Um Escritor na Biblioteca: Elvira Vigna

Escritora carioca abre a série de entrevistas que Cândido começa a publicar com os autores que participam do evento “Um escritor na Biblioteca”
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Na metade dos anos 1980, o projeto “Um Escritor na Biblioteca” trouxe à Biblioteca Pública do Paraná grandes autores como Luis Fernando Verissimo, Helena Kolody, Fernando Sabino e Nélida Piñon. Quase duas décadas depois, a BPP retoma a interlocução com as principais vozes literárias do país, em encontros mensais com o público.

A partir desta edição, Cândido passa a publicar um resumo dos encontros, que já contaram com a participação de Cristovão Tezza, Elvira Vigna, Ana Paula Maia e Luiz Ruffato. No final do ano, as conversas serão publicadas em livro pela BPP.

Tradutora e artista plástica, Vigna acaba de ganhar o Prêmio Machado de Assis, concedido pela Academia Brasileira de Letras, na categoria ficção, com o romance Nada a Dizer.

Autora de sete romances, Vigna tem contos publicados em diversas coletâneas, revistas e jornais especializados. Formada em literatura pela Universidade de Nancy, na França, e mestre em comunicação pela UFRJ, a autora também teve experiências no jornalismo, como repórter da Folha de S. Paulo e d'O Globo.

Durante o encontro, a autora falou sobre sua relação com as bibliotecas e a importância desses espaços na sua formação como leitora e escritora. “A leitura não é exatamente um lazer, embora também o seja, mas uma possibilidade de atrito, de fricção”.

Vigna também teceu comentários interessantes sobre o hábito de leitura em bibliotecas. Para ela, é preciso que o leitor “saia da zona de conforto de sua casa”, para que tenha o enfrentamento com “o novo”.

“Morei um tempo nos Estados Unidos e lá eu frenquentava uma biblioteca pública, em Nova York, que se tornou a extensão da minha casa. Eu me mudei para São Paulo em outubro de 2007, em novembro, fiz minha inscrição na biblioteca da Vergueiro, que era um lugar que eu ia pra ficar. Sentava na cadeirinha dura, onde não podia falar alto, e lia, porque aquela leitura me obrigava a uma relação com o novo, que dentro da minha casa eu não tinha, pois estava protegida”.

Confira a seguir os melhores momentos do papo, mediado pela jornalista Mariana Sanchez.

Formação como leitora
O escritor – e o artista em geral – é um inadaptado, um esquisito. Essa inaptabilidade leva alguns de nós à leitura. Vejo isso com tranquilidade, é como se cada um de nós representasse individualmente um processo muito amplo: o processo da própria formação da escrita e da ficcionalização como uma estratégia de sobrevivência, de cultura humana. Essa falta, aquilo que não dá certo, é o que nos leva a escrever, a ser inteligente, procurar o que não temos.

Eu fui muito tímida, comecei a ler muito menina. Tenho uma irmã mais velha, que ganhou uma bicicleta no natal. Era um presente enorme. Meus pais, então, tentaram fazer uma correspondência para mim, mas escolhi em livro. Devia ter uns oito ou nove anos. Não existia convívio com livros na minha família. Para mim, era a minha esquisitice mesmo que me levava para dentro dos livros. Lá em casa existia uma biblioteca, com títulos encadernados, dicionários, tinha uma coleção juvenil muito na moda, mas só para expor mesmo, não era um ambiente muito ligado à leitura, não.

Bibliotecas
Quem teve um papel importante foi a Aliança Francesa. Aí entra a parte da biblioteca, que para mim é uma coisa muito marcante. Em geral, quando se fala em biblioteca, as pessoas pensam dentro de um escopo capitalista, de que biblioteca é bom porque tem livro barato, ou de graça, aí você não precisa comprar. Não é bem isso pra mim. Claro que isso é importante, democratizar a leitura, evidente, mas esse não é o principal ponto. Entra um pouco na questão do espaço público e privado. Aí eu teria que falar um pouco sobre o que eu acho que é a leitura. Para mim, leitura é uma exposição, uma maneira de sair de uma zona de conforto. A leitura não é exatamente um lazer, embora também o seja, mas é uma possibilidade de atrito, de fricção. Quando se lê num ambiente controlado, em que se domina desde a temperatura do ambiente até os gestos, em que se está completamente à vontade e nada atrapalha, há uma determinada posição frente à leitura. Uma posição de se reassegurar das certezas interiores.

