Livro e leitura

Os livros que as presas leem

A editora Vanessa Ferrari escreve sobre sua experiência como mediadora de um clube de leitura em uma penitenciária paulista

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Enquanto o quarteto de cordas da Academia de Música da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp) passava o som, cinco presas jogavam vôlei no pátio do pavilhão 2. Do auditório improvisado para receber os músicos, uma pianista e um coral de 20 pessoas, era possível ver através da janela as mulheres jogando a bola de um lado para o outro, em uma partida sem muito ritmo e desfalcada de integrantes. Fora da quadra, em um canto do pátio, uma garota penteava o cabelo recém-lavado e, de vez em quando, para obter o caimento desejado, com um movimento brusco inclinava a cabeça para baixo, de modo que o cabelo quase tocava o chão, para depois, na volta igualmente brusca da cabeça, acomodá-lo nas costas. Se elas ouviam a música, é difícil saber. Não havia ali um único olhar em direção ao salão, um cochicho, nenhum gesto indicando que algo fora da rotina da penitenciária estava prestes a acontecer. Mesmo quando as cordas reverberavam com força, as presas seguiam concentradas em seus passatempos.

Nos dias que antecederam a apresentação, um grupo delas se encarregou de deixar tudo em ordem. As cadeiras e o auditório foram limpos e enfeitados, boa parte das goteiras reparada. Uma parede de cimento foi erguida a toque de caixa, criando uma antessala ao lado do palco que serviu de camarim. Essas jovens faziam parte de um grupo de 30 pessoas que participavam de clubes de leitura na penitenciária. Elas, as demais integrantes desse clube e todas as presas que estudavam tinham lugar garantido no concerto da Academia da Osesp. As vagasremanescentes foram reservadas às internas que trabalhavam. Ao todo, 200 presas assistiriam à apresentação.

Entre coral, músicos, equipe técnica, mediadores de leituras e convidados, havia quase 40 pessoas. Para garantir a entrada dos visitantes, a direção da Penitenciária Feminina de Sant’Anna organizou um esquema especial de segurança. O caminhão com as caixas dos equipamentos passaria por revista, os instrumentos seriam vistoriados e uma lista com o nome dos convidados seria conferida na portaria. Era preciso também adaptar a escala de almoço dos agentes de segurança à chegada dos músicos, que estariam lá por volta das 12h30. Os visitantes deveriam obedecer a um manual de conduta. Não seria permitido ninguém com calça amarela e camisa branca, para não coincidir com o uniforme das presas, tampouco adereços e fivelas nos sapatos, para não disparar o detector de metais. Bolsa e celular, proibidos. Às mulheres, nada de decotes.

No dia, a equipe técnica chegou de manhã para a montagem, os músicos e o coral no começo da tarde. A apresentação estava marcada para as 15h em ponto de uma quarta-feira de março de 2015. Com os músicos acomodados, a preocupação passou a ser a chuva que caía. Se o teto não estivesse bem restaurado, as chances de chover no interior do auditório durante o concerto seriam grandes.

O repertório, que ia do clássico ao pop, foi criado pelo pianista Rogério Zaghi e por Marcos Thadeu, maestro da Academia. O quarteto começou com a “Pequena serenata noturna”, de Mozart, passando por Guerra Peixe e Carlos Gardel, autor de “Por una cabeza”, tango que Al Pacino dançou em Perfume de mulher. Por último, Ernani Aguiar.

Com todos acomodados, o cerimonial foi seguido à risca: primeiro entrou o quarteto, depois a pianista e, por último, o maestro, que deu sinal verde para que os artistas reverenciassem o público. A primeira peça foi um esquenta e os aplausos, comedidos. Porém, à medida que o concerto avançou, equipe técnica, mediadores e plateia começaram a desmoronar. O coral entrou em seguida. Depois das duas primeiras músicas interpretadas em italiano, uma presa mais galhofeira deu graças a Deus que finalmente o coro cantava em português. “Foi meio esquisito”, ela confidenciou a uma amiga.

Quase no final, o maestro Marcos Thadeu convidou a plateia para cantar o que talvez seja o refrão mais famoso de Paulo Vanzolini. Quando a batuta autorizou, o salão veio abaixo com os versos de “Volta por cima”. Houve bis, tris e o programa de uma hora se estendeu mais do que o esperado. O concerto acabou, o toque de recolher já havia sido dado, as presas saíram primeiro e aos poucos, enquanto os convidados que esperavam a chuva passar cortaram caminho por um dos pavilhões. Na passagem do grupo pelo corredor, a plateia, agora acomodada em suas celas, se despediu pelas frestas de seus quartos.

