Memória Literária

À espera de um Nobel

Patrocinado a partir do testamento do inventor da dinamite, o Nobel de Literatura anuncia no próximo mês de outubro o vencedor, tendo os escritores Haruki Murakami, Philip Roth e Milan Kundera mais uma vez como favoritos

 

Ben-Hur Demeneck

Roth


A Suécia não deu ao mundo apenas o conceito de ombudsman, o cinema de Ingmar Bergman e os hits do ABBA. Desde 1901, a Academia Sueca de Letras distribuiu 110 láureas que transformaram escritores em celebridades mundiais. A partir da fortuna do inventor da dinamite, Alfred Nobel, o país criou o maior prêmio literário do mundo, o Nobel de Literatura.

Na sala de espera desse Panteão composto apenas por mortais, estão nomes como Haruki Murakami, Philip Roth, Milan Kundera, Umberto Eco e Amos Oz. Lista que não descarta Cormac McCarthy, Thomas Pynchon, Don DeLillo, Salman Rushdie, Margaret Atwood, Joyce Carol Oates e Javier Marias. Até Bob Dylan pode ser uma das surpresas — tão comuns ao Nobel. Em meio à disputa, aparece o nome do brasileiro Moniz Bandeira. 

SOL DA MEIA NOITE

Apenas José Saramago foi premiado tendo escrito na língua de Camões. As línguas tcheca, turca e iídiche também têm apenas um vencedor, enquanto que o idioma espanhol emplacou 11 escritores e o inglês 27. Uns poucos números começam a indicar quanto o eurocentrismo e o peso dado aos fatores extraliterários (leia box) são constantes ameaças à credibilidade do cobiçado prêmio.

Uma vez que a Academia Sueca aceitou o desafio de responder por toda a humanidade, nem sempre ela consegue explicar suas preferências. Por exemplo, questionamentos sobre o porquê de a própria Suécia reunir mais premiados que toda a Ásia. Em 2008, Horace Engdahl, secretário permanente da Academia Sueca, aproveitou o anúncio do prêmio concedido ao francês Le Clézio para criticar a literatura norte- -americana por se mostrar “muito insular” e “muito sensível às tendências da sua própria cultura de massa”.

No conjunto da obra, o diferencial do Nobel é conseguir abrir caminhos aos laureados e à literatura de seus países de origem. “Quando Yasunari Kawabata foi premiado com o Nobel, o mundo literário aproveitou para se lembrar de Ryunosuke Akutagawa, grande escritor japonês do início do século XX, admirado no mundo todo, mas não premiado em seu tempo. Além dele, passaram a ser lembrados vários outros autores japoneses de peso, incluindo Kenzaburo Oe — outro premiado com Nobel —, Yukio Mishima e Haruki Murakami”, diz o editor Jiro Takahashi, profissional ligado ao mercado editorial desde 1966.

A Academia Sueca é composta por 18 membros vitalícios, cinco deles são eleitos para um mandato de três anos à frente do Comitê Nobel de Literatura. A cada outono sueco, o Comitê envia mais de 600 cartas formais, tanto para pessoas físicas quanto para organizações, para pedir indicações de autores.

Até abril, o Comitê reduz a lista para algo em torno de 15 ou 20 nomes, a serem apresentados e aprovados ao restante da Academia. Durante o mês de maio, o Comitê elege cinco candidatos preferenciais. Durante o verão, com direito ao “Sol da meia-noite”, a Akademien se dedica à leitura dos finalistas. Em setembro, o número deve diminuir para três até que, em outubro, é feito o anúncio do laureado. Todo o processo de votação se mantém em sigilo por 50 anos.

Murakami
ANTES DO SNOWDEN

Em 2014, a Academia Sueca validou 210 candidaturas, entre eles, 36 estreantes. Uma das inscrições esteve a cargo da UBE (União Brasileira de Escritores), a qual recomendou o autor Moniz Bandeira. A decisão teve apoio público de outras associações literárias, como a Academia de Letras de Minas Gerais.

“As obras de Moniz Bandeira são sempre esclarecedoras a respeito de conjunturas que alteram ou influenciam o panorama mundial”, sintetiza Joaquim Maria Botelho, presidente da UBE. Botelho destaca o traço político-cultural eminentemente nacionalista do indicado e a adoção de seus livros pelo Instituto Rio Branco, que forma diplomatas. “Bandeira é um pesquisador meticuloso, cuidadoso com as informações e com a linguagem. Ele escreveu obra de fôlego, que merece ser descoberta por mais gente”, declara.