A arte, e a literatura, são justamente o contrário disso. A função da leitura é uma função que está se perdendo. Uma vez que se evita o espaço público, colocando o fone de ouvido para não ouvir o barulho, só andando de carro e não a pé, está se perdendo a possibilidade de atrito, de desconforto. E isso é essencial.

Espaço público de leitura
A biblioteca da Aliança Francesa sempre foi muito nuclear na minha vida, porque foi uma possibilidade de leitura fora de uma zona controlada. Tem que conter certos gestos, não pode falar alto. Aquilo te faz ler de uma maneira mais aberta. Há uma predisposição a abdicar de uma segurança em prol de uma mudança. Isso é uma coisa completamente fora de moda. Dispor-se a mudar, a se transformar, a ser um nômade, a caminhar. Eu falo isso e as pessoas acham que eu estou falando uma língua estrangeira. No entanto, para mim, biblioteca é isso, é um espaço público de leitura.

Morei um tempo nos Estados Unidos e lá eu frenquentava uma biblioteca pública, em Nova York, que se tornou a extensão da minha casa. Eu me mudei para São Paulo em outubro de 2007, em novembro, fiz minha inscrição na biblioteca da Vergueiro, que era um lugar que eu ia pra ficar. Sentava na cadeirinha dura, onde não podia falar alto, e lia, porque aquela leitura me obrigava a uma relação com o novo, que dentro da minha casa eu não tinha, pois estava protegia. Então, conscientemente, abro mão de uma proteção para poder experimentar o novo.

A biblioteca, para mim, é isso: um espaço duplamente público. Quer dizer, o livro já é um espaço público, na medida em que se procura nele o diferente. Se isso é feito dentro de um espaço também não controlado, a leitura é muito melhor do que seria no sofá de sua casa. O Antônio Cícero costuma dizer, e eu acho fantástico: “pensar é dizer não”. Isso resume muito bem: você diz não para você mesmo.

Preocupação com a leitura
A arte contemporânea saiu do seu ambiente tradicional. A literatura também saiu, só que as pessoas não admitem isso cabalmente. Então, se pegar a comunicação que existe hoje na internet, pode-se dizer que se trata de uma comunicação com preocupação estética, porque se escreve mal no blog, no post. Mas ninguém te lê. Então, não é aquele negócio assim: “eu escrevi um livro sensacional, que ninguém vai entender, só as gerações futuras.” Não. Internet é assim: uma escrita estética e ficcionalizante. Para começar, a pessoa, com o avatar criado por ela mesma para escrever, já é ficcionalizante em si. Estamos definindo literatura. Então, teríamos que assumir que se trata de uma forma literária. Que saiu do nicho literário tradicional, da mesma forma que a arte contemporânea saiu do seu nicho tradicional ao fazer instalações, performances, objetos que derretem, enfim, é o mesmo processo. Muito interessante.

Ficção e Realidade
Na minha literatura, tudo é real. Eu não invento uma vírgula. Tenho um livro, que não está publicado ainda, que se passa no Guarujá. Eu não invento um Guarujá, eu vou para o Guarujá, eu passo lá um mês trancada naquele lugar. Eu repito nome de rua, a quantidade de mosquito, as pessoas que moram lá, não invento nada.

Eu consigo falar do mesmo fenômeno na arte visual, que é mais claro. É a quebra da representação. Esse movimento de saída da arte do seu campo específico, invadindo e se misturando com outros campos, tem a ver com a quebra da representação. A representação é uma camisa-de-força que vem de muito tempo, e que as pessoas passaram a considerar como sendo assim, porque era assim, mas na verdade não foi sempre assim. Se pegarmos algumas manifestações artísticas da história da humanidade, vamos ver que não foi sempre assim. É uma tradição europeia que veio até nós. Hoje, há uma quebra da representação.

Estruturas
É bem complexo. Inclusive eu me orgulho das estruturas que uso, é um prazer particular meu. No romance A um passo, por exemplo, um personagem conta a história do outro. Então eu narro sobre a dificuldade de narrar. Em O Assassinato de Bebê Martê, há um crime e uma atuação mimética desse crime. Já em Às seis em ponto e Nada a Dizer, os narradores tentam contar uma história, mas não conseguem. Nada a Dizer é um livro que não acaba. A narradora não consegue, desiste de contar. Isso, de pegar o vivido, o real, e passar para os meus livros, é uma obsessão total.

