Reportagem | Monteiro Lobato

As batalhas de Lobato

O fundador da literatura infantojuvenil brasileira enfrenta concorrência nas livrarias — atualmente dos youtubers —, já foi acusado de trair a pátria e ser racista, mas, ainda assim, sua obra é conhecida por crianças, adultos e continua sendo uma porta de entrada para a leitura

Marcio Renato dos Santos

A obra de José Bento Monteiro Lobato (1882-1948), principalmente a infantil [a adulta é quase desconhecida hoje], não faz sucesso no mercado editorial. Considerado um clássico, o legado do autor está disponível para compra, por exemplo, nas 27 lojas do grupo Livrarias Curitiba, presente no Paraná, Santa Catarina e São Paulo, mas em quantidades “menores”. “As vendas dos livros de Lobato já foram significativas, mas atualmente a procura é pequena e não é significativa. O mercado literário mudou”, afirma o diretor comercial da Livrarias Curitiba, Marcos Pedri.

A Globo Livros publica toda a obra de Lobato, a infantil e a adulta, desde 2007. Editora da Globinho, da Globo Estilo e responsável pelas edições do autor pelo selo Biblioteca Azul, Camila Werner informa que há demanda para os livros infantis do autor, principalmente em escolas. Ela acrescenta que, entre os autores infantojuvenis publicados pela empresa, Lobato vende acima da média — sem mencionar números.

Já a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Maria Teresa Gonçalves Pereira analisa que os livros de Lobato não estão mais “na ordem do dia” porque os professores, e os pais, não leram o autor e, assim, não podem “vendê-lo” a seus alunos e filhos. “Apesar disso, Lobato continua sendo considerado o fundador da literatura infantojuvenil brasileira”, define.

No entanto, Maria Teresa faz uma retificação: “O legado de Lobato atinge os pequenos leitores, sim, dependendo de pais e professores críticos e antenados, não envolvidos pela ‘modernidade’. A falta de cultura e de visão deles impede que percebam isso [a relevância da produção lobatiana], bombardeados pelas mídias, pela tecnologia e suas ‘novidades’”. 

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Salve, galera do YouTube!
Atualmente, as vitrines, gôndolas e espaços nobres de livrarias em todo o Brasil exibem, entre outros destaques, livros dos chamados youtubers, jovens que gravam vídeos e os divulgam no site YouTube — alguns deles, como Kéfera Buchmann, Felipe Neto e Pedro Rezende (RezendeEvil), são autores de obras que estão entre as mais vendidas no país. “Eles atraem o interesse de milhões de pessoas que os seguem, curtem e compartilham suas informações. Como o mercado é muito dinâmico, temos que acompanhar as novidades e oferecer o produto que o consumidor busca neste momento [livros de youtubers]”, comenta Marcos Pedri, da Livrarias Curitiba.

Maria Teresa Gonçalves Pereira analisa que, diferentemente da obra de Lobato, os livros dos youtubers fazem sucesso por serem de fácil assimilação, não havendo nenhuma barreira ou dificuldade para compreendê-los. “Na verdade, são simpáticos, divertidos, atraentes, bem escritos, mas não são, na maioria das vezes, formadores de massa crítica. Tudo o que [os youtubers] escrevem está na superfície”, diz a professora da Uerj, acrescentando que tais autores abordam temas adolescentes ou infantis da realidade, respondem algumas necessidades momentâneas, “mas dificilmente instruem, levam conhecimento, além de dar a plenitude que o universo mágico de Lobato proporciona”.

Camila Werner entende que é “natural” os livros dos youtubers obterem sucesso e, para ela, não há nada de errado com isso. “O interesse pela leitura tem que ser despertado pela via do prazer e da curiosidade. Se a criança está lendo, não convém reclamar. Hoje os youtubers são os ‘vilões’, assim como já foram as revistas em quadrinhos, guardadas as proporções”, argumenta a editora da Globo Livros.

O que preocupa, de acordo com Camila, é como essa criança que lê obras escritas por youtubers vai dar o passo para se tornar leitora de Lobato ou livros de outros autores e gêneros. “Alguém precisa mostrar a ela, despertar o seu interesse, o livro [do Lobato ou de outros autores] precisa estar na biblioteca ou ao alcance das mãos em casa. Os adultos, portanto, têm um papel essencial nessa questão”, salienta. No entanto, a editora não considera um problema se uma criança ler obras de youtubers e de Lobato: “Uma [obra] não exclui a outra. Daí, ela vai decidir o que prefere. Formar um bom leitor é também ensiná-lo a procurar e escolher o que lhe interessa”. 

