Memória Literária | Nilson Monteiro

Os loucos anos 1970 em Londrina

Território fértil para manifestações artísticas, a cidade do Norte do Paraná revelou nomes que marcaram a cultura local e nacional. Nilson Monteiro, um dos escritores da geração pé-vermelho, escreve sobre como a cidade se tornou vanguarda paranaense no jornalismo, literatura, teatro, artes plásticas e música

Arquivo do autor / Nilson Monteiro

Domingos Pellegrini e Nilson Monteiro, na redação do jornal Folha de Londrina, nos anos 1970.

Domingos Pellegrini e Nilson Monteiro, na redação do jornal Folha de Londrina, nos anos 1970. 

Na cidade jovem, buliçosa, desafiadora, prenhe e multiplicadora de ideias e dúvidas do final dos anos 1960, nos juntamos, quase meninos, também espevitados, alguns já escolados em literatura de grosso calibre, outros curiosos, todos contrários à noite política que teimava em se consolidar, para ver onde o buraco ia dar não só lá, mas em todo o país. 

Londrina era libertária, diziam e faziam. Seu território estendia-se onde a crosta terrestre, há milhões de anos, meio às suas rachaduras, despejou uma massa quente, feito creme, que, esfriando, virou um imenso lençol de rocha roxa estendido. Cultivada em tira de terra vulcânica, uma das mais férteis do planeta, tinha mania de produzir não só café, mas pessoas propensas a criar. E a brigar. 

E não era de então: havia um passado próximo, sindical, de conflitos, de mudanças, de manifestações diversificadas, que fomentara expressões artísticas diversas e alguma literatura antes de nos topar nos anos 1960, reunidos na sede da União Londrinense dos Estudantes Secundários (ULES) para participar de grupos de teatro e imprensa. 

Na mesma faixa de idade e criação estavam Roldão Arruda, Marcelo Oikawa, Paulo Nassar, Carlos Verçosa, entre outros, além de um barbudinho meio metido a guru, dois anos mais velho do que nós, Domingos Pellegrini. A panelinha era política, mas disfarçada de arte, todo tipo de arte, inclusive a de moleques que enchiam a cara e falavam poemas para as águas do Igapó ou planejavam afanar alimentos estocados nos domínios dos mórmons para fazer a revolução. Não conseguimos nem os alimentos e muito menos a revolução.

Na ULES, os meninos e meninas criaram grupos de teatro e jograis, de estudos e prática de literatura, organizaram palestras e debates sobre os temas latentes da época e um curso de jornalismo que revelou os primeiros profissionais de uma geração que viria se destacar.
Arquivo do autor / Nilson Monteiro
Paulo Leminski, em uma palestra em Londrina, cidade que, em sua opinião, “não tinha provincianismo”.

Virou um dínamo da economia regional, usina de lideranças políticas e ninho de manifestações artísticas. Na universidade, desde o início dos anos 1970, muitos já engatinhando no jornalismo, nos mantivemos juntos, catando e discutindo letrinhas literárias. 

A cidade cresceu e apareceu.

Não éramos uma ilha em meio à agitação da cidade. Éramos parte, grudados ao seu corpo. Paulo Leminski, radicado no Pilarzinho, em Curitiba, e emitindo sinais de farol literário para o mundo, destacava, em artigos para o curitibano Correio de Notícias, em 1985, a ausência de provincianismo em Londrina. “Me custa a admitir, mas Londrina está à nossa frente em termos culturais.” 

A cidade, ele provocava, era a vanguarda paranaense no jornalismo, literatura, teatro, artes plásticas, música, borbulhava de criatividade. E dava nomes e sobrenomes. 

Nomes, se quiserem algum elenco, pipocavam em todas as áreas, quase sempre caminhando e cantando juntos, em casamento e ruptura artística de fazer gosto. 

O capital político institucional era forte e se revelaria nos anos 1980, com Hosken de Novaes, José Richa, Alvaro Dias, Leite Chaves, Hélio Duque, entre tantos outros. O capital político clandestino, idem. No teatro, Nitis Jacon de Araujo Moreira, Mário Bortolotto Denise Assunção, Apolo Teodoro... Nas artes plásticas, Letícia Faria, Kambé, José Antônio, Lúcio Jeolás... No cinema, Paulinho Barnabé, Carlos Eduardo Lourenço Jorge... Na música, Marinósio Filho, Arrigo Barnabé, Itamar Assunção, Robinson Borba, Neuza Pinheiro, Marcus Ribeva, Patife’s Band... No jornalismo, uma penca que ia de Délio César, Walmor Macarini, Edilson Leal, Pedro Scucuglia, Joana Lopes, Jota Oliveira e Leonardo Santos, uma porção considerável de nossos escribas, que escreviam o trivial, mas abominavam o corriqueiro. Na fotografia, Martinon, Chico Rezende, Kaximbo e Xuxulin, entreoutros, faziam arte atrás das lentes. Na TV, rádio e publicidade se dava o mesmo fenômeno. 