Filtro da individualidade
Para mim, a maior dificuldade é achar a exata distância emocional do que quero contar. Em Nada a dizer, por exemplo, eu tive muita dificuldade em achar essa exata distância. Tive uma dificuldade técnica enorme, pois tinha que contar uma história de adultério, desmascarando qualquer possibilidade de que a história fosse cons
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iderada uma história bonita ou romântica. E minha dificuldade foi em escolher o narrador. Eu tinha três opções: o marido, que não me servia em termos de proximidade emocional, a amante e a mulher.

Um personagem que não pensa, que não tem angústia, não é um personagem bom pra mim, para ser narrador. E o homem da história era assim. Aí sobravam as duas mulheres. Para eu saber o que tinha acontecido no motel, eu tinha que ser a amante. Só que a amante era uma personagem que não aceitava a transformação, o desconforto, a mudança. Ela não perde nunca, não muda. Fica isolada, não está arriscando nada. Essa atitude é muito distante de mim. Então só sobrava a figura da mulher traída, com uma dificuldade enorme: como é que a mulher traída, que não estava no motel, ia saber o que aconteceu lá? Eu tive que dar uma solução.

Ficou até bom, porque a relação desta mulher com o cara ficou muito rica, porque os dois se estabacaram juntos, perderam a voz. O “nada a dizer” é dela e dele.

Prosa de fôlego
Prefiro romances. Não sei dizer por quê. Isso é bem amplo. Na verdade, eu tenho relacionamentos longos. Então eu acho que as histórias compridas me atraem. Tem a ver – o que é um pensamento não testado – com um processo de significação. Porque o tempo, o tempo curto, que é um tempo específico da imagem, do impacto da imagem, é um tempo que não me satisfaz, até em termos de pensamento. E o tempo narrativo, muito mais longo e sequencial, me dá um processo de formação de significação que para mim é mais satisfatório. É como eu penso. Eu não penso em impactos. Eu faço uma linha.

Histórias com enredo
Não é que eu não gosto, é que a gente é fruto de um momento histórico e não sai disso. No momento em que a gente vive, existe a produção não individualizada de enredos. Então, existe uma indústria de cinema e editoras especializadas que detectam os nichos. Aí, tem todo o departamento de pesquisa, de marketing, publicitários que viraram escritores às pampas e que trazem para o campo literário a ideia de que é preciso viver um produto. Existe uma construção que passa pelo enredo. Então, quando eu digo que não gosto de enredo, na verdade o que estou querendo dizer é que quero recuperar uma temporalidade, e é isso que eu faço nos meus livros. Algo que não é condizente com a tensão de um livro de aventura. Eu quebro esta temporalidade, em geral com uma estrutura dupla, algo acontece e as coisas andam, vão e voltam.

V.S. Naipaul
Ao falar em masculino e feminino, usa-se um conceito necessariamente datado, porque está se falando de um histórico. O homem detinha o poder e hoje está sendo contestado. Com isso, está precisando se reafirmar ou defender uma posição [Elvira comenta as declarações do escritor V.S Naipaul, que afirmou que a literatura produzida por mulheres não pode chegar “aos seus pés”]. E a posição de defesa do poder não é uma situação boa para a arte. A arte é boa para se modificar, para se abrir ao atrito, ao desconforto, ao novo. Uma pessoa que está numa posição social de ter que defender algo, faz parte de um grupo que não vai criar arte. Pelo contrário, a criação é vista como um risco, um perigo, e esse grupo que defende sua situação, defende na verdade o passado. Então, essas pessoas não criam. Mas, qualquer grupo, país, estrato social, que consiga se ver nesta posição de defender algo que está sendo impelido a uma mudança, pode falar disso e fazer um excelente livro. Só que ninguém fala.

Visão masculina da literatura
Homem nenhum chega para você e diz: “minha vida hoje está muito monótona, está ruim, eu não tenho mais adrenalina nenhuma, nada de interessante acontece, tenho uma situação banal, estou sendo massacrado por um trabalho que odeio, por uma relação em que não estou inteiro”. Ele não consegue falar disso. A noção dele de poder, ou de masculinidade, faz com que ele queira se ver, e se vender num livro, como alguém que viveu algo único, interessante, aventureiro, em que ele se tornou herói, mesmo que com o sinal trocado. Porque, mesmo com o herói da marginalidade, que vomita na Avenida São João, por exemplo, ainda é um herói. Ainda é o “ó do bobó”.

