Literatura em cena | Salvador

Bahia de poucos santos


Sob a sombra de Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, escritores soteropolitanos persistem em busca de novas temáticas e de espaço em um mercado limitado


Davi Boaventura

Foto: Amanda Dutra

James Martins aponta a falta de suplementos culturais na imprensa baiana.
A frase, embora lugar comum, é inevitável: a cena literária de Salvador é, hoje, feita em estilhaços. É fragmentada, dissonante, pouco se vislumbra um todo coeso, quiçá inalcançável. É um cenário de distâncias, espaços distantes. Terceira cidade mais populosa do país, com quase três milhões de pessoas, sem contar a população flutuante da Região Metropolitana, Salvador realmente assiste a uma explosão de eventos literários — em geral ancorados na poesia, na maioria independentes e de cunho performático (saraus, palestras, festivais, e por aí vai) —, mas essa é uma explosão cujo contorno, se revela uma necessidade de expressão latente, e dialoga com a tradição cultural efervescente da cidade, revela também uma segregação entre os diversos grupos e autores, ora isolados por diferenças estéticas, ora reféns de um mercado limitado, ora mudos pela falta de espaço na imprensa, ora sufocados pela falta de investimento público e privado.

Que tempo é esse? Lívia Natália, professora do departamento de Letras da Universidade Federal da Bahia e autora de Água negra, livro de poesia vencedor de prêmio oferecido pela Banco Capital em 2010, diz que Salvador está “em um momento muito fértil de uma literatura que sempre foi forte, vigorosa, mas que, no que diz respeito à difusão e circulação da amplitude de seus autores, nunca foi suficientemente plural”. Kátia Borges, jornalista, escritora e uma das criadoras do sarau Prosa & Poesia, que acontece na capital baiana, diz perceber “que o momento é único, e há coisas muito boas fervendo no caldeirão, embora a refeição ainda não esteja pronta para consumo”. Já Alex Simões, professor de língua portuguesa e poeta diz enxergar um “momento de transformação, de eclosão de focos de produção e distribuição de textos literários e, o mais importante disso tudo, de eclosão de nichos e coletivos de criação”.

Mas a crítica mordaz — ou o pessimismo — é imediata. Surge em falas contundentes, como as de James Martins, poeta e idealizador do Pós-Lida, talvez o sarau mais reconhecido da capital, para quem o cenário “parece, antes de tudo, pouco literário, mais marcado por grupos de amigos cuja função é massagearem-se os egos mutuamente, ou fazer ‘polititicagem’”. Ainda que faça ressalvas positivas ao boom dos saraus, pois da quantidade poderia até surgir a qualidade, James avalia que a cena de hoje é de “um ambiente de pouco conflito e, em consequência, de pouca saúde literária. Nosso cenário me parece antes uma espécie de serviço social em que os carentes são também os que se pretendem caridosos”.

E, neste sentido, James encontra ecos, por exemplo, em Márcio Matos, autor de A suave anomalia, cuja reclamação primeira é a baixa profissionalização do mercado editorial local. Segundo Matos, apesar de não se poder deixar de elogiar as pequenas companhias por perseverarem nesta “atividade quase heroica” que é bancar livros em um Estado com tão poucos leitores, “publicar apenas autores patrocinados por editais ou apostar em um título ou outro de nomes consagrados é uma ‘estratégia’ insuficiente”. Faltaria nesta paisagem, portanto, arrojo. Ou um toque de ousadia, proposição no mínimo curiosa, para não dizer irônica, se pensarmos no estereótipo que a Bahia possui entranhada no imaginário nacional.

“Salvador está em um momento muito fértil, de uma literatura que sempre foi forte, vigorosa,

mas que, no que diz respeito à difusão e circulação da amplitude de seus autores, nunca foi suficientemente plural”

 Kátia Borges, criadora do sarau Prosa & Poesia.

PASTORES DA NOITE
Esse estereótipo de Bahia, aliás, é a regra de leitura para o roman à clef local. Porque é justamente a tal baianidade — criada, incrementada e exportada desde os tempos de colônia sob a égide de nomes graúdos como Jorge Amado, João Ubaldo Ribeiro, Castro Alves e Gregório de Mattos, em conjunto com a musicalidade de Caetano, Gil, Gal, Olodum e o compasso do Axé — o ponto de referência a partir do qual, em contraste ou por adesão, se constrói a Salvador retratada nas páginas soteropolitanas.

