Memória Literária | João Guimarães Rosa

O impacto Sagarana

Publicado em 1946, nove anos após ficar em segundo lugar em um concurso literário, o livro de estreia de João Guimarães Rosa renovou a literatura brasileira a partir do uso de linguagem inovadora e de um olhar inédito a respeito das relações sociais no país


Marcio Renato dos Santos

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Guimarães Rosa percorreu a cavalo cidades do interior de Minas Gerais
quando atuava como médico na década de 1930.


A publicação de Sagarana, em 1946, pela Editora Universal, rendeu a João Guimarães Rosa muito mais do que o Prêmio Felipe d’Olivera. O impacto do livro de contos no contexto literário brasileiro da época foi — e ainda é — imenso. O professor da Universidade de São Paulo (USP) Luiz Roncari afirma que, ao mesmo tempo que parecia retomar as estórias [expressão utilizada pelo escritor, ao invés de histórias] do velho regionalismo, que já estava desgastado, o livro rompia com tudo o que este havia produzido antes. A especificidade de Sagarana não passou despercebida e foi identificada, imediatamente, pelos críticos Antonio Candido e Álvaro Lins, entre outros.

“O livro dialoga diretamente com a geração que estreou na década de 1930 e mesmo com toda a tradição regionalista que o precedeu. O tipo de realismo que se vê na obra de Guimarães Rosa rompe com a preocupação com uma espécie de valor de verdade que era tão importante para a literatura brasileira da época. Isso não quer dizer que Sagarana se afaste da realidade brasileira, mas sim que se aproxima dela com outros meios”, diz o professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Luís Bueno, autor, entre outros, de Uma história do romance de 30 (2006, 2.ª ed. 2015) e de Capas de Santa Rosa (2016). 

Roncari, que no momento finaliza O Brasil de Rosa: luta, violência e morte, observa que Guimarães Rosa fez releituras importantes da vida cultural, institucional e social brasileira, principalmente a respeito do teor violento e rústico das nossas relações. “Sertão, para Guimarães Rosa, não era o lugar exótico ou idílico como foi para os regionalistas. Para o autor, era o espaço onde a natureza sobrepujava a cultura, por isso nele predominava a lei do mais forte, a traição, a astúcia, como nas selvas entre os bichos, e a busca da vingança substituía a da justiça”, analisa, acrescentando que a procura por vingança está presente em quase todos os contos de Sagarana, de “O burrinho pedrês” até “A hora e vez de Augusto Matraga”, respectivamente, o primeiro e o último textos do livro.

Saga para estrear
Após vencer o Concurso Literário da Academia Brasileira de Letras, em 1936, com o livro de poemas Magma — que seria publicado depois da morte do autor, em 1997 —, Guimarães Rosa entrou, em 1937, na disputa pelo Prêmio Humberto de Campos, promovido pela Livraria José Olympio Editora, com o livro Contos, utilizando o pseudônimo Viator. A obra ficou em segundo lugar — Luís Jardim venceu o concurso com Maria Perigosa. Um dos jurados, o escritor Graciliano Ramos, encontrou sinais da “mineirice” e de uma das atividades profissionais do autor daquela versão inicial de Sagarana: “Certamente de um médico mineiro e lembrava a origem: montanhoso, subia muito e descia — e os pontos elevados eram magníficos, os vales me desapontavam.” 

Formado em Medicina em 1930, Guimarães Rosa presta concurso para o Itamaraty em 1934 e é aprovado [leia mais sobre a trajetória do autor na página 09]. Em 1938, o escritor viaja para Hamburgo, na Alemanha, onde atua como cônsul-adjunto. Durante a temporada europeia, reescreveria o livro. E, de acordo com a professora da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) Cássia dos Santos, o tempo que a obra “descansou” antes de ser publicada, em 1946, foi determinante para o seu sucesso.

