Perfil do leitor – Harry Crowl

O leitor (in) comum


harry
O compositor Harry Crowl lê em diversas línguas e está atento àquilo que a maioria dos leitores não nota: a musicalidade das palavras

Daniel Zanella


Harry Crowl não é um leitor comum. Poliglota, lê fluentemente em inglês, espanhol, italiano e francês. Recentemente começou a se arriscar na língua alemã, que ainda não domina plenamente, o que não o impede de ler alguns autores contemporâneos do país europeu.

Uma das coisas que acha mais fascinante no processo de descobrimento de um novo léxico através da literatura, é que por não ter a abrangência necessária para capturar a integridade completa do que se lê, é preciso imaginar o que está sendo dito, em um exercício abstrato de criação e reescrita da história. “É um processo bem intimista mesmo. Só leio traduções de línguas que eu sei que nunca irei ler.”

Filho de norte-americano, Harry Lamott Crowl Jr é um homem grande, de longas barbas brancas e traços renascentistas. Compositor, musicólogo e professor, Harry nasceu em Belo Horizonte em seis de outubro de 1958 — mesmo dia de nascimento do romancista norte-americano Joseph Finder. Mora em Curitiba desde 1994, onde é diretor artístico da Orquestra Filarmônica da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Também é professor de História da Música e Composição na Escola de Música e Belas Artes do Paraná (EMBAP) e comanda semanalmente programas de música erudita na rádio E-Paraná. Harry Crowl é um compositor com sólida carreira internacional. Seu catálogo de mais de cem obras já percorreu muitos países da Europa e América do Sul.

Sua relação com a literatura começou cedo. Foi criado na casa de seu avô materno, José Santana, dono de uma vasta biblioteca. O avô lia muita literatura francesa e portuguesa, com apreço especial por Machado de Assis e Eça de Queiroz. A influência foi, portanto, foi natural. Ainda assim, com tantos bons romancistas à disposição, foi a poesia, principalmente de Carlos Drummond, que primeiro fisgou Harry. “Meu avô foi colega do Drummond em uma faculdade de Farmácia em Belo Horizonte. Ele, meu avô, terminou o curso e o Drummond, por motivos óbvios, não. Então meu avô olhava o poeta com certa desconfiança. Não engolia a poesia moderna. Achava o Drummond um picareta, simplesmente. Gostava mesmo era de Manuel Bandeira e Cecília Meirelles”, diz o compositor.

Ainda por influência do avô, Harry descobriu a obra mais importante de Euclides da Cunha, Os sertões. No entanto, o avô lhe advertia que o livro “era muito chato”. Ainda assim, deu a Harry uma edição com os seus comentários, dizendo que só deveria ler algumas passagens. Anos depois, já um leitor e viajante mais experiente, Harry resolveu ler o livro inteiro e teve outra percepção. “Vi a coisa pelo olhar do jornalista. Talvez hoje as descrições dele [Euclides da Cunha] não sejam tão necessárias, mas na época o acesso à informação era reduzido. Ele se sentiu na obrigação de esmiuçar, tecer a imagem em detalhes. Achei muito interessante, mas reconheço que é duro.”

Leitor pé na estrada

Harry esteve recentemente em turnê pela Suécia, trabalhando como compositor-residente. Sob 30 graus negativos, teve contato com a obra de Stieg Larson, autor de Os homens que não amavam as mulheres. “Li em inglês toda a trilogia Millenium. Gostei. Mas sabe de uma coisa? Fiquei indignado quando vi que no Brasil a tradução é da versão francesa. Veja só, o sueco é uma língua anglo-saxônica, sua estrutura gramatical é semelhante ao inglês, ou seja, uma tradução do inglês ao português não seria tão disparatada”, afirma.

Dos 18 aos 21 anos, Harry morou nos Estados Unidos, onde teve contato com a literatura americana, principalmente com a obra de Ernest Hemingway e William Faulkner. Gosta também de Gabriel García Márquez, Federico Garcia Lorca e Julio Cortázar. Entre os escritores brasileiros, já compôs a partir da poesia de Haroldo de Campos, Affonso Ávila, Thiago de Mello e de diversos autores simbolistas do Paraná do começo do século XX, como Emiliano Perneta, Dario Vellozo, Tarso da Silveira e Silveira Neto. Desta série de estudos surgiu uma cantata encomendada pela Camerata Antiqua de Curitiba, em 2001, chamada Turris Eburnea (Torre de Marfim), também título de uma coletânea de poemas de Dario Vellozo. Harry também se debruçou sobre a obra de Guimarães Rosa na ópera Sarapalha, baseada na adaptação teatral de Renata Palottini para o conto de mesmo nome do escritor mineiro.

Se Voltaire afirmava que a leitura engrandece a alma, Harry Crowl acredita na transformação humana através da literatura. Para ele, o grande barato da literatura é remeter o leitor ao seu próprio imaginário, levando-o à produção de sua própria história. “Por isso, é frustrante ver uma adaptação cinematográfica de um livro muito bom, pois ele essencialmente não atingirá aquilo que você imaginou. Adaptação é o olhar do cineasta, é outro filme.”

Em contato permanente com músicos, escritores e artistas plásticos, Harry Crowl relembra uma história marcante em sua trajetória. Certa vez, participando de um encontro de jesuítas em Minas Gerais na década de 1980, onde discorria sobre a música colonial brasileira do século XVIII, um senhor de forte sotaque português levantou a mão e perguntou sobre a influência lusitana na música popular brasileira. Harry respondeu, terminou sua fala e se dirigiu ao auditório para ouvir a próxima palestra. Então, o senhor português que havia lhe feito a pergunta minutos antes se encaminhou à mesa de debates. Era José Saramago, que falaria sobre seu romance Jangada de pedra.