Making Of
Molecagem na veia
Sem ter recebido adiantamento, Reinaldo Moraes escreveu um dos romances mais instigantes e festejados da literatura brasileira. As obras posteriores confirmariam o talento do autorMarcio Renato dos Santos
O último beatnik: Moraes afinou o discurso de Tanto faz após reler, em Paris, Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade
“Nem hoje eu sei o que quero da vida, imagina há 30 anos!”. Apesar da aparente despretensão, Reinaldo Moraes, evidentemente, não poderia ter conhecimento de seus futuros passos, mas escreveu — há mais de três décadas — um dos romances mais expressivos da literatura brasileira.
Tanto faz saiu em 1981, pela editora Brasiliense — na coleção “Cantadas Literárias”, e é uma das estreias mais afirmativas da história recente.
Texto poderoso. Linguagem sofisticada e irresistível, com direito a oscilações da primeira para a terceira pessoa. Enredo que apresenta um personagem livre, leve e solto em Paris, enquanto a era militar entrava em decomposição nestes alegres trópicos. Visão de mundo crítica, mas com humor sobre nossas mazelas, nossas ruínas reais: “O Rio que a classe média vive agora é o Rio dos assaltos e das longas filas nos postos de gasolina.”
Entre outras qualidades e características, Tanto faz também traz reflexões sobre o fazer literário: “Disciplina pode dar certo pra aprender alemão ou perder a barriga, mas para escrever — negativo. O importante é o saque, o tchans. Senão ficam aquelas frases que parecem o Penha-Lapa, apinhadas de palavras saindo pelas portas e janelas.”
De fato, a exemplo do que o autor escreveu em sua obra de ficção, importante mesmo é o saque — e isso se aplica demais a Tanto faz. De acordo com o próprio Reinaldão — como ele é chamado pelos conhecidos —, a ideia-força que deflagrou o romance foi a seguinte: “Queria escrever uma espécie de diário ficcional, mas com forte base autobiográfica. A ideia amadureceu depois de eu ter lido Notas de um velho safado, do Charles Bukowski, e relido Memórias sentimentais de João Miramar, do Oswald de Andrade, lá em Paris. Formalmente, a ideia era construir uma constelação de fragmentos.”
Formado em administração de empresas pela Fundação Getúlio Vargas, em 1975, Naldo — codinome que ele usa para assinar mensagens por e-mail — viajou para Paris com recursos de uma bolsa mista da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap) e do governo francês. Durante a estada, ele escreveu — entre julho de 1979 e 1981 — os 71 capítulos que compõem a narrativa fragmentada.
Pé na rua
João Almino flanava em Paris no final da década de 1970, fazia doutorado e frequentava festas nas quais o cardápio incluía discussões sobre as ideias de Michel Foucault, Roland Barthes, Gilles Deleuze e outros pensadores. Em um desses encontros, ele conheceu Moraes, “Um cara legal, inteligente, culto e com muito humor”. Atualmente embaixador do Brasil em Madri, Almino leu — naquele contexto — os manuscritos do romance libertário. “Li Tanto faz em primeira mão como uma espécie de On the road que não saía da cidade. Neste primeiro livro do Reinaldo, o que me atraiu foi a linguagem ágil”, comenta o diplomata e também escritor, autor dos romances O livro das emoções (2008) e Cidade livre (2010).
Naldo confirma que, a exemplo de Almino, outros interlocutores, e interlocutoras, leram a primeira versão de Tantos faz, em Paris e também no Brasil, quando ele retornou. “As reações foram muito boas: a turma parecia se divertir com o livro.”
“É engraçado como o caminho do meu romance ficou paralelo ao caminho desse vidão que eu tô levando aqui. Não me refiro aos fatos narrados; os fatos não têm importância. Me refiro ao processo da coisa, sacumé?”