Editado até na China, em mandarim, Formação do império americano, de Moniz Bandeira, teve o mérito de antecipar em oito anos as denúncias de espionagem praticadas pelas agências de segurança norte-americanas, que viriam à tona com os relatos do ex-funcionário da CIA Edward Snowden. Figura pouco conhecida no meio literário brasileiro, Moniz atualmente é cônsul honorário do Brasil na cidade alemã de Heidelberg e não escreve ficção, o que dá uma conotação ainda mais singular a sua indicação.

Em se tratando de império, há 21 anos um autor norte-americano não ganha o Nobel. A autora Toni Morrison apenas amorteceu o golpe no orgulho americano de ter “apenas” três homenageados durante os últimos 59 anos. Não é à toa o sucesso da “lista alternativa” (veja box) ao Nobel proposta por Ted Gioia na internet e que o The New York Review of Books publicasse um texto de Tim Parks em que ele acusa a Academia Sueca de bairrismo ao premiar o conterrâneo Tomas Tranströmer. Faltou pouco para Parks exigir um ombudsman para o Nobel.

VIVER PARA CONTAR

Para Raul Hernando Osorio Vargas, o Nobel em Literatura brasileiro é uma questão de tempo. Professor da Universidad de Antioquia, em Medellín, ele lamenta que o brilho de García Márquez (Nobel de 1982) tenha acabado por ofuscar gerações que o precederam e, para o mais jovens, pareça ter estabelecido um patamar distante demais para ser alcançado. Por outro lado, García Márquez projetou as letras nacionais para o planeta e, com sua influência, apoiou a abertura de instituições como a EICTV (Escuela Internacional de Cine y Televisión de San Antonio de los Baños) e a FNPI (Fundación Nuevo Periodismo Iberoamericano).

Não dá para saber quanto os brasileiros chegaram perto de ganhar o Nobel nos últimos 50 anos, devido ao sigilo que encobre o processo de votação. Desse período, podemos saber que mensagem foi enviada à Academia Sueca a partir do Brasil, caso os anúncios sejam públicos. Por exemplo, Ariano Suassuna, Ferreira Gullar, Manoel de Barros e Antonio Cândido foram indicados algumas vezes por grupos como a Academia Brasileira de Letras (ABL), a UBE, o PEN Clube do Brasil e até mesmo pelo Senado Federal.

“João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna tinham uma estatura de Nobel. Hoje, não vejo figuras dessa dimensão. Talvez — um talvez bem grande —, pelo conjunto da obra e por intervenções como o ‘Poema sujo’, reste para nós o Ferreira Gullar”, conjetura Ricardo Soares. Além de escritor, Soares é um “divulgador e entusiasta” das letras brasileiras. Ele comandou os programas televisivos “Literatura” e “Mundo da Literatura” (1998-2005).

“O caráter ‘político’ do Nobel é que lhe dá relevância. Não me refiro à ideologia, mas a uma tendência a valorizar intelectuais ou escritores que tenham uma conduta humanista. Tenho uma simpatia por ele combinar humanismo com qualidade literária — a exemplo de figuras como Albert Camus”, diz Soares. E enumera grandes oportunidades perdidas pelo Comitê Nobel em constatar o melhor da criação humana a partir do Brasil: Euclides da Cunha, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, João Cabral de Melo Neto, Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Clarice Lispector, Jorge Amado, Jorge de Lima, Darcy Ribeiro e Carlos Drummond de Andrade.

O SONHO CELTA

“O Nobel é uma espécie de marca global, sumamente irresistível”, comprova o professor da Universidade de Princeton Pedro Meira Monteiro. O anúncio do Nobel de Mario Vargas Llosa se deu enquanto o peruano

transtormer
estava vinculado ao Programa de Estudos Latino-Americanos (PLAS) da instituição, o que fez aumentar extraordinariamente a visibilidade para os estudos latino-americanos e para o ensino de espanhol em Princeton.

Ao ser questionado sobre se considerava paradoxal que o Nobel conciliasse o “benefício humanitário” com um posterior impacto editorial intercontinental, Meira equaciona as aparentes oposições: “não creio que o ‘humanismo’ esteja desconectado do mercado. Sei que pode soar mal, mas a verdade é que há um mercado para valores ‘humanistas’, e é bom que assim seja!”.

Diretor interino do PLAS, Meira ilustra sua argumentação a partir de uma recente participação na Flip: “É inevitável que em algum momento tenhamos a sensação de que há algo mais do que ‘a literatura’ ali [numa feira literária]. Há interesses, expectativas, um constante jogo de sedução, além de ódios e amores que circulam, às vezes às claras. Mas não é bem disso que fala a literatura? Aliás, não é bem isso que constitui parte importante do que é a literatura moderna?”, provoca Meira.