Fora esses nomes, havia pessoas de grande competência na área acadêmica, especialmente na Medicina, Direito, Filosofia etc. Essas figuras, algumas carimbadas e outras clandestinas, comiam na mesma panela. E especialmente bebiam no mesmo copo, em maior ou menor intensidade. A literatura, óbvio, era parte do ingrediente. E assunto nas mesas. 

A teoria indicava a colonização inglesa no Norte do Paraná, às avessas da sesmaria portuguesa e com maio partilha de terra e de informações, e a cidade, ainda adolescente, com pouco mais de 30 anos, como culpada por esse borbulhar, ao contrário de outras regiões do Estado, mais consolidadas e acomodadas em seus fazeres e afazeres, inclusive artísticos. 

Havia também o cordão umbilical londrinense com São Paulo, de cujas regiões vieram muitos colonizadores do Norte do Paraná. Além dele, o DNA de 32 etnias presentes nas células que criaram Londrina. Tudo isso se revelava no caldo cultural da cidade de sempre e especialmente dos loucos anos 1970.

Na literatura londrinense, que já tinha nomes e práticas antecedentes, como os de Mário Romagnolli, José Joffily e Cássio Leite Machado, um detalhe não pode passar despercebido: os concursos e festivais, estimulados a partir dos anos 1970. 

Tanto os organizados pela ULES, por colégios e pela universidade, quanto aquele que, para nós, nos juntou ainda mais. Aliás, mais precisamente espremidos dentro de um fusca que fazia, ao som de músicas de protesto e goles de conhaque, os 160 quilômetros de Londrina a Paranavaí. 

O Festival de Música e Poesia de Paranavaí (Femup) foi marcante para aquele bando. Em 1971, os três primeiros colocados em poesia estavam dentro do fusca londrinense: Domingos Pellegrini, eu e Marcelo Oikawa. Entre os declamadores, Roldão Arruda ganhou prêmios seguidos. Não sei quanto ganhamos em dinheiro (havia prêmio em espécie), mas sei que guardo aquele primeiro troféu do Femup até hoje. 

Participamos de mais algumas edições do festival e em 1977 conheci um cara, Dorival Torrente, que, ao declamar, de forma espetacular, um poema de minha autoria, “Forinha”, fez crescer minha admiração por aquele festival e pelo fazer literário. A amizade e o festival, assim como a admiração pelo tear literário, duram até hoje.
Arquivo do autor / Nilson Monteiro
Jornalistas do Novo Jornal, em 1972. Da esquerda para a direita: Marcelo Oikawa, Nilson Monteiro, Carlos Verçosa e Roldão Arruda.

Jornalistas do Novo Jornal, em 1972. Da esquerda para a direita: Marcelo Oikawa, Nilson Monteiro, Carlos Verçosa e Roldão Arruda.

Em Londrina, vários festivais tinham vida. Na área literária ou fora dela. Inclusive, no mais conhecido deles, Festival Internacional de Teatro, criado no final dos anos 1960 pelo jornalista Délio César. E não raro muitos de nós estávamos metidos nele (s). Além ou aquém dos festivais, a geração mimeógrafo se revelava intensa e eficientemente em nosso bando, com a circulação de poemas, contos e crônicas em dezenas de publicações artesanais distribuídas nas escolas, na universidade, em eventos. 

O jornalismo virou profissão, prática e maior conhecimento de literatura para vários: Pellegrini, Roldão, Marcelo, Carlos Verçosa e eu, no mínimo. 

Desde 1972, Pellegrini editou a página Rascunho, publicada pela Folha de Londrina, em cujo espaço gravitávamos, com a produção de poemas, contos, ensaios, críticas, etc. Depois, a página passou por minhas mãos e, ao virar Leitura, pelas de Nelson Capucho e Ademir Assunção.


