Lembranças de Helena Kolody

helena

O escritor Roberto Gomes, que editou diversos livros da poeta paranaense Helena Kolody, relembra como conheceu e iniciou sua parceria com a escritora que neste mês de outubro completaria 99 anos

Roberto Gomes


Conheci Helena Kolody no dia 22 de agosto de 1965. Sei disso com essa exatidão numérica pela data do autógrafo que minha prima Sônia Régis colocou no livro que estava lançando.

Poderia ser um dado inútil, mas acho que não é. Helena foi uma das primeiras a chegar ao lançamento e logo tomou conta da conversa, querendo saber disso e daquilo, rindo, contando mais um de seus causos curitibanos, e agindo com relação à Sônia como uma mãe protetora. Tempos depois fui descobrir que ela agia assim com vários poetas e jovens escritores. Adorava esse papel, que via como uma extensão de sua vida de poeta e professora. Ela mesma me contaria desses cuidados com amigos e amigas, sobretudo os jovens, que considerava como filhos. Os filhos que não teve. Ou: os inúmeros filhos que conquistou vida afora.

Não sei exatamente o que senti, mas aquela senhora de 53 anos me pareceu simpática e divertida. Seria uma poeta de verdade ou mais uma dessas criaturas que sonham ser o que não são? – me perguntei, não podendo evitar o olhar oblíquo que desenvolvemos ao viver em meio a escritores, poetas e livros.

Alguns anos depois eu já não teria dúvidas. Era uma poeta que não poderia ser ignorada. Li seus poemas nos anos seguintes, em livros de edições modestas que encontrei nos sebos. Ela me contaria depois que todos os seus livros haviam sido editados por ela mesma através de um método que cultivava com muito cuidado.

Separava uns trocados de seu salário de professora, colocava em envelopes e, quando os poemas estavam pedindo publicação, comprava o papel para a impressão e o levava à gráfica da Escola Técnica, dirigida por um velho amigo seu, cujo nome infelizmente não lembro. Ele fazia o orçamento, ela pechinchava um desconto. E o livro era feito.

Fora assim com todos os seus livros até então. Desde o primeiro, que publicou em 1941, Paisagem interior. Depois vieram Música submersa, de 1943, A sombra do rio, de 1951, e a Trilogia, de 1959. Em 1966 – e nessa data os críticos poderão descobrir uma virada em seus poemas – ela edita Era espacial e Trilha sonora, onde se defronta com as tecnologias da época. Com a mesma regularidade e com o mesmo método de edição, saem Tempo (1970), Correnteza (1977) e Infinito presente (1980).

Todas essas edições ela espalhou sobre a mesa de jantar de sua casa, onde conversamos numa tarde curitibana cheia de luz e sol. Ela estranhou dia tão luminoso – “não é normal em Curitiba”, disse-me – e ficamos folheando os livros um a um, sendo que em certos momentos ela declamava algum poema, não raro acrescentando que outros mereciam ser cortados. “A gente escreve demais quando é jovem – e acrescentou, tendo sido professora de biologia: hormônios.”

Editando Kolody


Minha visita era motivada pelo meu interesse em editar um livro de Helena. Estávamos em 1984, a Criar Edições iniciava e ia bem para a época, que era favorável. Mandei o convite através do poeta e amigo comum Hamilton Faria por duas razões: ele era amigo dela e eu era um tímido mórbido. Ela marcou o dia e a hora e lá estava eu diante das antigas edições enquanto Helena lia mais um de seus poemas repetindo que alguns deles não gostaria de ver numa reedição.

Ela cultivava uma autocrítica muito severa. Quando perguntei onde estavam os novos poemas que poderíamos publicar, ela fez de conta que se assustou, escandalizada, e declarou que já não escrevia mais nada e me serviu um cálice de licor. Ouvi mais alguns poemas, trocamos algumas fofocas enquanto bebíamos, e voltei à pergunta: e os novos poemas?

Ela foi a uma gaveta e de lá retirou um caderninho pequeno, desses que eram usados para anotações em armazéns que vendiam fiado. Antes de entregá-lo a mim, tentou me convencer de que não valeria a pena perder tempo com aquilo. Mesmo assim, me passou o caderninho.

Na primeira página, se não me engano, estava escrita a palavra “poesias” numa caligrafia miúda e justa, que denunciava as mãos e os cuidados de professora. Nas páginas seguintes, os poemas. Dali saiu o livro Sempre palavra, que a Criar Edições publicou em 1985.

