Perfil do Leitor | Ivan Cardoso
Kakfa é botafoguense
O cineasta, criador do gênero “terrir”, conta como os livros contribuíram para a formação de seu imaginário fantástico e contracultural
Omar Godoy
Divulgação
“Se você quer ter um filho artista, tenha um filho único. Porque a realidade mais próxima de uma criança sem irmãos é a ficção, a fantasia”, afirma o cineasta e fotógrafo carioca Ivan Cardoso, conhecido por filmes como O segredo da múmia (1982), As sete vampiras (1986) e O escorpião escarlate (1990). Aos 62 anos, o criador do gênero “terrir” (misto de terror com comédia) fala por experiência própria. “Como fui filho único até os 13 anos, tive uma infância dourada, meus pais me criaram como um príncipe. Só que eles esqueceram de me contar que eu não era príncipe, que aquele castelo não era meu e que não existia um tesouro escondido que me deixariam de herança”, brinca.
Seja como for, esses primeiros 13 anos foram suficientes para a criação de um imaginário rico, alimentado por vários tipos de leitura — a começar pelos quadrinhos. Aos 6 anos, Cardoso já era fã dos personagens da Disney quando teve de passar uma semana de molho em casa por causa de uma doença. Foi quando conheceu uma série de heróis norte- -americanos que ainda hoje ecoam em sua obra: Mandrake, Zorro, Tarzan, Roy Rogers, Flash Gordon, Batman, Super- -Homem. “Tinha um faxineiro no meu prédio, o Seu Altair. Ele viu que eu não podia sair para brincar e me emprestou a sua coleção de revistas. Foi uma descoberta, porque aquele universo era totalmente desconhecido para mim.”
Mas foi um livro, e não um gibi, o verdadeiro marco inicial de sua formação. Uma biografia de Van Gogh, meio perdida na coleção da mãe do cineasta, serviu como ponto de partida de sua futura carreira. “Não tenho mais esse livro, não lembro do nome e nem do autor. Só sei que aquilo foi uma revelação para mim. Fiquei impressionado com a parte em que o Van Gogh chega a Paris e conhece todos aqueles outros gênios da pintura, como Gauguin, Toulouse- -Lautrec, Seurat. Eu tinha 11, 12 anos, já pintava alguns quadros. E foi a partir da leitura dessa biografia que comecei a pensar em ser artista.”
Outras influências decisivas foram as revistas e livros de fotografia de seu pai e a biblioteca de 500 volumes herdadas do avô — o militar e político Dulcídio do Espírito do Santo Cardoso, último prefeito do Rio de Janeiro na Era Vargas. “Como todo pai, o meu também me contava histórias. Não sei se foi porque ele morou na América um tempo, mas a história que mais contava era a dos irmãos Jesse e Frank James. Gozado, não? Por causa do meu pai, meus primeiros heróis foram dois fora da lei americanos”, conta Cardoso, que sempre se definiu como “o mais americanófilo dos diretores brasileiros”.
Ou seja: seu gosto pela cultura pop e pelo lado marginal da vida surgiu muito cedo, e foi só uma questão de tempo para que se transformasse em expressão. Tanto que, ao chegar no ensino médio, Cardoso logo virou um agitador cultural da escola, participando ativamente do jornal dos alunos e organizando palestras com artistas convidados. Quando queria conhecer alguém que admirava, dava um jeito de incluir a figura nos projetos do colégio. Graças a essa “malandragem”, como ele mesmo diz, entrou em contato com grandes nomes da intelectualidade carioca, entre eles seu grande mentor, o artista plástico Hélio Oiticica.
“Eu perseguia essas pessoas, mas elas também tabelavam comigo”, afirma o cineasta, que saiu do periódico escolar para as páginas da revista Navilouca, projeto dos poetas Waly Salomão e Torquato Neto inspirado no concretismo, na Tropicália e nas novas contraculturas dos anos 1960 e 1970. A publicação teve uma única edição, mas serviu para incluir Cardoso naquela turma e apresentá- lo a um trio que também faria sua cabeça dali para frente: Décio Pignatari e os irmãos Haroldo e Augusto de Campos — os cabeças da poesia concreta.
Foto: Ivan Cardoso
“O pessoal da revista me mandou para São Paulo para fotografá-los. Eu já conhecia poesia, até gostava do João Cabral de Melo Neto, mas o trabalho deles me deixou pirado, siderado”, lembra. Tão siderado que até hoje suas leituras têm relação com o universo dos três. Sua lista de autores prediletos nacionais inclui, além dos concretos, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, José Agrippino de Paula, Dyonélio Machado, Sousândrade e “todas as letras do Lupicínio Rodrigues”.
De resto, diz que tem horror ao cânone da literatura brasileira. “Machado, Graciliano, Clarice... Tô fora dessa. Enquanto o pessoal lia isso, eu estava mais interessado em ácido, maconha e Jimi Hendrix. Imagino que a obra do Machado seja genial. Mas, pô, ele é o patrono da Academia Brasileira de Letras! Prefiro ficar com os marginais”, explica, antes de elencar os 25 livros estrangeiros de que mais gosta. Uma seleção de clássicos que vai de Dom Quixote a O retrato de Dorian Gray, passando por Moby Dick, Frankenstein e todas as histórias de Sherlock Holmes.
Sobre o detetive britânico, Cardoso faz uma “denúncia”: é dele, e não de Jô Soares, a sacada de ambientar uma trama de Sherlock no Brasil. “Isso está gravado, falei isso para o Jô quando o programa dele ainda era no SBT. Pena que não posso processá-lo por uma ideia que não foi realizada”, lamenta, com o tom sarcástico que é uma de suas marcas registradas.
Franz Kafka também está no seu rol de obsessões. Inclusive o cineasta fotografou seu túmulo há pouco tempo, em Praga, onde apresentou o filme Bacanal do diabo (2013). Mais do que um passeio turístico, a visita rendeu, segundo ele, “um inusitado e assombroso encontro do terceiro grau”. Vestido com uma camisa do Botafogo, que costuma usar em festivais internacionais para conquistar a simpatia dos estrangeiros, Cardoso clicava a sepultura quando começou a sentir uma vibração estranha, uma presença. Era o próprio Kafka materializado em sua frente.
“Ele não parava de falar do Botafogo. É impressionante como o Kafka conhece tudo sobre a história gloriosa do clube, sua situação e até a escalação do time. Eu querendo conversar sobre literatura, sobre seus clássicos, e ele só falando sobre futebol. Só sossegou quando lhe dei a minha camisa alvinegra. Depois fiquei pensando: é óbvio que o Kafka só poderia ser botafoguense. Para qual outro time no mundo ele poderia torcer?”, diverte-se.
Delírios à parte, o fato é que Ivan Cardoso já está há dez anos afastado do circuito de exibição brasileiro (seu último longa apresentado em salas comerciais foi Um lobisomem na Amazônia, de 2005). Desde então, desistiu de filmar com recursos das leis de incentivo (“Os editais beneficiam os cineastas, não o cinema”) e se dedica a produções experimentais, apresentadas em mostras alternativas no Brasil e no exterior.
Sua subsistência, no entanto, vem do acervo com mais de 70 mil fotos de artistas e intelectuais que tirou ao longo dos anos — algumas delas, as mais clássicas, estão registradas no livro De Godard a Zé do Caixão (2002). “Com esses negativos eu produzo as minhas exposições, que me levam para o mundo inteiro. Mas nunca parei de filmar. Tenho tanta coisa guardada que, se quisesse parar hoje, teria um filme por ano para lançar até o final da minha vida”, garante, incansável, o botafoguense kafkiano.