Romance | Lewis Carroll

O homem na lua

1

As crianças vieram de bom grado. Com uma delas de cada lado, aproximei-me do lugar ocupado por Mein Herr. “Você não se opõe à presença de crianças, espero?”, iniciei a conversa.

“Os velhos rabugentos e os jovens não podem viver juntos!”, o ancião replicou alegremente, saudando-nos com um sorriso cordial. “Olhem para mim, crianças! Vocês dirão que sou um homem velho, não é?” 

À primeira vista, embora seu rosto me tivesse lembrado de um modo misterioso o do Professor, transmitia a impressão de ser decididamente mais jovem que ele; porém, quando sondei a extraordinária profundidade de seus grandes olhos sonhadores, senti, com uma estranha sensação de temor respeitoso, que era incalculavelmente mais velho; parecia observar-nos de uma época remota, séculos atrás.

“Não sei se ocê é um homem velho”, respondeu Bruno, quando as crianças, seduzidas pela voz amável, aproximaram- se um pouquinho mais dele. “Acho que cê tem oitenta e três.” 

“Ele é muito preciso!”, exclamou Mein Herr. 

“E ele por acaso acertou?”, eu perguntei. 

“Existem razões”, replicou gentilmente Mein Herr, “razões que não tenho a liberdade de expor a você, que me impedem de mencionar definitivamente pessoas, lugares e datas. Só vou me permitir uma observação: o período de vida entre cento e sessenta e cinco anos e cento e setenta e cinco anos é especialmente seguro.” 

“Como foi que você chegou a essa conclusão?”, eu indaguei. 

“Assim: vocês considerariam a natação um passatempo seguro, se nunca lhes chegasse a notícia de que alguém se afogou. Não creio que me equivoco ao pensar que você ainda não ouviu falar de alguém que tivesse morrido entre essas duas idades!”

 “Compreendo o que você quer dizer”, comentei. “Mas temo que você não poderá provar que a natação é um passatempo seguro, baseando-se no mesmo princípio. Não é raro ouvirmos a notícia de que alguém morreu afogado.” 

“No meu país”, respondeu Mein Herr, “as pessoas jamais se afogam.” 

“Não há águas suficientemente profundas?” 

“Claro que sim! Mas não podemos afundar. Todos somos mais leves do que a água. Deixe-me explicar”, ele acrescentou, percebendo meu ar de espanto. “Vamos supor que vocês desejem obter uma raça de pombos com uma forma ou cor determinadas. Vocês selecionam, ano após ano, aqueles que mais se aproximam desse ideal, e ficam com eles, mas se desfazem dos outros, não é verdade?” 

“Exatamente”, respondi. “Denominamos esse processo de ‘seleção artificial’.”

“De pleno acordo”, disse Mein Herr. “Bem, nós utilizamos há séculos esse procedimento, selecionando sem cessar as pessoas mais leves; por isso, hoje, todo mundo é mais leve do que a água.” 

“Então vocês nunca podem se afogar no mar?” 

“Nunca! Só corremos esse risco em terra firme — quando assistimos, por exemplo, a uma peça de teatro.” 

“Como é possível se afogar num teatro?” 

“Nossos teatros são todos subterrâneos. Sobre eles, são colocados grandes reservatórios de água. Quando começa um incêndio, as torneiras são abertas e, num minuto, o teatro é inundado: a água chega até o teto! Assim, o fogo se extingue!” 

“E o público também, imagino.” 

“Esse é um assunto irrelevante”, Mein Herr replicou despreocupadamente. “Mas o público fica satisfeito de saber que, afogado ou não, é mais leve do que a água. Ainda não alcançamos o nível de fazer as pessoas mais leves do que o ar, mas estamos concentrando esforços nesse sentido. Dentro de mil anos ou...” 

“O que cês fazem com as gentes que são pesadas?”, perguntou Bruno seriamente. 

“Aplicamos o mesmo processo”, Mein Herr prosseguiu, sem tomar conhecimento da pergunta de Bruno, “em inúmeros outros casos! Estamos, por exemplo, selecionando bengalas: ficamos apenas com aquelas que se deslocam melhor, até conseguirmos obter algumas que possam andar sozinhas! Estamos também selecionando algodão cru, até conseguir que seja mais leve do que o ar! É um material realmente muito útil! Nós o chamamos de ‘imponderável’.” 

“E é usado para quê?” 

“Bem, principalmente para embalar objetos que devem ser enviados pelo Correio. Isso os torna mais leves do que o vazio, não percebem?” 

“E como os funcionários do Correio calculam o valor que cada cliente deve pagar, para enviar seu pacote?” 

“Essa é a parte mais interessante do sistema!”, Mein Herr exclamou exultante. “São eles que devem nos pagar: nós não lhes entregamos nada! Às vezes recebo cinco xelins para enviar um pacote.” 

“Mas o Governo não se opõe a esse sistema?”

“Bem, faz algumas objeções. Afirma, por exemplo, que o sistema se tornará muito dispendioso, com o passar dos anos. Mas a coisa é absolutamente clara, segundo as suas regras: quando envio um pacote que pesa uma libra a mais que o vazio, pago três centavos; de modo que, naturalmente, se o pacote pesar uma libra a menos que o vazio, eu devo receber três centavos!”

