Memória - Cidade de Dalton

Urbi et Orbi

“Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia.”
Leão Tolstoi

Roberto Muggiati

Quando Dalton escreve suas primeiras ficções, Curitiba tem cerca de umas míseras 150 mil almas. A Curitiba inicial de Dalton podia ser atravessada a pé e, no raio de um quilômetro a partir do centro, as ruas pavimentadas se transformavam em caminhos lamacentos. Passadas sete décadas, a região metropolitana da cidade cresceu para mais de três milhões, com seus 26 municípios que, numa visão daltesca, se assemelhariam a 26 pragas bíblicas do inchaço urbano. Dalton Trevisan continuou escrevendo sobre Curitiba — já são mais de cinquenta livros —, contando aquelas historinhas enganosamente simples de João e Maria. Mas, com um faro de repórter, ele soube acompanhar as transformações da cidade, registrando toda a loucura da periferia, com seus viciados em crack e suas meninas da vida, anti-herois e anti-heroínas esmagados entre a truculência policial e a violência do tráfico.

Antes de embarcar na sua saga curitibana, Dalton descreveu em pequenas crônicas o cenário eleito. Um texto-chave é Em busca de Curitiba perdida, trabalhado por Dalton ao longo de 46 anos, da versão inicial Minha cidade (Revista Joaquim, 1946) à final, no livro de 1992, Em busca da Curitiba perdida, passando pelas versões de 1953 (Guia Histórico de Curitiba, cordel do autor) e de 1968, no livro Mistérios de Curitiba. Em tom de manifesto, ele escreve:

“Curitiba que não tem pinheiros, esta Curitiba eu viajo. Curitiba, onde o céu azul não é azul. Curitiba que viajo. Não a Curitiba para inglês ver, Curitiba me viaja. Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça — galiii-nha-óóóvos — não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental branco discursa para a estátua do Tiradentes.”
Ilustração Muggiati

E enumera marcos da sua odisseia urbana: os conquistadores na esquina da Escola Normal, os bailes da Sociedade Operária, os Chás de Engenharia (“onde as donzelas aprendem de tudo, menos a tomar chá”), as ruas de barro com mil e uma janeleiras e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço, a zona da Estação, a sociedade secreta dos Tulipas Negras, o Templo das Musas com os versos dourados de Pitágoras, o expresso de Xangai que apita na estação, o Pavilhão Carlos Gomes, as pensões familiares de estudantes, o relógio na Praça Osório que marca implacável seis horas em ponto, os sinos da Igreja dos Polacos, o bebedouro na pracinha da Ordem, o cachorro-quente com chope duplo no Buraco do Tatu.

Um de seus fetiches é “a Ponte Preta da estação, a única ponte da cidade, sem rio por baixo.” Será ela o cenário do conto “Debaixo da Ponte Preta”, no livro O Vampiro de Curitiba (1965), uma fina paródia do filme japonês Rashomon:

“Na noite de vinte e três de junho, Ritinha da Luz, com dezesseis anos, solteira, prenda doméstica, ao sair do emprego, dirigiu-se à casa de sua irmã Julieta, atrás da Ponte Preta. Na linha do trem foi atacada por quatro ou cinco indivíduos, aos quais se reuniram mais dois. Então violada por um de cada vez e abandonada entre as moitas. Seu choro atraiu um guarda-civil, que a conduziu até a delegacia.”

É um garçom do Buraco do Tatu o triste protagonista de O senhor meu marido (A guerra conjugal, 1969), o João que morava com sua Maria num barraco de duas peças no Juvevê. Outro belo exemplo da técnica narrativa enxuta de Dalton:

“Garçom do Buraco do Tatu, trabalhava até horas mortas; uma noite voltou mais cedo, as duas filhas sozinhas, a menor com febre. João trouxe água com açúcar e, assim que ela dormiu, foi espreitar na esquina. Maria chegava abraçada a outro homem, despedia-se com beijo na boca. Investiu furioso, correu o amante. De joelho a mulher anunciou o fruto do ventre.”

Nem o relógio de sol da Farmácia Stellfeld, de 1857, ainda ativo na Praça Tiradentes, escapa à sua sanha ficcional. No conto Prova de redação, do livro Macho não ganha flor (Record, 2006), ele participa de uma cena erótica entre um escritor velho-babão e uma lolita com uniforme de normalista:

“De repente o doutor me empurra (eu? ela?) de cara contra a parede. Ergue a saia e bota o Ponteiro do Relógio de Sol (tem um lá na Praça Tiradentes, isso que é falar bonito!) dentro da calcinha entre as bochechas (ai, lindas bochechas minhas, bem redondas, assim empinadas).”

Dois parágrafos antes, “o doutor exibe o que chama de Memorial de Curitiba, com trofeus e escudos pendurados...”, outra alusão fálica a um marco do centro histórico.