Um cara, qualquer um que esteja defendendo uma posição, não vai dizer que é banal, comum, frágil, de jeito nenhum. Se ele disser, dá um bom livro. Mas ele não consegue. Então, ele vai para o passado, inventa situações fantásticas, de rito de passagem, do menino para o rapaz, coisas incríveis que aconteceram. Ou então ele vai lá pra longe, Romênia, Cairo, coisas incríveis acontecendo no Cairo, e tal. Alôu! A tua vida hoje, como é que tá? Fala. É uma troca de experiências. É o tal do lugar público. Quero saber de você. Assumir que hoje não existe “Hemingway”, que não tem uma história fantástica para contar.

A não ser que se entre no espetáculo, mas se existir o mínimo de posição política e social de não querer se dar ao espetáculo, de querer fazer uma narrativa individualizada, o que te resta é assumir uma posição de mudança, de fragilidade. Isso, nos escritores atualmente, é muito raro encontrar. Em geral, é a procura da grande aventura, que não está acontecendo. Fala, fala que a tua vida é uma merda. Mas não falam.


Literatura infanto-juvenil
Uma vez, a Ione Milone Nassar, editora da Mercúrio Jovem, me perguntou como é que eu escrevia literatura para criança, e eu disse: “com raiva”. Ela ficou chocadíssima. Mas é um pouco isso. Tem um movimento de se sobrepor a uma falha. Essa noção de algo que escapa à linguagem, escapa à literatura, e, teimosamente, continua se escrevendo para tentar falar do que não pode ser falado. Fiz o primeiro Asdrúbal [Elvira escreveu, na década de 1970, uma série de livros infantis com base em um personagem chamado Asdrúbal, o Terrível], um pouco por influência da minha filha, que tinha acabado de nascer. Ocorreu-me falar com ela de uma maneira literária, então assim nasceu meu primeiro livro.

Escrever para adulto naquela época era muito complicado, porque tinha um problema de censura brabésimo. Então, escrevi o “Asdrúbal” [personagem], que é um monstro fascista, que não presta. Como era para criança, não tinha censura prévia. Saiu em 1971. E passei a década de 1970 inteira escrevendo, uns oito ou nove livros, se não me engano. Depois disso, parei. Achei que não ia escrever mais livros.

Jornalismo e editora
escritor

Eu trabalhava na AirFrance, viajava muito, e no final do meu primeiro relacionamento, mudei porque queria escrever. Passei a ser jornalista e arranjei três trabalhos: pela manhã, fazia releases e era tradutora do consulado do Marrocos, no Rio de Janeiro; à tarde trabalhava na Fair Play [revista masculina que circulou no final da década de 1960 e início dos anos 1970] e à noite no Correio da Manhã. Meu chefe na Fair Play era o Eduardo Prado, com quem eu acabei tendo meu segundo relacionamento. O Eduardo tinha feito aquele filme Edu coração de ouro, com o Domingos [Oliveira], e a gente não tinha um tostão, fomos morar num apartamento em construção porque não podíamos pagar mais aluguel. De repente, nós dois fomos demitidos da Fair Play. Aí, a gente tinha dois caminhos: se suicidar ou tentar arranjar outro trabalho, o que era muito difícil, por causa da Ditadura. Tinha muito jornalista desempregado, era uma coisa incomensurável. Nossa saída era tentar ser mais loucos do que já éramos: fizemos uma editora. Ou melhor, duas editoras. Uma para editar livros e outra para editar revistas.

Fui para os EUA, voltei para o jornalismo, fiz a correspondência para a Folha de S. Paulo em Nova York, no caderno de “Informática”. Nos Estados Unidos, fiquei com muita saudade do Brasil. Vi o Brasil de uma maneira que eu não tinha visto aqui. Então, eu precisei ir lá pra longe para ver o Brasil. Escrevi meu primeiro livro para adultos, Sete anos e um dia. Procurei então a editora que tinha distribuído os livros da minha própria editora, que era a José Olympio, e eles publicaram o romance. A partir daí, tornei a escrever ficção de adulto.