“É realmente um artigo muito útil!”, concordei. 

“Sim, mas até mesmo o ‘imponderável’ tem as suas desvantagens”, acrescentou Mein Herr. “Comprei algum outro dia e o guardei no chapéu; ora, quando tomei o caminho de casa, o chapéu simplesmente voou!” 

“Cê hoje não tinha um pouco dessa coisa esquisita no seu chapéu?”, Bruno quis saber. “Sílvia e eu vimos cê na estrada, e seu chapéu tava lá em cima! Não é, Sílvia?” 

“Não, era uma coisa bem diferente”, explicou Mein Herr. “Como caía uma ou outra gota de chuva, coloquei o chapéu na extremidade da bengala — como um guarda-chuva, compreendem? E quando eu quis avançar pela estrada”, ele continuou, voltando-se para mim, “fui surpreendido por...” 

“...um chubisco?”, perguntou Bruno. 

“Bem, parecia-se mais com um rabo de cachorro”, replicou Mein Herr. “Foi uma coisa curiosíssima! Senti algo esfregar-se afetuosamente no meu joelho, mas, quando olhei para baixo, não vi nada! Contudo, a um metro dali, havia um rabo de cachorro abanando sozinho no ar!” 

“Oh, Sílvia!”, Bruno respondeu baixinho. “Cê não terminou de deixar ele de novo visível!” 

“Sinto muito!”, disse Sílvia, parecendo sinceramente arrependida. “Quis esfregar todo o seu dorso, mas a gente estava com tanta pressa! Iremos terminá-lo amanhã. Pobre cachorrinho! Provavelmente não ganhará o seu jantar esta noite!”

“Claro que ele não vai ganhar, Sílvia!”, disse Bruno. “Ninguém dá um osso prum rabo de cachorro!” 

Mein Herr olhou para as duas crianças com estupefação. “Não compreendo o que vocês estão dizendo”, ele confessou. “Como eu tinha me perdido, consultei o meu mapa de bolso, mas então deixei cair uma das minhas luvas. Contudo, essa coisa invisível que roçara o meu joelho me trouxe a luva de volta!” 

“Claro que ele trouxe!”, disse Bruno. “Ele gosta muito de pegar essas coisas.” 

Tão grande era a perplexidade de Mein Herr que julguei conveniente mudar de assunto. “Um mapa de bolso é muito útil”, observei. 

“Essa também foi uma das coisas que aprendemos no seu país: a cartografia”, disse Mein Herr. “Mas demos aos mapas um emprego muito mais amplo. Qual seria, na sua opinião, a maior escala de mapa realmente útil?” 

“Cerca de seis polegadas por milha.” 

“Só seis polegadas?!”, exclamou Mein Herr. “Nós logo chegamos à escala de seis jardas por milha. A seguir, à escala de cem jardas para milha. Finalmente, tivemos a nossa grande ideia! Construímos o mapa do país à escala de uma milha por milha!” 

“E o usaram muito?”, perguntei. “Ele nunca foi aberto até hoje”, disse Mein Herr. “Os fazendeiros se opuseram, dizendo que o mapa cobriria todo o nosso território e impediria a recepção da luz do sol! Por isso, atualmente, usamos o nosso próprio território como mapa do país, e eu lhe asseguro que ele funciona muito bem. Permita-me agora fazer-lhe uma outra pergunta. Qual seria, na sua opinião, o menor mundo onde você gostaria de viver?” 

“Eu sei!”, exclamou Bruno, que ouvia atentamente. “Eu queria um bem pequeno, mas bem pequeno mesmo, só pra mim e pra Sílvia!” 

“Neste caso, vocês teriam de residir em lados opostos”, disse Mein Herr. “E, assim, você jamais veria a sua irmã!” 

“E eu não ia ter lições!”, disse Bruno. 

“Você por acaso está sugerindo que também realiza experimentos desse tipo?”, eu perguntei. 

“Bem, não se trata de um experimento, nós não pretendemos construir planetas. Mas um cientista amigo meu, que já realizou várias viagens de balão, contou-me que visitou certa vez um planeta tão pequeno que podia dar-lhe a volta a pé em vinte minutos! Houve lá uma grande batalha, pouco antes da sua visita, que terminou de forma bastante curiosa: o exército derrotado fugia a toda velocidade e, poucos minutos depois, achou-se face a face com o exército vitorioso, que voltava para casa — e assustou- se tanto por encontrar-se entre dois exércitos, que se rendeu imediatamente! Naturalmente, depois disso, os soldados vitoriosos perderam a batalha, embora, para todos os efeitos, tivessem matado todos os soldados do lado contrário.” 

“Soldado morto não foge”, comentou Bruno pensativamente. 

“‘Morto’ é um termo técnico”, explicou Mein Herr. “Nesse pequeno planeta a que me refiro, as balas eram feitas de uma matéria escura e macia, que deixava uma marca em tudo o que tocava. Assim, ao final de cada batalha, tudo o que restava a fazer era contar quantos soldados estavam ‘mortos’ em cada campo, isto é, ‘marcados’ nas costas, pois as marcas no peito não valiam.” 