Algumas polêmicas
Há cinco anos, um debate a respeito do racismo na obra de Lobato ocupou as páginas de jornais e revistas, internet, incluindo o circuito universitário. Trechos do legado do autor, de História de Tia Nastácia (1937), por exemplo, foram apresentados para comprovar a tese — em um deles, há as seguintes frases enunciadas pela personagem Emília: “Parecem-me muito grosseiras e até bárbaras — coisa mesmo de negra beiçuda, como Tia Nastácia. Não gosto, não gosto, e não gosto!”. Já em Caçadas de Pedrinho (1933), a mesma Emília diz o seguinte: “É guerra e das boas. Não vai escapar ninguém — nem Tia Anastácia, que tem carne preta”.

Autor, entre outros livros, de Pai, quem inventou (2016), Ilan Brenman observa que o legado lobatiano já foi atacado ferozmente em 1930 e 1940. Ele estudou o assunto em sua tese de doutorado A condenação de Emília, defendida na Universidade de São Paulo (USP), em 2008, e publicada em formato de livro em 2012.

Nos anos 1940, o procurador do Estado de São Paulo, Dr. Clóvis Kruel de Morais, pediu ao Tribunal de Segurança Nacional que procurasse e apreendesse, no Estado de São Paulo, todos os exemplares do livro Peter Pan, que Lobato publicou em 1930. De acordo com o procurador, o livro não tinha nada de inocente e pueril. Kruel chegou a afirmar que o Peter Pan, de Lobato, “[...] alimentava nos espíritos infantis, ‘injustificavelmente’, um sentimento errôneo quanto ao governo do país.” Brenman analisa que a “insanidade” de censores, como Clóvis Kruel de Morais, interpretava a obra lobatiana como uma ode ao bolchevismo, sugerindo que Lobato seria um traidor da pátria e que seus livros iam contra a defesa nacional.

Setenta anos após o incidente, uma ala — de acordo com Brenman — “da esquerda brasileira” começou a atacar Lobato, tentando censurar as suas obras e colar a pecha de racista em “uma das mais fabulosas criações para a infância já feitas no Brasil”.

Brenman afirma que somente uma obra de extrema qualidade, como a de Lobato, teria a capacidade de unir a direita, no passado, e a esquerda, no presente, numa mesma missão: calar a “Emília”. “É evidente que o Lobato era um homem do seu tempo, assim como seus contemporâneos, ou seja: ‘agasalhado’ de preconceitos. No entanto, precisamos separar a obra do criador. Se não fizermos isso e começarmos a ceifar as criações feitas por sujeitos que não pensam como os homens atuais, nada ficará para ser visto em museus, ouvido em muitos concertos ou lido em muitas bibliotecas”, diz Brenman, citando Richard Wagner, Caravaggio, Edgar Degas, Fiódor Dostoiévski, Luís Buñuel, Ernest Hemingway, Louis-Ferdiand Céline, como exemplos de artistas que elaboraram obras magníficas, mas que têm pontos de vista que atualmente podem ser questionados — Céline, por exemplo, é considerado, por algumas vozes contemporâneas, reacionário e racista.

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Desde 2007, a Editora Globo publica a obra de Lobato, por exemplo, Caçadas de Pedrinho. Pelo selo Biblioteca Azul, saem edições vintage, adquiridas até por adultos. Já pelo selo Globinho são publicadas as edições adotadas em escolas e também disponíveis em livrarias.

Literatura é linguagem
Dialogando com Ilan Brenman, Stella Maris Rezende, autora de Justamente porque sonhávamos (2017), afirma que, de tempos em tempos, reaparece a questão do politicamente correto na literatura infantil, especificamente focando a obra de Lobato: “Surgem argumentos sobre racismo, preconceito e outros temas delicados, geralmente fundamentados em questões religiosas e ideias conservadoras”.

“A grande literatura incomoda, provoca e suscita questionamentos. Isso é ótimo. Literatura é, antes de tudo, linguagem. Muitas vezes, quem não estudou literatura se arvora em dizer coisas que nada têm a ver com a arte literária. O contexto em que viveu Lobato era outro, não se questionava com veemência o racismo e os preconceitos, mas isso é o menos importante a ser analisado”, defende Stella, vencedora dos prêmios Jabuti, João-de-Barro, Bienal Nestlé, APCA e Barco a Vapor, entre outros.

De acordo com Stella, o que realmente importa, independentemente de ser racista ou não — “e creio que, infelizmente, a maioria de nós ainda é racista e preconceituosa em vários aspectos” — é que a obra literária é livre e rica justamente por conter todas as questões da condição humana, das mais leves às mais complexas, com humor, inteligência, sutileza e riqueza de significados.

A professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie Marisa Lajolo acredita que a polêmica sobre o racismo na obra de Lobato é — “muito” — oportuna. E, completa a estudiosa, a discussão pode e deve estender-se para toda a literatura. “Penso que vale a pena discutir o racismo na tradição literária brasileira. Qual a identidade negra que a literatura construiu, construía e constrói? Que sentimento esta identidade gera em negros e em não negros? Repulsa? Solidariedade?”, questiona Marisa, organizadora da reunião da obra infantil e adulta de Lobato.

Para justificar o seu discurso, a pesquisadora recorre a Caçadas de Pedrinho, livro que Lobato publicou em 1933. Na cena final, Tia Nastácia reivindica seu direito ao passeio no carrinho puxado por Quindim: “(...) Agora chegou minha vez. Negro também é gente, Sinhá...”. “Gosto de pensar no protagonismo de Tia Nastácia nesta cena”, pontua Marisa. 

Já a professora da Universidade de Brasília (UnB) Regina Dalcastagnè conta que, há 8 anos, tentou apresentar alguns livros de Lobato para o seu filho, Francisco, na época com 8 anos, e o menino não se interessou. “Ele já era leitor, não gostou da obra lobatiana. Percebo que outras crianças também não se interessam”, observa Regina.

A especialista da UnB analisa que a obra de Lobato é desinteressante para os pequenos leitores, entre outros motivos, por causa do racismo do autor, que aparece em sua obra, por exemplo, na maneira como os empregados são tratados. “Há uma série de narrativas atuais mais interessantes, complexas e atrativas [que as de Lobato], da série Harry Potter aos pokémons. Lobato é só mais uma opção, mas não é leitura obrigatória. Ele pode ser lido, mas as questões de sua obra, como o racismo, devem ser discutidas”, comenta.

Acesso à leitura
Apesar de polêmicas e da concorrência com inúmeros títulos, a produção de Lobato segue presente no imaginário de leitores brasileiros. Marisa Lajolo acredita que os livros do autor podem vir a ser porta de entrada para a leitura, mas entende que, a exemplo de qualquer clássico, eles “pedem” mediadores — e o ponto de vista é corroborado por Marcos Pedri, da Livrarias Curitiba, Camila Werner, da Globo Livros, Stella Maris Rezende e outros entrevistados, como o professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Godofredo de Oliveira Neto.

“Lê-se ainda Lobato, menos, parece, mas ainda muito. A escola é a grande divulgadora e, nos casos polêmicos, a gente tem que lembrar que os professores estão lá [na escola] justamente para fazer a mediação”, enfatiza Oliveira Neto, autor do romance Grito (2016).

Marisa Lajolo observa que, por exemplo, a palavra reinações [que significa travessura, brincadeira] integra o título de uma obra importante de Lobato, Reinações de Narizinho (1931), e não faz parte do vocabulário das gerações mais jovens. “Dia desses, uma menininha comentou que não tinha ‘reinos’ na história, e que ela tinha pensado que era uma história de princesas, rainhas, etc. Reino até que tem, o reino da Águas Claras, mas não é esse tipo de reino que satisfaz as expectativas da leitora”, comenta Marisa. Stella Maris Rezende conta que a sua neta Beatriz, de 10 anos, lê Monteiro Lobato e outros autores de literatura infantojuvenil, com igual encantamento, “por ser uma menina já apaixonada por literatura”. “Infelizmente, isso não acontece com a maioria das crianças brasileiras, pois tanto em casa quanto na escola há inúmeros entraves. Por vários motivos socioeconômicos e políticos, a leitura literária costuma ser uma riqueza ou uma felicidade vivenciada por poucos”, diz Stella.

Autor de livros para adultos, como o romance O próximo da fila (2015), e títulos para crianças, a exemplo de Sofia e o dente de leite (2011), Henrique Rodrigues participa de bate-papos, principalmente em escolas, e afirma que o legado lobatiano segue vivo: “Graças a professores que entendem Lobato como clássico brasileiro que precisa ser lido, como uma herança cultural a que todos os leitores têm direito de conhecer. Minhas experiências mais enriquecedoras como escritor têm sido no contato direto com crianças e jovens. Eles têm lido e escrito muito, facilitados pelas novas tecnologias nas quais nasceram imersos. Tenho muita fé nessa [nova] geração.”

Plataformas & possibilidades
Godofredo de Oliveira Neto lembra que, há 40 anos, adaptações televisivas deram um empurrão “extraordinário” na obra de Lobato. Camila Werner, da Globo Livros, acrescenta que essas versões foram, e algumas ainda são, realizadas com qualidade e, de fato, se apresentaram e apresentam como porta de entrada para os livros do autor.

