenta se legitimar, se qualificar no Brasil ainda hoje. Como o próprio jornalismo também. Então, a primeira cosia que você faz é defender seu território. A história, primeiro, é uma disciplina que pertence ao conjunto da sociedade que a constrói. E seria, por exemplo, injusto impedir que um bom arquiteto escrevesse história da arquitetura, um bom médico escrevesse história da medicina, um bom astrônomo escrevesse história da astronomia, e assim por diante. Ou seja, a história é muito plural, é múltipla. Ela tem facetas que o historiador sozinho não consegue dominar. O desafio do ensino da história do Brasil é tão grande que todo mundo que possa participar desse desafio é bem-vindo — seja jornalista, historiador, romancista histórico. Ao invés de brigar, a gente deveria somar esforços.