“Neste caso, não se poderia ‘matar’ ninguém, a menos que estivesse fugindo”, eu comentei. 

“Meu amigo cientista concebeu um estratagema melhor do que esse. Mostrou que se as balas fossem lançadas em sentido contrário ao redor do globo, atingiriam o inimigo pelas costas. Depois disso, os piores atiradores foram considerados os melhores soldados, e o pior de todos recebeu a grande medalha.” 

“E como descobriram o pior de todos?” 

“Foi muito fácil. O melhor tiro, você sabe, é aquele que atinge o que está à frente do atirador. Ora, o pior tiro, evidentemente, é aquele que atinge o que está atrás do atirador.” 

“Os habitantes desse planeta eram pessoas extraordinárias”, comentei. 

“Eles o eram, sem dúvida! Mas talvez a coisa mais extraordinária de todas fosse o seu sistema de governo. Neste planeta, conforme fui informado, uma nação é constituída por um rei e por um certo número de súditos. Nesse pequeno planeta de que estou falando, porém, é constituída por um certo número de reis e por um único súdito!”

“Você disse que ‘foi informado’ sobre a vida neste planeta!”, eu observei. “Devo concluir que você é um visitante de outro planeta?” 

Bruno aplaudiu, excitado. “Cê não é o homem na lua?”, perguntou. 

Mein Herr parecia alarmado. “Não estou na lua, minha criança”, explicou evasivamente. “Mas, retomando o que eu dizia, parece-me que esse método de governo deveria funcionar bem. Vejam vocês: os reis seguramente fariam leis contraditórias, assim o súdito nunca poderia ser punido, porque, não importa o que fizesse, sempre obedeceria a alguma lei.” 

“E cada vez que fizer qualquer coisa, também vai desobedecer a uma lei!”, exclamou Bruno. “Por isso, vai ser punido toda hora!” 

Lady Muriel passou por ali nesse momento, e ouviu as últimas palavras de Bruno. “Ninguém será punido aqui!”, ela disse, tomando Bruno nos braços. “Este é o ‘Hall’ da liberdade! Vocês me emprestariam as crianças por um minuto?” 

“As crianças nos abandonaram, como vê”, eu disse a Mein Herr quando ela se afastou, levando os dois irmãos. “Assim, nós, os velhos, devemos fazer companhia um ao outro.” 

O velho sábio suspirou. “Ah, sim! Somos velhos agora, e, contudo, já fui criança uma vez, pelo menos suponho.” 

Não pude deixar de reconhecer, olhando para o seu desgrenhado cabelo branco e a longa barba, que parecia bastante inverossímil supor que ele já fora criança. “Você gosta dos jovens?”, perguntei.

“De jovens estudantes, sim”, ele replicou. “Mas não particularmente de crianças. Durante muitos anos, fui professor de jovens estudantes na minha querida e velha Universidade!” 

“Não ouvi, perdoe-me, o seu nome”, comentei. 

“Não disse o seu nome”, o velho sábio respondeu brandamente. “É um nome que não significaria nada para você. Poderia contar histórias curiosas sobre todas as mudanças que presenciei ali! Mas temo entediá-lo.” 

“Não, absolutamente!”, eu disse. “Por favor, prossiga. Que tipo de mudanças?” 

Mas o velho sábio parecia mais disposto a fazer perguntas do que a oferecer respostas. “Conte-me”, ele pediu, pousando delicadamente a mão no meu braço, “conte-me uma coisa. Pois sou um estrangeiro e conheço pouco o seu sistema educacional. Algo me diz, porém, que estamos mais avançados do que vocês no eterno ciclo das mudanças, e que muitas teorias que já pusemos em prática e que se revelaram ineficazes, vocês ainda vão adotar, com mais entusiasmo ainda, e também descobrirão, com uma amargura ainda maior, que fracassaram!” 

Foi muito estranho verificar, à medida que Mein Herr falava, e as suas palavras fluíam cada vez mais livres, com certa eloquência rítmica, como o seu rosto parecia brilhar com uma luz interior, e todo o homem parecia transfigurado, como se houvesse rejuvenescido num instante cinquenta anos. 

Lewis Carroll, pseudônimo de Charles Lutwidge Dodgson (1832-1898), nasceu e viveu na Inglaterra. É autor, entre outros, de Alice no país das maravilhas (1865). Carroll publicou o romance Sílvia e Bruno em dois volumes separados — o primeiro saiu em 1889 e a conclusão em 1893. Este fragmento que o Cândido publica faz parte da tradução integral de Sílvia e Bruno, que será editado pela primeira vez no Brasil, nos próximos meses, pela Iluminuras.

Sérgio Medeiros nasceu em Bela Vista (MS). É professor de literatura na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Traduziu em parceria com Gordon Brotherston o poema maia “Popol Vuh”. É autor, entre outros títulos, de Contos de duendes e folhas secas (2016). Vive em Florianópolis (SC).