A cartografia daltoniana não tem fim. Os rios Ivo e Belém — como o Tigre e o Eufrates da Antiguidade — abarcam uma mesopotâmia contemporânea, com seus dramas e desejos. Eles são citados em várias passagens, como no Cemitério de elefantes (1964): “À margem esquerda do rio Belém, nos fundos do mercado de peixes, ergue-se o velho ingazeiro — ali os bêbados são felizes.[...] Lá do sulfuroso Barigui rasteja um elefante moribundo.” Um conto de Crimes de paixão (1978), intitula-se “Dá uivos, ó porta, grita, ó rio Belém”. A hidrografia curitibana, meros fiapos de água poluída, é cantada também em “Lamentações de Curitiba” (1968): “Ó lambari de rabo vermelho do rio Ivo, passou o tempo assinalado [...] No rio Belém serão tantos afogados que a cabeça de um encostará nos pés de outro, e onde a cachaça para mil e um velórios? [...] O rio Barigui se tingirá de vermelho mais que o Eufrates.”

A Curitiba de Dalton é uma cidade imaginária, tão fictícia como a Macondo de García Márquez ou o condado de Yoknapatawpha de William Faulkner. Mas ele a mantém sob uma capa pseudo-realista, com os mesmos contornos da Curitiba real. Faz mais ou menos como Joyce, que abandonou Dublin em 1904, mas passou o resto da vida escrevendo sobre a cidade, sua paisagem e seus tipos. Com uma diferença: não se sabe quando Dalton abandonou Curitiba ou se chegou sequer a morar algum dia nela. Apesar de residente na cidade, ele sempre foi um étranger (Camus), um outsider (Colin Wilson), o autodenominado Vampiro, espreitando a vida de seus conterrâneos escondido nas sombras.

Mantivemos, Dalton e eu, no final dos anos 1950, um salutar Atletiba literário — Joyce versus Salinger. Joyceano roxo, Dalton via em Salinger certa religiosidade mística que não lhe agradava. Igualmente ateu, eu contra-argumentava que o Zen de Salinger nada tinha de religioso, era mais uma postura filosófica diante da vida. Eis que, no conto “Marishka”, do recente Desgracida (Record, 2010), Dalton homenageia Salinger no final da enumeração dos encantos da moça, ao melhor estilo da letra de “You’re The Top”, do Cole Porter:

“Marishka transcende o tempo. É um diálogo de Platão, broinha de fubá mimoso, um poema de Rilke, o coração da alcachofra, girassol de Van Gogh, o cantiquinho da corruíra, um conto de Tchecov, o som de uma só mão que bate palmas.”

O som de uma só mão batendo palmas, uma charada Zen, é a epígrafe das Nove estórias, de Salinger. Além da lendária reclusão de Salinger, Dalton tem em comum com ele o sacerdócio da escrita. “Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete,” escreveu o curitibano. Salinger afirmou certa vez que “a escrita como arte é a experiência magnificada.” Muito discretamente, Dalton faz também da sua vida matéria-prima para seus textos. A agressão dos decibéis de uma igreja “moderninha” em frente de sua casa, com os cultos embalados a heavy metal, foi exorcizada em “Lamentações da Rua Ubaldino”:

“No princípio era o silêncio na Rua Ubaldino
eis que o número 666 da Igreja Central Irmãos Cenobitas
ergueu cartazes anunciando sinais e prodígios
não a flauta doce e harpa eólia para louvar o Senhor
mas a caixa de ressonância da buzina do Juízo Final
e o amplificador dos agudos desafinados de Gog e Magog
além da mão esquerda não saber o que faz a direita
as duas juntas rompem no batuque iconoclasta do bombo
nunca tal se viu na Rua Ubaldino de hospital escola gente calada.”

Dalton chega a ser despudoradamente autobiográfico em “Quem tem medo de vampiro?”:

“Há que de anos escreve ele o mesmo conto? Com pequenas variações, sempre o único João, a mesma bendita Maria. Peru bêbado que, no círculo de giz, repete sem arte nem graça os passinhos iguais. Falta-lhe imaginação até para mudar o nome dos personagens. Aqui o eterno João: 'Conhece que está morta.' Ali a famosa Maria: 'Você me paga, bandido.'”

Não importam as críticas e a cáustica autocrítica. Os adeptos do Vampiro de Curitiba continuarão sorvendo seus contos — celeremente, antes que coagulem — alimentando-se de suas histórias, recebendo seus relatos como sacrílegas bênçãos e heréticas indulgências plenárias, iniciadas pela invocação Urbi et Orbi, entronizando Curitiba como a eterna Roma dos Joões e Marias famélicos da terra, deserdados do mundo.

Roberto Muggiati nasceu em Curitiba e é jornalista desde 1954. Trabalhou na BBC de Londres nos anos 1960 e foi editor das revistas Manchete e Fatos &Fotos. Publicou diversos livros, entre eles Rock: o grito e o mito e o romance A contorcionista mongol. Vive no Rio de Janeiro (RJ)