Durante décadas, o discurso cultural hegemônico se pautou pela “sombra do misticismo e da malandragem festiva”, como define Márcio Matos, em textos baseados na exaltação do exótico. Os últimos anos trouxeram, em contrapartida, seja pela urbanização, seja pelo esgotamento do modelo anterior, uma literatura mais aberta, citadina, pop, às vezes melancólica, calcada no asfalto ao redor da praia, em trabalhos de Victor Mascarenhas, Katherine Funke, Allex Leilla, Sandro Ornellas e João Filho, além das obras de Lima Trindade, Mayrant Gallo, Karina Rabinovitz e Adelice Souza, finalista do Jabuti 2013 na categoria Juvenil. Mesmo autores abertamente identificados com o cânone sofreram (obrigatórias) atualizações e é de se notar ainda a movimentação de uma literatura cujas bases remontam à cultura africana, discutindo e ultrapassando a questão racial sob perspectivas absolutamente contemporâneas, a partir de autores como Landê Onawalê, Rita Santana, Ângela Vilma, Mel Adún, Fábio Mandingo e Nelson Maca, um dos organizadores do Sarau Bem Black.

O principal dilema para todos eles, como em boa parte do país, continua sendo o escoamento da produção. As vias de saída, além de poucas, são acanhadas. Kátia Borges, cujo terceiro livro foi lançado por uma editora paulista, por exemplo, chega a considerar Salvador como “um nada no mapa da literatura contemporânea” ao falar sobre as dificuldades dos escritores em encontrar abrigo. Para se imaginar a dimensão do problema, aponta ela, basta pensar em como a produção editorial de relevância no Estado se resumiria a apenas três empresas — a P55, a Casarão do Verbo e a Solisluna —, e todas trabalhando sob orçamento reduzido, sem esquema de distribuição nacional. O espaço em imprensa, do mesmo modo exíguo, por sua vez, está à mercê de pequenos blogs e revistas eletrônicas de nicho. “Não temos um suplemento literário sequer em nenhum dos nossos principais jornais”, diz James Martins, para quem o lamento se estende ao nível do jornalismo cultural praticado: ao relatar a morte de Décio Pignatari, um dos jornalistas responsáveis pela cobertura chamou Augusto de Campos de Álvaro de Campos, mostrando também desconhecimento de Fernando Pessoa. Não obstante, para completar, a relação entre a literatura e os governos, um dia amena, agora anda passando por turbulências.

SUBTERRÂNEOS
“Há iniciativas do governo do estado e do município, pelos órgãos de fomento à cultura, para o estímulo à publicação, mas isso ainda alcança poucos autores”, analisa Lívia Natália. “Quando pensamos em iniciativas oficiais, a literatura é a mais preterida das artes, e, quando é colocada em um lugar mais central, a diversidade de suas vozes não é representada, a exemplo do que o Ministério da Cultura e a Secretaria da Cultura da Bahia fizeram ao selecionar os livros-autores que deveriam ir à feira de Frankfurt para o ano do Brasil na Alemanha”. O Ministério da Cultura, lembra a professora universitária, selecionou somente um negro entre os 70 autores escolhidos. A Secult, por sua vez, mesmo em um Estado de população majoritariamente negra, não selecionou nenhum.

Recentemente, um contingenciamento de verbas estaduais também gerou enorme repercussão na comunidade artística — editais foram suspensos ou adiados, pagamentos atrasados, pouco se sabe sobre os planos futuros. A contenção de gastos provocou inúmeros protestos, forçando o governo a recuar e anunciar novos investimentos no início de outubro. No imbróglio, o falecimento mais sentido foi, sem dúvida, o do Escritas em trânsito, série de oficinas gratuitas com escritores de todo o Brasil (Assis Brasil, Joca Reiners Terron, Noemi Jaffe, José Luiz Passos, Verônica Sttiger, apenas para citar alguns), iniciada em 2012. Mais que cursos de escrita criativa, a ação era um verdadeiro respiradouro e seu desfecho escancara uma das piores deficiências da literatura baiana, a falta de longevidade dos projetos.


Novos palcos literários

Seguindo um modelo já consolidado pela Festa Literária de Paraty, a Bahia ganhou uma série de eventos de Letras nos últimos anos, em geral organizadas em cidades do interior do estado, como as de Cachoeira (Flica) e de Jequié (Felisquié), além da Festa Literária de Salvador (Flissa), em busca de patrocínio para a sua estreia, prevista para março de 2014. A Flica – apoiada por gigantes como Petrobrás, Oi e Rede Bahia, braço da Globo no estado – realizou sua terceira edição no último mês de outubro, levando para o Recôncavo Baiano autores como Cristovão Tezza, Fabrício Carpinejar, Carola Saavedra, Laurentino Gomes, Sérgio Rodrigues, Letícia Wierzchowski e Pepetela. A Felisquié, no entanto, marcada de 26 a 29 de outubro, ainda buscava no início do mês apoio da prefeitura local para o pagamento de cachês aos autores convidados.