Prêmio Paraná de Literatura | Conto

Narrativas possíveis

Daniel Tozzi

“Foi meio que num jorro”, conta Raimundo Neto, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura 2018 na categoria Conto, sobre o processo de escrita de Todo amor que inventamos para nós. O escritor se refere ao curto período de tempo em que boa parte dos contos foram produzidos, entre dezembro de 2017 e janeiro de 2018. “Após me permitir acessar experiências de vida muito particulares, algumas narrativas tornaram-se mais possíveis de serem escritas”, explica.

Nascido no pequeno município de Batalha, interior do Piauí, Raimundo vive na cidade de São Paulo desde 2014 e tem 36 anos. É formado em Psicologia pela Universidade Estadual do Piauí e Todo amor que inventamos para nós é seu primeiro livro publicado. 

Boa parte das narrativas e personagens presentes nos contos apresentam gêneros e sexualidades que, na definição do autor, não se adequam a casas e famílias heteronormativas e, por isso, “sofrem, choram, são apagadas e também morrem”. Para ele, reflexões como essas são necessárias para o Brasil de hoje.

No período final de escrita da obra, Raimundo conta que a leitura de O caminho do artista, espécie de “autoajuda da criatividade”, da norte-americana Julia Cameron, contribuiu para que ele se libertasse de alguns “bloqueios” nos momentos de escrita. Além disso, o piauiense afirma que as releituras de alguns de seus autores prediletos, como Elvira Vigna, Beatriz Bracher e Julio Cortázar, e a descoberta do trabalho ficcional das escritoras Lydia Davis e Miranda July foram fundamentais tanto para o processo de amadurecimento da ideia do livro, quanto para o estágio inicial de sua produção. 

Leia abaixo um conto de Todo amor que inventamos para nós

   Foto: Mariana Kamaguchi/Divulgação
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Raimundo Neto escreveu Todo amor que inventamos para nós, vencedor da categoria Contos do Prêmio Paraná de Literatura 2018, em apenas dois meses. O livro sofreu influência de autores como Julio Cortázar e Elvira Vigna.


Os tropeços foram os menores golpes

Aos tropeços, ela não sabia estar além da mulher que a ensinaram. Eu dizia isso para mim e parecia maltratá-la mais um pouco. Haviam dito que se fosse mãe, maravilhas chegariam. Que o pai da criança tivesse sumido, que suas irmãs a berrassem escrota, que a cidade menosprezasse o cansaço do corpo sustentando a criança agitando sua juventude, não importava. Disseram que se fosse uma mãe suficiente e boa, haveria algum tipo de perdão, ou complacência, que se a criança crescesse e fosse menino, as chances de que seu futuro sofresse um solavanco milagroso seriam maiores. 

Os tropeços foram os menores golpes. Depois do filho, as dores de parir uma fantasia machuram-na em cantos sombrios. Não havia, o bem da verdade é esse, sombra no amor que desconhecia no filho. Os dedinhos choramingavam acalento, ela tentava entender e dizia- -se tranquilizar, soprando na criança um tanto de choro. Acalentar é quê, engasgava a mulher, debruçava-se sobre o magro do choro do filho, enfiava-lhe o peito na boca, pensava toma, é isso acalento. O grito da criança mastigava a noite, os ventos de fora roucos de rezarem pressas agoniadas, e a mulher em desespero, é preciso acalentar. Dentro da casa, as irmãs repetiam Eu sabia que essa puta não devia ter tido o nascimento do menino.

O menino cresceu. A mulher ensaiou: Mãe, respeita a tua mãe, e aprende que homem é quem salva uma mãe da maldade, e aprende que mulher se contorna é no cabresto, caminha feito homem, menino.

O menino esticou ossos e olhos para o mundo. Abraçava a mulher escorregando para baixo da saia apontando é diferente aqui. A mulher agarrava a noite da criança, dizia filho para dormir, e já sabia pesadelo para o resto da vida.

O menino apareceu morto, o corpo estirado carne viva, tudo quanto foi buraco. E diziam Mas também, num era homem, mulher, tu não sabia criar o menino.

E só na morte foi mãe: queria o filho de volta dentro. Se tu crescer em mim, filho, juro que te faço homem, e ninguém nunca vai te fazer sangrar assim e acabar assim, mulher como eu.


RAIMUNDO NETO é piauiense. Nasceu em 1982 e morou nas cidades de Batalha e Teresina até 2014. Atualmente vive em São Paulo, onde trabalha como psicólogo para o Tribunal de Justiça do Estado. É colaborador fixo da revista literária eletrônica São Paulo Review, para a qual escreve resenhas, contos, crônicas e ensaios.