Making of | Guerra e Paz

A Ilíada de Tolstói

Sem precedentes na história literária mundial, Guerra e paz é um vasto painel social e político da Europa no século XIX, mas também a grande realização de um escritor obcecado por sua obra


Luiz Rebinski Junior


Em se tratando de Leon Tolstói, tudo parece ser superlativo. E isso vai muito além da extensão dos romances que o autor russo escreveu ao longo de seus 82 anos e inclui, claro, seu mais célebre livro, Guerra e paz, que discute uma gama imensa de assuntos, não apenas relacionados à Rússia do século XIX, mas de grande parte da Europa. É uma obra monumental em todos os aspectos, inclusive no que se refere ao seu percurso editorial.

A grosso modo, o livro trata do confronto das forças dos czar russo Alexandre I com os exércitos napoleônicos em um período que vai, aproximadamente, de 1805 a 1820. Para além das batalhas, Tolstói apresenta um amplo painel da vida russa do início do século XIX, construído a partir de uma galeria imensa de personagens, de todas as classes sociais. Além disso, ao tratar de fatos históricos, o autor inevitavelmente constrói sua ficção baseado em figuras públicas de seu tempo, com especial destaque para Napoleão Bonaparte, a personalidade mais controversa da época.

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Quando começou a escrever Guerra e paz, Tolstói já era um escritor conhecido e homem maduro. Havia entrado nos cursos de direito e letras orientais na Universidade de Kazan, servido na guarnição do Cáucaso — onde escreveu o livro Infância —, além de ter participado da Guerra da Crimeia.

Publicado inicialmente em fascículos na revista Mensageiro Russo, Guerra e paz primeiramente se chamou 1805, em uma referência ao período em que se inicia a narrativa. “Mas o livro se tornou muito mais abrangente do que o autor havia previsto e o título 1805 se revelou inevitavelmente redutor”, diz Rubens Figueiredo, tradutor da mais recente edição brasileira do romance, com 2500 páginas distribuídas em dois volumes. O título que ficaria mundialmente famoso teria sido inspirado em um livro do anarquista francês Pierre Proudhon, La guerre et la pax.

Persuadido pela mulher Sofia, Tolstói resolveu interromper a publicação em forma de folhetim na revista mensal e a começar a publicá-lo, volume por volume, em formato de livro. “Além do mais, diferentemente de outros textos de autores russos igualmente publicados em forma de folhetim, Guerra e paz não se adaptava bem a uma publicação em série. Seu alcance era muito grandioso. Não havia nenhum ‘gancho’ no fim de cada fascículo que induzisse o leitor a comprar o próximo número para ver como as coisas se desenvolviam”, escreve William L. Shirer em Amor e ódio, que narra a relação entre Tolstói e a mulher Sofia.

COPIDESQUE

A mulher de Tolstói também teria um papel fundamental em tarefas mais prosaicas, como passar a limpo o que o marido produzia diariamente. Ao que tudo indica, ninguém mais em Iasnaia Poliana, a propriedade rual onde o escritor se isolou para escrever sua obra, conseguia decifrar a caligrafia de Tolstói.

Segundo o biógrafo William L. Shirer, Sofia havia copiado o romance sete vezes.

O tamanho da obra  também representou um problema para o editor de Tolstói, P.I. Barteniev. “Só Deus sabe o que o  senhor está fazendo”, escreveu o editor. “Se continuar assim, vamos recompor e corrigir eternamente.  Qualquer um pode lhe dizer que metade das mudanças que o senhor faz são  desnecessárias. No entanto elas causam uma diferença apreciável nos custos da composição tipográfica. Eu pedi ao tipógrafo que lhe mande uma conta separada, só das correções. Pelo amor de  Deus, pare de rabiscar.”

Escrito ao longo de cinco anos, a partir de 1865, Guerra e paz foi  lançando em 1869, em seis volumes. O próprio Tolstói adiantou 4.500 rublos ao tipógrafo. Como se  revelaria mais tarde, a primeira edição do livro, cujos seis volumes eram vendidos por oito rublos, traria ao autor uma pequena fortuna.

TORNANDO-SE UM CLÁSSICO

A repercussão do livro foi  imediata. A literatura russa do século XIX estava entranhada na sociedade e os livros eram recebidos  sempre com muita polêmica. “Os leitores pertenciam sobretudo à classe alta. Mas  naquela altura a sociedade russa se transformava de maneira rápida e profunda. Uma camada numerosa da população, oriunda de famílias de comerciantes e de funcionários de baixo e médio  escalão, começava a ter acesso à educação”, diz Figueiredo.

Diferente do padrão “europeu” de  romance da época, Guerra e paz, mesclava relatos da história recente da Rússia a uma base  ficcional bastante engenhosa, que dava conta de centenas de personagens. A própria mulher de  Tolstói antevia que o trabalho do marido continha grande singularidade. “Em minha opinião, o  romance [Guerra e paz] será algo extremamente fora do usual”, escreve Sofia à irmã em 1867, enquanto corrigia os originais do marido.

O próprio Tolstói se negava a qualificar o livro, dizendo que não se tratava “nem de um romance, nem  de poema, nem sequer de crônica histórica”. E comparou, sem falsa modéstia, seu trabalho à Ilíada,  de Homero.

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Apesar da questão política da época estar presente ao longo de todo o romance, Guerra  e paz representa um grande painel realista de seu tempo, com todas as classes da sociedade  retratadas. Dos generais que foram ou não à guerra, à imensa classe de mujiques e servos, que  representavam a camada mais baixa do sistema russo. Permeado de citações em francês, o idioma  preferido da elite para falar sobre política, o romance mostra a ambiguidade de uma nação, acossada pela presença de um inimigo que ao mesmo tempo é tão influente em sua cultura.

Figueiredo, no entanto, alerta que não se pode supor que esse uso insistente do idioma francês e as  referências à sociedade inglesa e alemã atestem uma admiração de Tolstói pelo suposto avanço representado por tais sociedades. “Bem ao contrário. E basta ver o polêmico epílogo do romance  para comprová- lo. Trata-se, isto sim, de questionar o pressuposto de superioridade daqueles  países, incutido tanto nos observadores externos como nos russos, em especial os da elite.”