Pensata | Christian Schwartz

Pacto com o leitor

A coluna Pensata abre espaço para que autores reflitam sobre um tema sugerido pela equipe do Cândido. Nesta edição, Christian Schwartz propõe uma discussão sobre os diferentes “pactos” que autores de ficção e não ficção sugerem aos seus leitores quando realizam uma obra.

Debruçado sobre as relações entre fato e ficção, o teórico francês Philippe Lejeune cunhou, no já distante ano de 1975, a expressão “pacto autobiográfico”. Para chegar ao conceito, estabeleceu os parâmetros do que chamou “textos referenciais”, como matérias jornalísticas e artigos científicos, por exemplo: “[Eles] se propõem a fornecer informações a respeito de uma ‘realidade’ externa ao texto e a se submeter portanto a uma prova de verificação”, definiu.

Mas, quanto à autobiografia propriamente dita, tema de seu clássico O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet, revisado e atualizado em anos recentes, Lejeune faz a ressalva: “Se podemos dizer que a autobiografia se define por algo que é exterior ao texto, não se trata de buscar, aquém, uma inverificável semelhança com uma pessoa real, mas sim de ir além, para verificar, no texto crítico, o tipo de leitura que ela engendra, a crença que produz”.

Em outras palavras, a autobiografia jogaria seu leitor naquela zona cinzenta onde — mesmo seguindo as pistas fora do texto: a embalagem, por assim dizer, rotula o conteúdo — ele tem uma decisão a tomar. Nas palavras de outro teórico, Gregory Currie, de The nature of fiction [A natureza da ficção], o leitor precisa resolver se acredita (believe) no que lê, ou apenas faz de conta (make believe) que acredita.

Deparei recentemente com essas reflexões ao ler as excelentes traduções por Irinêo Baptista Netto de inéditos de um clássico do jornalismo literário, Joseph Mitchell, para as quais o tradutor escreveu um prefácio teórico como tese de doutorado (“Como funciona um texto de não-ficção”, UFPR, 2019). O próprio Baptista Netto arrisca uma hipótese sobre o que muda, do ponto de vista de quem lê, quando se abre um livro de ficção ou não-ficção: “Se a ficção pede uma suspensão da descrença (voluntária ou involuntária), a não-ficção pede uma suspensão da desconfiança do autor [...]. Numa corrida pelo comprometimento do leitor, o escritor de não-ficção começa uns passos na frente do escritor de ficção”.

“O escritor [de não-ficção]”, insiste ainda o tradutor de Joseph Micthell, “consegue passar para debaixo do tapete suas artimanhas literárias enquanto o leitor está de guarda baixa, preocupado com o teor dos fatos e não com o jogo proposto pelo texto. É o melhor de dois mundos: o escritor tem a autoridade dos fatos e a liberdade da ficção.” 

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O francês Philippe Lejeune, autor de O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet.

Pode-se argumentar que há algum exagero em dizer que, escrevendo sobre a própria vida, um autor tenha “a liberdade da ficção” — e vale notar que Baptista Netto fazia sua análise tendo em mente o trabalho de jornalistas que retratam as vidas de outras pessoas. Mas persiste o dilema apontado por Lejeune: embora o texto autobiográfico não possa evidentemente escapar a seu obrigatório teor referencial — muitas das informações que apresenta devem, por suposto, estar sujeitas a “uma prova de verificação” —, é fascinante pensar que um relato desse tipo, limitado ademais a certo número de páginas, necessariamente incorrerá naquela “inverificável semelhança com uma pessoa real” da qual fala o teórico francês.

Tudo fica ainda mais interessante quando o autobiógrafo é jovem: quando a infância, a adolescência e os primeiros anos da vida adulta já rendem material suficiente para um precoce livro de memórias. Isso porque a proximidade no tempo pode tornar a verificação dos “fatos do autor” — e, consequentemente, seu desmascaramento — mais fácil. Surgem documentos e outros relatos; testemunhas oculares da mesma história, apenas de um ponto de vista um pouquinho diferente, estão ainda à solta por aí, vivas e falantes.

(Cabe o parêntese para lembrar que ficcionistas consagrados também se dedicaram a memórias de juventude, casos de Fernando Sabino, com O menino no espelho, e de Graciliano Ramos, com Infância. Mas seu status, como autores, de partida já era outro.)

Há situações-limites nas quais a pessoa por trás do relato autobiográfico ou memorialístico, para além da ideia pura e simples de verificação, se revela simplesmente um personagem inventado. Foi o que aconteceu com uma das primeiras grandes sensações editoriais deste milênio nos Estados Unidos, Um milhão de pedacinhos, memórias da dependência química de um tal James Frey — depois de recomendado por medalhões da literatura como Bret Easton Ellis e adotado por Oprah Winfrey em seu clube do livro televisivo, o autor acabou tendo de vir a público confessar que seu relato não passava de invenção.

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Nesse grupo dos best-sellers do gênero, é possível perguntar até que ponto em Livre, de Cheryl Strayed, ou Comer, rezar, amar, de Elizabeth Gilbert, as mulheres viajantes que emergem dos relatos, cada uma a seu modo exploradoras de paisagens exóticas e dos mistérios da própria alma, não seriam versões embelezadas de mulheres comuns. E talvez o objetivo fosse esse mesmo.

No caso de Rachel Dolezal e seu In full color (escrito em colaboração com Storms Reback), porém, a tentativa é a de justificar precisamente o quanto se pode inventar de si, não somente num texto autobiográfico, mas na própria vida. Dolezal é a jovem americana branca que cruzou a fronteira de raça adotando cultura e visual negros, e com isso alcançando certa proeminência na combativa comunidade afroamericana. De novo: quem é a “pessoal real” por trás do relato? Se Dolezal nasceu loira de olhos azuis, mas à base de penteados afro, bronzeamento e maquiagem viveu boa parte da vida como negra, ativista da causa, o retrato contido em suas memórias não será, necessariamente, o de uma personagem? (E não é isso que somos, todos nós, em alguma medida?)

Em solução provisória a esses dilemas, poderíamos passar a encarar todo e qualquer relato autobiográfico de juventude, em especial de autoria de memorialistas ainda jovens, como “autobiografias de formação” — algo próximo de um Bildungsroman, mas de “fatos”. Assumidamente memorialísticos, esses relatos assumirão caráter mais ou menos literário conforme o tipo de história que se tenha para contar — e, claro, segundo o próprio talento de quem escreve. Ou serão apenas best-sellers descartáveis.


CHRISTIAN SCHWARTZ nasceu em Curitiba, em junho de 1975, cidade em que vive atualmente. Estudou língua e literatura francesas na Universidade Paris IV (Sorbonne), na França, e cursou pósgraduação em literatura na University of Central England (UCE), em Birmingham, etapa de sua formação concluída na UFPR com um mestrado em Estudos Literários. Traduziu autores como Jonathan Coe, Nick Hornby, Hanif Kureishi, Graham Greene, Philip Roth, Jeffrey Eugenides e F. Scott Fitzgerald.