Clube de leitura

Quatro anos antes, um grupo voluntário de mediadores começou um projeto de leitura na Penitenciária Feminina de Sant’Anna com uma proposta relativamente simples. Uma vez por mês, os voluntários se reuniriam com 20 presas que trabalhavam na área educacional do presídio para um bate-papo sobre livros. Estavam envolvidas bibliotecárias, professoras multidisciplinares e leitoras assíduas dos três pavilhões, que abrigavam quase 3 mil pessoas. Os títulos seriam enviados a elas previamente e a discussão duraria uma hora. No final do encontro, outro livro seria eleito para o mês seguinte e, para cada obra lida, quatro exemplares seriam doados às bibliotecas do presídio. Eventualmente, um ou outro autor seria convidado. Na falta de modelos anteriores e para não caírem na armadilha do assistencialismo, os mediadores se fiaram em duas regras: diversidade literária e confiança no leitor. A função dos voluntários seria apresentar repertório e a das leitoras, construir suas preferências literárias.

Embora o tema fosse literatura e todos estivessem lá por vontade própria, a estreia foi tensa. Dos mediadores, porque elegeram Dois irmãos, de Milton Hatoum, e poderiam ter errado feio logo de cara; das meninas, porque queriam entender o propósito daquelas reuniões. Naquele dia e nos meses seguintes, a dificuldade não foi atravessar as narrativas, e sim lidar com a frustração quase generalizada da ausência de livros com final feliz.

A composição desse primeiro grupo se manteve intacta por quase dois anos. Eram mulheres que cumpriam penas longas, com segundo grau completo e histórico de bom comportamento, critérios para concorrer às funções pedagógicas. Aos poucos as bibliotecárias começaram a dar vida nova a seus postos de trabalho, sugerindo os livros que mais gostavam e controlando listas de espera dos mais concorridos, uma façanha para quem até pouco tempo antes gerenciava um catálogo não muito atraente. À base de doações de terceiros e de instituições, a maioria dos títulos era ruim, de temas obscuros, mal escritos ou de difícil compreensão, além de autoajuda e de uma quantidade considerável de livros sobre direito penal, tijolaços consultados frequentemente.

Marçal Aquino foi o primeiro autor convidado a conversar com o grupo. Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios causou tanto furor quanto Lavínia, a personagem que transbordava sensualidade e que nocauteou Cauby, o anti-herói do romance. O autor respondeu às perguntas com desenvoltura e não se abalou com uma cantada à queima-roupa. “Quem é a sua Lavínia?”, perguntou uma das presas, querendo dizer “Quero ser a sua Lavínia”. Essa mulher era boa leitora e assídua do clube, tinha sempre um comentário bem-humorado e de um ponto de vista pouco óbvio. Um dia ela não apareceu a um encontro do clube. Sua saúde não era muito boa, sofria de pressão alta e controlava as crises com remédio. Naquela semana, teve um infarto fulminante e morreu antes que a enfermaria pudesse socorrê-la.

As discussões no clube de leitura iam de vento em popa e o tema do final feliz ficara para trás. Era hora de levar algum poeta. A escritora Noemi Jaffe foi convidada para falar de Drummond, e, se dessem certo, essas aulas especiais poderiam ser repetidas no futuro. As meninas se prepararam com uma rodada prévia para trocar impressões e se saíram bem no dia, animando os mediadores a levar a antropóloga Lilia M. Schwarcz para um debate sobre Jorge Amado. A essa altura, o clube já havia se consolidado e os encontros com escritores e professores se incorporado à proposta.

Marçal Aquino reinou absoluto até a chegada de Juan Pablo Villalobos. Festa no covil gerou um debate polêmico, que puxou a leitura de seu segundo livro e uma visita do autor mexicano ao presídio. Até então os clubes tinham o caráter exclusivo de formação de leitores, mas uma lei federal de 2014 autorizando a remição de pena pela leitura deu outro status ao projeto, que serviu de modelo para que a Funap, órgão público que trabalha a inclusão social dos presos, em parceria com a Companhia das Letras implementasse a ideia em oito novas penitenciárias do Estado de São Paulo. Mais que depositar expectativas exageradas no poder de transformação da literatura, o pulo do gato dos clubes de leitura foi entender como funciona a cabeça do leitor e, a tomar por essa experiência ela vai muito bem, contrariando todo o pessimismo que nos assola quando o tema é literatura


Vanessa Ferrari é editora da Penguin-Companhia e mediadora voluntária do projeto de clubes de leitura da Companhia das Letras. O concerto da Academia de Música da Osesp foi um convite da editora em homenagem ao Mês da Mulher. Vive em São Paulo (SP).

Ilustração Marluce Reque