Luiz Roncari estudou os manuscritos de Sagarana, que estão no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), na USP — desde o original datilografado, ainda com o título de Sezão, que seria renomeado Contos para disputar o Prêmio Humberto de Campos, até a sexta edição, a última que o autor acompanhou  em vida. O pesquisador garante: “Guimarães Rosa revisou cada uma delas e fez modificações.” 

Além da exclusão de 3 narrativas da proposta original — Sagarana foi publicado com 9 textos —, Roncari analisa que houve modificações “importantes e significativas” nos contos. Cada uma dessas mudanças tem um sentido particular e precisaria ser estudada, e comentada, isoladamente — foi o que ele fez em O Brasil de Rosa: o amor e o poder (2004). “No geral, porém, o sentido era o de apagar as pistas de leitura e referências mais explícitas que deixara, além de retirar algumas sobras dos andaimes que usara na arquitetura da composição”, explica.

Universo simbólico 
O diferencial de Sagarana, na avaliação de Luís Bueno, é uma forma de ver a literatura, sobretudo a literatura moderna no contexto brasileiro — país, na definição do especialista, onde a modernização sempre foi um processo complicado, profundamente excludente. “Isso tem impacto em todos os níveis narrativos, do vocabulário aos nomes das personagens, da descrição ao andamento do enredo”, enfatiza o professor da UFPR. 

Escrito em terceira pessoa por um narrador onisciente, que não participa da trama, o conto “A volta do marido pródigo” é uma recriação da parábola bíblica “A volta do filho pródigo”, em que um personagem, Lalino Salãthiel, vende e — por meio de astúcia — recupera a esposa. Já “Corpo fechado” traz uma narrativa em primeira pessoa na qual o narrador está envolvido em um enredo que trata de amor e outras questões complexas.

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No entendimento de Bueno, os contos de Sagarana exigem um leitor mais aberto, disposto a pensar em termos de analogias e aproximações ao invés de ficar preso a relações imediatas e lineares, de causa e consequência entre os fatos narrados, por exemplo. “Cada conto, além de um enredo, instaura aquilo que podemos chamar de um universo simbólico próprio, que se manifesta nos detalhes aparentemente mais banais. A posição do narrador, os pontos de vista que ele apresenta ao leitor e, na contramão, os pontos cegos que ele têm, aquilo que ele não percebe, tudo isso também faz parte desse jogo e contribui para instaurar esse universo simbólico”, afirma o estudioso. 

As narrativas de Sagarana — como lembra a professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) Ana Maria Lisboa de Mello — são inspiradas na vivência do autor, nascido em Cordisburgo, no interior de Minas Gerais, cidade cercada de fazendas e montanhas, onde ele viveu durante a infância. 

“No cenário desse sertão surgem questões, conflitos comuns aos homens de todas as épocas: disputa de poder, traição, vingança, crueldade e remorso. São situações que revelam a natureza humana, de certo modo serenamente, porque essa é uma realidade inexorável”, diz Ana Maria, citando dois contos cujo foco são os animais: “O burrinho pedrês” e “Conversa de bois”. “São narrativas que apontam para a crueldade humana e, nestes casos, os animais são mostrados como mais sábios do que os homens”, comenta.

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Capas de Sagarana em edições publicadas nas últimas sete décadas.

Ao modo de um canto heroico 
Sagarana, título formado a partir de saga (de matriz germânica, “canto heroico”) e rana (do tupi, “ao modo de”), traz máximas, provérbios e frases marcantes em meio aos enredos. Em “Conversa de bois”, o leitor encontra a afirmação: “O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho.” “A hora e a vez de Augusto Matraga” tem inúmeras dessas construções verbais, por exemplo: “Não faz assim, seu moço, não desespera. Reza, que Deus endireita tudo... P’ra tudo Deus dá o jeito!” 