“Mas, ao mesmo tempo, é importante descolar a obra televisiva dos livros. Lobato nunca escreveu uma obra chamada ‘O sítio do picapau Amarelo’ [há sim o livro O picapau amarelo (1939)] ou concebeu seus personagens para serem uma ‘turma’ nos moldes que conhecemos hoje. Vejo esses enganos repetidos muitas vezes na imprensa e até por professores, e acho que isso apaga um pouco o brilho da obra original”, critica a editora da Globo Livros.

Maria Teresa Gonçalves Pereira também é crítica em relação às transposições de textos literários de Lobato para a linguagem audiovisual: “O autor [adaptador] precisa conhecer a obra de Lobato para extrair a sua essência. Qualquer trabalho ou proposta pode-se valer dos métodos ‘modernos” para abordagens variadas. Mas não pode, em nome de pretensa atualização, desfigurá-la ou mutilá-la”.

Deixando de lado as adaptações audiovisuais, a professora da Uerj chama atenção para a qualidade da linguagem literária dos textos do escritor. “É atual e possui a mesma qualidade já reconhecida no passado, só que há necessidade de contextualizá-la. De novo, insisto, não se prescinde do trabalho do mediador, do professor”, opina. A especialista ressalta — a exemplo do que já comentou Marisa Lajolo — que nos textos de Lobato há termos e expressões que não se usam mais, como o verbo bulir [que significa agitar ou implicar com alguém]. Mas, simultaneamente, há recursos que Maria Teresa classifica como brilhantes: trocadilhos e jogos verbais, entre os quais: “A morte de César foi uma brutalidade”.

Camila Werner destaca outro aspecto do legado lobatiano: os personagens, entre eles, Emília. “Tão inteligente, tão contestadora dos papéis femininos daquela época, realmente à frente de seu tempo. É um modelo feminino incrível e pouca gente fala disso”, afirma. A editora ainda acrescenta que, além de Emília, os protagonistas das histórias de Lobato são, por excelência, crianças: “Ele foi mestre em dar espaço a elas, enquanto os adultos são meros protagonistas. A criança de Lobato é inteligente e respeitada, e as crianças amam isso.”


Contrato entre mortos, vivos e os que vão nascer

O escritor Ilan Brenman lembra que, de acordo com pensador irlandês do século XVIII Edmund Burke, a sociedade é um contrato entre os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram. “A cultura é a prova viva desse processo, o novo sempre surge com marcas do antigo. Einstein não existiria sem Newton, Newton não existiria sem Galileu, Giordano Bruno, Copérnico, etc”, argumenta. O raciocínio, diz Brenman, vale para a literatura infantil.

“Podemos dizer que Ruth Rocha, Ana Maria Machado, Tatiana Belinky e tantos outros, devem suas obras em parte ao Monteiro Lobato [imagem]. Portanto, precisamos mostrar para a criançada a fonte onde tantos beberam. O Lobato continua resistindo ao ataques do politicamente correto e as crianças adoram suas histórias”, comenta Brenman.

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Stella Maris Rezende acrescenta que cada livro de Monteiro Lobato, “o nosso mestre, o primeiro a apostar na literatura especialmente dirigida às crianças”, é um clássico e, como diz Ítalo Calvino, “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.

“Privar as crianças de livros assim é um ato político de alienação e entorpecimento. Nós, os escritores de literatura infantojuvenil, e os bons educadores em geral, seguimos exercitando o ato político da imaginação livre, do pensamento arguto, da criatividade com as palavras, as ilustrações e as entrelinhas, o ato político do sonho, do conhecimento e da transformação”, afirma Stella.  


Ações e palavras

O Dia Nacional do Livro Infantil é comemorado em 18 de abril pelo fato de ser a data de nascimento de Monteiro Lobato [foto], em 1882. A efeméride foi criada em 2002, por meio da Lei 10.402/02. Paulista de Taubaté, Lobato é conhecido pelo seu legado literário, para crianças e adultos, mas ele também foi advogado, fazendeiro, empresário, colaborador da imprensa paulista e carioca, tradutor, editor e adido cultural — devido a este cargo, passou uma temporada nos Estados Unidos.

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Revolucionou o sistema de edição e distribuição de livros no Brasil — não por acaso é autor da máxima: “Um país se faz com homens e livros”. Foi um dos primeiros a investir na extração de petróleo no Brasil. Lobato fez mais, muito mais. A professora da Uerj Maria Teresa Gonçalves Pereira o define como um empreendedor e criador de palavras e de ações. “Foi um visionário profundamente orgulhoso de sua pátria, que se incomodava com a falta de ações efetivas para acabar com as mazelas do país. Acreditava que inteligência e criatividade eram molas propulsoras para melhorar as vidas das pessoas física e intelectualmente falando”, diz a lobatiana Maria Teresa. Morreu no dia 4 de julho de 1948, com “apenas” 66 anos, em São Paulo (SP).