O trecho entre aspas do parágrafo anterior é do romance, mas houve quem tentasse ver no protagonista Ricardo mero espelho do autor. Evidentemente, a narrativa não é, não era, um boletim de ocorrência das venturas, e desventuras, de Moraes. Mais que tudo, Tanto faz é resultado de muito trabalho. Questionado sobre quantas vezes escreveu — à mão e na máquina de escrever — antes de publicar, ele é sucinto: “Uma porrada [de vezes]”. “Reescrevia sem parar, inclusive na fase das provas”, completa.
Após retoques, outras revisões e tapas, Reinaldão colocou o pé na rua em busca de uma editora. Bateu na porta da Moderna, que recusou. Na extinta CODECRI (do Pasquim), recebeu sim. “Mas o cara que aceitou morreu, ou algo assim.” A Brasiliense — enfim — aceitou, e o resto (já) é história.
Má companhia
Quando Tanto faz chegou às livrarias, em 1981, Alvaro Costa e Silva se preparava para fazer vestibular e, no ano seguinte, teve de cumprir o serviço militar obrigatório — no Exército. Ele teria contato com o romance anos após o lançamento, quando o livro de estreia de Reinaldão começava a ser considerado cult. “E a expectativa só se confirmou: um livro libertário, engraçado, com perfeito uso de certa linguagem coloquial. Mas, repare, é um coloquial que só o Reinado tem ou que só funciona com ele”, diz o jornalista cultural carioca conhecido como Marechal, que se notabilizou por escrever, durante muitos anos, no Jornal do Brasil.
Pela Brasiliense, saíram três edições. A Azougue Editoral reeditou o romance em 2003 e, ano passado, a Companhia das Letras publicou — pelo selo Má Companhia — Tanto faz seguido do segundo livro de Moraes, Abacaxi (1985). “Foi uma estreia das mais promissoras. Pena que depois do Tanto Faz e do Abacaxi, o Reinaldo tenha demorado tanto tempo para desovar outro livro de ficção. Ficamos, os seus admiradores, de certa maneira órfãos dele”, comenta Marechal.
Mesmo sem publicar livros, Naldo atravessou décadas escrevendo contos e crônicas, veiculados em revistas, roteiros de filmes e telenovelas, peças de teatro e traduções — de Charles Bukowski e Thomas Pynchon. Em 2003, saiu a novela A órbita dos caracóis, e, em 2005, os contos de Umidade — até retornar ao romance com o festejado Pornopopeia (2009). “Na minha opinião, ele é hoje um dos maiores escritores do Brasil. E isso quer dizer que ele é um escritor totalmente diferente da maioria, porque prefere correr riscos, fazer livros que outros não teriam a coragem de fazer e assinar”, afirma o jornalista.
Para amanhã
Moraes diz não identificar a ressonância de seu livro de estreia em obras de autores recentes. “Meu ouvido não é bom para ecos”. Alvaro Costa e Silva também considera difícil falar sobre a influência literária que Reinaldão exerceu em outros escritores. “Mas vejo pontos de contato entre a obra do Reinaldo e a autoficção de Marcelo Mirisola”, afirma o jornalista.
Mirisola confirma o comentário de Marechal, e faz uma confissão. “Escrevi um romance chamado Teresa para amanhã que era uma cópia brochante e datada do Tanto faz. Ainda bem que o abandonei. No entanto, aproveitei algumas coisas no Herói devolvido. Aliás, aproveitei muita coisa, diálogo escancarado”, diz o autor que, ao ler Tanto faz, se identificou imediatamente com o sotaque paulistano safado de Naldo.
“Devia ter uns 30 anos. Havia passado por Henry Miller há um bom tempo, e o Reinaldão bateu quase que do mesmo jeito. A diferença consistia basicamente no sotaque paulistano de classe média, um sotaque irresponsável e nada engajado, o qual me identifiquei de imediato. Daí o impacto: dessa diferença tão próxima e até então completamente inexplorada na literatura brasileira”, afirma Mirisola, que publicou, entre outros, Bangalô (2003), Joana a contragosto (2005) e Charque (2011), e que — em sintonia com o protagonista inventado por Reinaldão — arremata: “Tanto faz era molecagem na veia”.