A professora da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) Mônica Gama diz que Guimarães Rosa brinca com o efeito dos ditados populares. A pesquisadora conta que o autor colecionava provérbios — antigos e novos, de diferentes regiões brasileiras, mas ele também desconstruía, reformulava e até criava novos ditos. “Na narrativa de Guimarães Rosa, o provérbio quebra o ritmo do enredo para inserir momentos de interpretação do narrador. Quando o autor transforma os provérbios, revela-se a situação do narrador que enreda o leitor por meio de um discurso que simula uma forma textual ligada ao senso comum, mas que desloca os significados preestabelecidos”, explica. 

Luís Bueno chama a atenção para o uso de “andar no mato sem cachorro”,que aparece em “A volta do marido pródigo” e também no conto “São Marcos”. “Só que neste último caso, o narrador está mesmo perdido no mato e, como já nos informara antes, não leva cachorro consigo. A expressão é usada em sentido literal e, com isso, ganha uma outra dimensão”, afirma, acrescentando que Guimarães Rosa é um mestre na ressignificação do clichê verbal: “É muito difícil analisar de maneira geral essas frases, já que o efeito depende diretamente de seu encaixe no corpo de cada conto. De toda maneira, é possível dizer que, nesses momentos, a fusão mais profunda entre o universo das personagens populares e da chamada alta literatura se dá de forma que tanto a ‘sabedoria popular’ como a narrativa moderna surgem renovadas e o lugar-comum se reveste de grande novidade.” 


Inimitável 
O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Pedro Marques afirma que Guimarães Rosa se beneficiou de um universo já elaborado anteriormente por outros autores, como Bernardo Guimarães (1825-1884), Afonso Arinos (1868-1916), Valdomiro Silveira (1873-1941) e Monteiro Lobato (1882-1948). “O autor de Sagarana não é pioneiro quanto a esse tipo de temática. Sua novidade está mais para a maneira como aproveita e refunda a expressão e mundo caipiras, sobretudo quando desenha o próprio caipira a narrar seus feitos e dores”, diz. 

Luís Bueno ressalta, como já foi mencionado anteriormente, que Sagarana participa de uma longa tradição literária brasileira, chamada por alguns de regionalista, e dialoga fortemente com ela. “Mas, ao mesmo tempo, encontra um outro ponto de vista a partir do qual vai representar esse universo sertanejo. Assim como se depreende da obra de Graciliano Ramos, por exemplo, para ficarmos com o jurado que tirou o prêmio do livro, trata-se de uma visão que desconfia dos benefícios da modernidade”, explica. 

De acordo com o professor da UFPR, Guimarães Rosa parte de uma desconfiança específica a respeito da lógica do pensamento moderno — o pensamento racional que Rosa caracterizaria numa carta como “a megera cartesiana” — e que tem grande afinidade com a lógica de outra natureza que se mantém nas margens da modernidade: “Daí a importância que têm, em sua obra, não apenas o pensamento dos sertanejos ainda não plenamente incluídos na vida moderna, mas também a dos loucos e a das crianças. A linguagem, que é sofisticada por trabalhar num espaço de fusão entre a língua falada no interior e a do alto letramento, caminha lado a lado com essa espécie de ótica nova que ele injeta na literatura brasileira.” 

Luiz Roncari analisa que Guimarães Rosa foi tão singular, que é difícil apontar algum herdeiro literário. “Aliás, é raro um escritor deixar herdeiro, talvez seguidores. Os que tentaram correr no leito aberto por Guimarães não deram muito certo”, comenta. Já Luís Bueno acredita que o legado rosiano tem grande impacto sobre os escritores brasileiros, mesmo nos veteranos. É possível, por exemplo, ver no último romance de José Lins do Rego, Cangaceiros (1953), uma inflexão de linguagem que busca dialogar com a de Rosa. “O mesmo se pode dizer de novos autores que surgiriam logo em seguida, como é o caso de Mário Palmério, que foi muito importante e hoje anda esquecido. A influência direta, no entanto, é muito difícil de se localizar. A especificidade de Guimarães Rosa é tão marcante que muitas vezes faz soar como mero pastiche textos que se aproximem demais de seu estilo”, afirma Bueno.

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