Em 1975, quando fomos para o jornal Panorama, mais uma louca e deliciosa aventura de Londrina, conheci na redação, nos botecos e madrugadas abafadas um maldito da noite e das letras, ele próprio uma aventura generosa e criativa: João Antônio. Vários de nós tiveram o privilégio de partilhar do seu deboche pessoal, de seu jornalismo criativo e de sua literatura já famosa país afora. 

No mesmo jornal, além de trabalhar na reportagem, editei a página Baú, dedicada à literatura. Virei carne e unha com outro ótimo artista gráfico, Jotinha, mais um pé-vermelho que brilhara em São Paulo e desembarcara no ambiente do Panorama. Veio do Rio de Janeiro mais ou menos no mesmo tempo outro artista gráfico de traços novos e instigantes, Nelson Bravus. 

No jornalismo universitário, espelho de nossa intensa atuação nos diretórios estudantis, a literatura também tinha presença notória. Foi assim nos jornais Ensaio, Terra Roxa e no mais conhecido deles, Poeira. 

A cidade de nuvens vermelhas, como cantou Arrigo Barnabé, tinha nuvens de todas as cores. Essa diversidade tonificava os setores de criação de forma intensa. E garantia o sustento de donos de bares em todos os quadrantes da cidade. Essa diversidade transitava no jornalismo — tanto profissional quanto estudantil — e na literatura. 

Era preciso não dispersar, fora ou dentro dos jornais. Três de nós — Pellegrini, eu e Nassar — fizemos parte, junto aos curitibanos Reinoldo Atem, Raimundo Caruso e Hamilton Faria e mais Arnaldo Xavier, Aristides Klafke e Ronivalter Jatobá, entre os paulistanos, da criação da Editora Cooperativa dos Escritores. Participamos também da Cooperativa de Jornalistas em Londrina, onde o mercado profissional começava a se afunilar no final dos anos 1970. 

Enquanto isso, produto de todo esse caldeirão coletivo e de experiências pessoais, manifestações artísticas multiplicavam-se, de “Rabo de Peixe”, “Tubarões Voadores” e “Na Boca do Bode”, entre experiências cênicas-musicais, à literatura que continuava fervendo em nossas veias. 

Enquanto Domingos Pellegrini se tornava um nome nacional, com publicações como o antológico romance Terra vermelha e o ótimo conto O encalhe dos 300, criávamos movimentos reveladores, como o “Mural de Poesias” e “Panelinha de Poetas”. As ligações com escritores das fronteiras regionais próximas foram se avolumando e estreitando. Entre os que habitam a memória: Miguel Sanches Neto, em Peabiru, Marco Cremasco, em Guaraci, Sérgio Rubens Sosséla, em Paranavaí, Lourivaldo Baçan, em Uraí, Jair Ferreira dos Santos, em Cornélio Procópio, entre outros, assim como em paragens mais distantes. Nomes foram brotando nas ruas e botecos londrinenses, com a receptividade que mereciam, como Ademir Assunção, Nelson Capucho, Maria Leopoldina Rezende, Bernardo Pellegrini, Karen Debértolis e Lourival Pontidura, entre outros. 

O moinho do tempo literário, longe de parar, continuou a gerar gente de ótima linhagem na cidade: Rodrigo Garcia Lopes, Paulo Briguet, José Antonio Pedriali, Maurício Arruda Mendonça, Marco Antônio Fabiani, Célia Musilli, Marcos Losnak, Joel Gehlen, Benvinda Palma, a cada dia uma surpresa ou consolidação de um criador literário de alguma ou de extrema qualidade. Alguns já são cantados em prosa e verso pela crítica literária. 

Os meninos nascidos e criados naquela belle e rebelde época publicaram e continuam publicando aqui e ali, romances, crônicas, poesias, etc.: Pellegrini escreveu dezenas de livros; Roldão Arruda, Dias de ira; Carlos Verçosa, Oku; eu, Mugido de trem, e Marcelo Oikawa, A guerrilha de Porecatu. 

Os que vieram logo ou bem depois escrevem e vão escrever sua belle e maravilhosa história com as letras lúdicas da literatura de todas as cores. É ler e conferir.

Nilson Monteiro nasceu em Presidente Bernardes (SP), em 1951. Entre 1964 e 1986 morou em Londrina (PR). É autor, entre outros livros, de Simples (poesia), Curitiba vista por um pé-vermelho e Pequena casa de jornal (crônicas), Itaipu, a luz e Ferroeste, um novo rumo para o Paraná (reportagem) e Madeira de lei (biografia). Em 2013 lançou seu primeiro romance, Mugido de trem. Vive em Curitiba (PR).