BOOKMAKER

Para se contatar as expectativas geradas pelo Nobel, basta conferir a lista do Prêmio na bolsa de apostas Ladbrokes. Na véspera de ser anunciado o novo Nobel, o chinês Mo Yan aparecera com chances de vencer em nove para um. Para 2014, as apostas são: de seis para um ao japonês Haruki Murakami; de 10 para um para a argelina Assia Djebar; de 12 para um à bielorrussa Svetlana Aleksijevitj e ao húngaro Péter Nádas; de 14 para um à norte-americana Joyce Carol Oates.

O norte-americano Philip Roth, o tcheco Milan Kundera e o poeta sírio Adonis concorrem em 16 para um, enquanto que o “azarão” Bob Dylan fica em 50 para um. As leituras de verão e a colheita de morangos silvestres podem ter levado os 18 membros da Akademien a cogitarem as mais diversas origens e nomes: Romênia (Mircea Cartarescu), Coréia do Sul (Ko Un), Noruega (Jon Fosse), Somália (Nuruddin Farah), Itália (Dacia Maraini), Quênia (Ngugi Wa Thiong’o), Holanda (Cees Nooteboom), Áustria (Peter Handke), Irlanda (William Trevor) e Austrália (Les Murray).

Em 10 de dezembro, provavelmente alguém da lista acima participará de um banquete em Estocolmo e discursará para personalidades de todo o mundo em trajes de gala. Será o dia de receber das mãos do Rei Carl Gustaf XVI uma medalha, um diploma e um documento confirmando o valor de 1,5 milhão de dólares referente ao prêmio. A questão é saber quando um brasileiro irá para a tribuna do Olimpo moderno.

Fatores extraliterários

A influência de fatores extraliterários tende a pôr em xeque o prestígio do Nobel. Critica-se que determinadas ideologias valham mais que o caráter artístico. Como de valorizar autores que lutam contra a censura, denunciam estados autoritários, pertençam a grupos minoritários ou representem traços de multiculturalismo. Fator que teria, por exemplo, valorizado o francês Le Clézio frente a um ferrenho individualista como Philip Roth e levado a manifestações com a de Horace Engdahl.

Entre essas passagens histórias, outras ideologias foram dominantes, uma vez que o conservadorismo já ignorou o brilho de nomes como Liev Tolstói e Émile Zola. Uma tendência liberal mais à esquerda começou a aparecer nos Pós-Guerras. Dos anos 1970 em diante, apoiou dissidentes do comunismo e das repúblicas satélites da URSS: Alexander Soljenitsin (1970), Joseph Brodsky (1987) e Czeslaw Milosz (1980). 


As polêmicas do Nobel

Liev Tolstói — O escritor russo faz parte da lista de omissões do Nobel, que ainda tem Marcel Proust, James Joyce, Vladimir Nabokov, Franz Kafka, Ezra Pound, Virginia Woolf, Júlio Cortázar, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Stephan Zweig, John Updike, Émile Zola, Henrik Ibsen e Paul Valéry.

Jorge Luis Borges — Nunca foi premiado. Especula-se que, em 1977, houve um recuo diante da sua iminente premiação porque no ano que passara ele aceitara receber uma condecoração do ditador chileno Augusto Pinochet. Uma vez perguntado sobre a situação de ser um eterno cotado que não se confirmava, ironizou: “Eu sempre vou ser o futuro Nobel. Deve ser uma tradição escandinava”.

Jean-Paul Sartre — Recusou aceitar o prêmio. Não queria ser “institucionalizado” e recebeu uma saraivada de críticas. Publicou no Le Fígaro uma longa carta em que começa lamentando “vivamente que este assunto tenha tomado a aparência de um escândalo”.

Acadêmico rebelde — A premiação da austríaca Elfriede Jelinek (2004) levou à “demissão” do acadêmico Knut Ahnlund, que disse ser a premiação “um dano irreparável” para o prestígio do Nobel. Considerava a autora “pobre”, “parasitária” e “unidirecional”. Morreu em 2012, considerado o “acadêmico rebelde”.

Quase nepotismo — Em 1974, o favorecimento a Eyvind Johnson e Harry Martinson, conterrâneos e próximos dos jurados, arranhou a imagem do Nobel. Vladimir Nabokov era um dos favoritos do ano.

Jorge de Lima — Admirador de Jorge de Lima, Arthur Lundkvist convencera a Academia Nobel Sueca a eleger o poeta alagoano, autor de Invenção de Orfeu. Ao longo do processo, os participantes descobriram que Lima morrera em 1952. A história quem conta é Antonio Olinto, em depoimento disponível na página da ABL.


Ben-Hur Demeneck é jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação na ECA-USP. É autor de PG de A a Z & outras crônicas (Todapalavra Editora). Vive em Ponta Grossa (PR).