Revista A Pomba
A revista A Pomba foi um escracho. A gente tinha uma fina faixa para existir naquela época. Eu e o Edu tínhamos sido despedidos da Fair Play, que já era um escracho da Playboy. Aí, achamos que teria que fazer um escracho maior ainda, então resolvemos fazer A Pomba. Ela tinha nus, contos, discussões sobre Freud, política, etc. Os modelos eram quase todos negros, que na época não eram considerados de qualidade, não tinham espaço nenhum. Era um espaço em que era possível ousar. Eu tinha 20 anos. Era o que eu fazia aos 20 anos. Se aos 20 anos você não ri, não ousa, meu Deus do céu! Então a gente ria, a gente caçoava de tudo.

Escritores contemporâneos
Eu compro contemporâneos, desconhecidos. Estou lendo uma escritora de origem africana, que escreve em francês e ganhou o Goncourt em 2009 [Marie Ndiaye, autora de Trois Femmes Puissantes]. Ela fala sobre as mulheres africanas dividas entre as duas culturas – francesa e africana. É um livro difícil, a mulher é muito massacrada, muito vítima, o que é uma coisa difícil para mim, porque me mobiliza muito. Mas, em geral, leio brasileiros novos. É o que eu compro, é o que eu busco. Falam do fulaninho, eu vou catar.

E encontro pessoas muito boas. E é ruim dizer isso, porque elas são muito pouco conhecidas fora de São Paulo. Nem vou falar mais do Rio, porque o Rio morreu, agora é só São Paulo. Tem um escritor, por exemplo, que eu não conheço pessoalmente, que é o Fernando Monteiro. Acho que ele é pernambucano, faz cinema também. Esse cara tem uma experiência de narração incrivelmente boa. É um cara de quem não vejo comentários. Por outro lado, àqueles que estão a toda hora na mídia, não gosto. Não vou citar nomes porque seria muito deselegante da minha parte, mas eu leio e fico espantada. É um dos momentos em que me sinto pouco adaptada ao campo literário, no sentido de Bordieu. Muito perplexa. E tem gente que passa uma dificuldade, não sei quanto tempo para conseguir editar um livro, gente boa, gente nova, desconhecida.

Livro digital
Não tem catástrofe nenhuma, qualé? Não tem problema nenhum. Acho que as plataformas estão um pouco cruas ainda. Eu não tenho ainda [leitores digitais], não. Mas, ainda há uma mesquinharia da indústria que vai ter que ser resolvida. A leitura muda, o hábito de ler muda. Não acho isso grave.

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Arte visual e literatura

Levo muito a sério o negócio de ilustrar livros. Eu me dou uma liberdade que defendo bravamente. Se o editor ou autor não me dão essa liberdade, não ilustro. E também não ilustro livro que não gosto. Tenho um discurso preparado, para evitar ser considerada arrogante ou prepotente em relação ao editor, mas, na verdade, se eu não tiver uma empatia com o texto, não faço. Eu tenho a técnica, consigo fazer qualquer desenho, de qualquer técnica, porque estudei isso minha vida inteira. O meu texto eu não gosto de ilustrar. Já ilustrei por necessidade editorial, de apresentar livro pronto ao editor, de impedir que o editor enfeitasse o livro – o Borges fala isso, que o livro não é bombom, não precisa ser embrulhado em papel brilhante. Eu concordo, não gosto de enfeitar livro. A ilustração é outra linguagem, ela ocupa outro espaço, que deve ser preenchido nobremente. Ela não deve repetir, de jeito nenhum, o que está sendo dito no texto.

Se é para criança, isso é inclusive criminoso, porque se leva muito menos tempo para ver do que para ler. Então, um livro é ilustrado repetindo na imagem o que está sendo dito no texto. Ele está afastando a criança do texto. Faço pouco, justamente por isso: sou considerada chatíssima, com toda a razão, sou sim. E sigo essa linha. Um dos presentes que eu me dou na vida é esse: fazer apenas ilustrações que quero.

Já com as traduções, faço o contrário. Escolho o livro mais vagabundo que puder arranjar, que é o que vai me dar mais liberdade de brincar com o texto. Se for para entrar na cabeça de um escritor, que eu respeite, para poder fazer o impossível, que é transformá-lo em brasileiro de 2011, prefiro não fazer. Aí eu pego livros bem vagabundos, porque me divirto, brinco.