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Quando a memória é literatura

Publicado há 41 anos pela Editora Sabiá, de Fernando Sabino e Rubem Braga, Baú de ossos garantiu a Pedro Nava a reputação de grande autor brasileiro

Marcio Renato dos Santos

Foto: Ricardo Chaves

1972 é o ano em que a literatura brasileira registra o aparecimento de um livro que, até hoje, provoca impacto nos leitores. Trata-se de Baú de ossos, o primeiro de uma série de sete títulos de memórias de Pedro Nava (1903-1984). O reconhecimento da obra e do autor foram imediatos. Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, não economizou elogios: “Minha geração, a que ele pertence, tem orgulho de oferecer às mais novas um livro com a beleza, a pungência e o encanto da obra excepcional que Pedro Nava realiza com este primeiro volume de memórias, digno de figurar entre o que de melhor produziu a memorialística em língua portuguesa.” Otto Lara Resende também se entusiasmou: “Considero um livro fundador, no sentido de que é um livro que sozinho dá notícia de uma cultura. Mais importante para a literatura brasileira que Marcel Proust para a cultura francesa. Simplesmente genial.”

Foi por meio da Editora Sabiá, empreendimento dos escritores Fernando Sabino e Rubem Braga, que o público teve acesso, há 41 anos, à primeira edição de Baú de ossos. “Quando o Sabino conclui a leitura dos originais, prepara imediatamente um contrato de edição da obra, tamanho o entusiasmo com o que lera”, comenta Júlio Valle, professor do curso de Letras da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), autor de dissertação de mestrado e tese de doutorado sobre a obra de Pedro Nava — ambas defendidas na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). 

Nava escreveu Baú de ossos entre os dias 1º de fevereiro de 1968 e 15 de outubro de 1970. Os dados são exatos. “Tamanha precisão só é possível porque Nava tinha o costume de anotar, ao final de cada volume, as datas correspondentes ao início e fim da redação do livro em questão. Dedicou, por assim dizer, quase três anos à escrita do primeiro volume”, observa Valle. O estudioso, porém, afirma que é difícil, se não impossível, determinar o tempo de maturação da obra.

“Afinal, às vezes, por mais despropositada que pareça a afirmação, tem-se a impressão de que o tempo de maturação de Baú de ossos equivale ao próprio tempo de existência de Nava até, e durante, a composição do livro.” O especialista tem a informação de que, ainda muito jovem, Nava interveio ativamente na preservação de um arquivo familiar que estava em vias de ir para o lixo — “fato que, se tivesse mesmo ocorrido, iria comprometer parte do que se relatou, muitos anos depois, em seus livros. Além disso, Nava sempre foi um anotador contumaz e disciplinado de causos familiares. É claro que nada disso deve ter sido premeditado completamente, mas a verdade é que havia, desde há muito, um memorialista incubado no olhar de Nava sobre o mundo.”

Inventário, pintura e poesia

Os originais de Baú de ossos estão no Arquivo-Museu de Literatura Brasileira, da Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Júlio Valle teve acesso ao conteúdo durante pesquisas acadêmicas e conseguiu identificar de que maneira Nava traduziu as memórias em texto. “Após um extenso trabalho de pesquisa, que consistia em fazer leituras e entrevistas, tomar e compulsar variadas notas, além de consultar sistematicamente todo um inventário familiar conservado com esmero incomum, Nava partia para a escrita propriamente dita. Escrevia à máquina numa folha de papel grande e não pautada dobrada ao meio, reservando a página esquerda para a datilografia do texto original e, a direita, para correções, emendas e anotações das mais variadas, todas elas funcionais, de alguma forma, para o produto textual final”, comenta o pesquisador.

A recepção positiva de Baú de ossos e do projeto Memórias (o segundo livro, Balão cativo, foi publicado em 1973) faz com que o autor, um reumatologista internacionalmente conhecido, se dedique cada vez menos à medicina — em 1975 ele se afasta de cargo de direção da Policlínica Geral do Rio de Janeiro.

Mas Pedro Nava já era conhecido no meio literário antes de estrear como autor. A professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Ana Chiara, autora do livro Pedro Nava: um homem no limiar, observa que, na década de 1920, o futuro memorialista frequentava o Café Estrela, em Belo Horizonte — espaço onde jovens, como Carlos Drummond de Andrade, se reuniam para conversar sobre literatura e arte. Além disso, acrescenta Ana, Nava foi um talentoso desenhista. “Seus belíssimos desenhos ilustram uma edição do livro Macunaíma, de Mario de Andrade, de quem também foi correspondente”, diz. As cartas de Mario ao Pedro Nava estão no livro O correspondente contumaz: Cartas a Pedro Nava (1925-1944), publicado pela Nova Fronteira em 1982. Autor de poemas publicados em revistas e jornais, a poesia de Nava foi incluída na Apresentação da poesia brasileira, antologia organizada por Manuel Bandeira. 

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Algumas capas: Baú de ossos foi publicado em 1972 pela Editora Sabiá, que foi adquirida pela José Olympio e que passou a editar a obra. Posteriormente, a produção de Nava foi publicada pela Nova Fronteira, pelo Círculo do Livro, pela Ateliê/Giordano e, atualmente, pela Companhia das Letras.


Artisticamente impactante e atual

As 520 páginas de Baú de ossos da edição de 2012, da Companhia das Letras, ou as 464 da versão da Ateliê Editorial/ Giordano, de 1999, trazem uma genealogia aparentemente sem fim. O autor cita e lista seus parentes e conta episódios sobre eles. Ana Chiara, da UERJ, lembra que a interpenetração de realidade e imaginação é a condição do processo memorialístico. “Talvez as mais belas memórias sejam as ‘inventadas’”, afirma Ana.

Além da busca pelo rastro de seus antepassados, o memorialista também recupera episódios que foram decisivos em seu próprio percurso. Uma das cenas mais impactantes de Baú de ossos é o momento em que o menino Pedro Nava faz uma escavação e encontra o esqueleto de um macaco em decomposição, o que, na interpretação do homem experiente que escreve as memórias, teria sido o primeiro sinal de que ele iria se tornar médico — por causa de sua atração pela biologia. A professora da UERJ diz apreciar o episódio em que Nava define, a partir de uma gota de água congelada de uma estalactite, a noção de presente eterno da arte — “tal como o tempo recuperado de Proust. É uma cena muito lírica e plástica”. Júlio Valle, da UNIFESP, também tem um trecho favorito: o das páginas finais, nos quais se narra a morte do pai de Nava, quando o autor tinha apenas oito anos: “Tudo ali é muito impactante, não só pela força dramática inerente à situação, mas sobretudo pelo modo como dispõe alguns detalhes que agem decisivamente sobre a recomposição da tragédia familiar. Cito, como exemplo, a impressão de que o vulto do pai parecia diluir-se contra o cinza da tarde — um evidente presságio da iminente desaparição do parente, levado pela doença.”

Entre as muitas características de Baú de ossos, Valle chama a atenção para a atualidade da obra. “O livro é atual porque é literariamente rico e inspirado, de modo muito dramático, por questões vitais como as relações familiares e a experiência da morte. Em outras palavras: é atual porque trata de questões humanas fundamentais de modo artisticamente impactante.” O estudioso analisa que, com o primeiro livro, Pedro Nava reintroduz a literatura naquele círculo de questões problemáticas para as quais, durante a leitura, parecemos encontrar não necessariamente respostas, mas formulações emocionalmente iluminadoras — “e isto, para mim, é o principal.”