Quando afinal chegamos a decidir pela publicação dos poemas que dormitavam há anos no caderninho de anotações, o Hamilton Faria veio me contar que Helena o procurara aflita, querendo saber quanto iria lhe custar a edição do livro. Hamilton explicou que ela não gastaria coisa alguma, a editora arcaria com todas as despesas e, sobre as vendas, ela receberia 10% de direitos autorais. Ela não acreditou. Não gastaria nada e ainda receberia sobre as vendas? Hamilton confirmou. Ela ficou maravilhada. Dias depois me telefonou e, como quem não quer nada, me perguntou pelos custos do livro. Repeti o que Hamilton havia lhe dito. Ela não acreditava. Seguia maravilhada.

Estávamos na metade da década de 1980 e Helena escrevia desde a década de 1940. Fiquei pensando nisso. Há quarenta anos ela escrevia e ninguém havia se interessado em editar seus livros. Pior ainda. Senti no ar alguma resistência de conhecidos ligados à literatura, tanto escritores, professores, como críticos literários. Para uns, Helena era apenas uma velhinha sonhadora e piegas. Uma dessas senhoras que fazem parte de academias de letras. A Criar iria perder dinheiro, advertiam. Por que não editar poetas mais jovens, gente de vanguarda, quem sabe um novo contista? Para dizer a verdade, lembro que, além de Hamilton Faria, só se entusiasmaram com a publicação anunciada o Paulo Leminski e a Alice Ruiz.

Paulo e Alice gostavam muito de Helena, sentimento que era recíproco. Ela me dizia, com ares de escândalo, “mas alguém precisa dar um jeito nesse Paulo, que descabeçado, que pena, com aquele talento!” Preocupações de mãe, é claro. Paulo foi o primeiro a escrever sobre a publicação de Sempre palavra. Um belo texto.

Eu continuava espantado com os quarenta anos em que ela mesma publicara seus livros em tiragens de cem ou duzentos exemplares, conforme lhe permitiam suas economias. Então, quando soltei o primeiro release a respeito do livro – conhecendo Curitiba ao vivo e em cores – lasquei a frase que a meu ver justificava a publicação, entre outros motivos: “Curitiba precisa amar alguém”.

Acho que acertei em cheio.

Poesia mínima foi o próximo lançamento, em 1986, e, em 1988, preparamos a edição trabalhosa do conjunto da obra de Helena no volume Viagem no espelho.

Foi, para o editor empolgado que eu era, uma verdadeira festa. De início, Helena não queria incluir livros antigos, que considerava superados – desejava eliminar todos. Depois aceitou que fosse feita uma escolha dos poemas que deveriam sobreviver. E me perguntava, com a ingenuidade de sempre: “Posso modificar?”

Acertamos o método que facilitaria o trabalho que tínhamos pela frente. Explico aos que só conhecem a edição em computador que a montagem era feita poema a poema, em tiras impressas em papel por uma máquina chamada IBMComposer. Tais tiras eram recortadas e coladas em pranchas – em alguns casos, para obedecer à disposição gráfica exigida pelo autor, verso a verso. Eu montava o livro aos poucos e levava o resultado a Helena. Ela fazia as mudanças, os cortes, as correções. Muitos versos e poemas foram condenados sem piedade e outros tantos foram burilados até chegar àquilo que Helena desejava. Achada a forma final, ela fazia a anotação na margem, em elegante letra de professora de magistério.

O livro foi editado assim. Da prancheta até Helena, de Helena para a prancheta. Ela retirou tudo que lhe parecia excessivo, eliminou poemas, cortou outros para um terço do tamanho, suprimiu palavras, desentortou versos. Isso demorou uns três meses e foi uma das experiências mais gratificantes que vivi nessa tarefa de editar.

“É preciso cuidado”, dizia ela, me devolvendo as correções. “Se a gente não se cuida, acaba escrevendo 'batatinha quando nasce...'”

Essa preocupação com a concisão, com a palavra justa, que naquele momento eu pude constatar na poeta, era coisa antiga. Já em seu primeiro livro, de 1941, Paisagem interior, constavam três haicais. É bom assinalar que raríssimos poetas brasileiros, naquele momento, escreviam haicais. Helena sabia disso e dizia que tal “ousadia” lhe custara muitas restrições e críticas na província curitibana. Diziam os críticos: eram poemas tão curtos, três versos! E por que versos tão secos? A poeta recebeu cartas de gente que na época fazia crítica literária pedindo que abandonasse aquele mau passo. Voltasse aos poemas longos e derramados.

Ela não cedeu. Seus poemas foram, com o tempo, se encaminhando para sínteses cada vez mais exatas e fulminantes. Voltou-se aos poucos, mas com firmeza, para uma crescente economia de recursos. Era o que buscava, como diria naquele poema no qual “o carbono acorda diamante”.

Os críticos de 1941 não entenderam o que estava para nascer. Ainda bem que ela não deu ouvidos a eles.

Origens

Havia uma grande força naquela mulher de belo rosto e de belíssimos olhos azuis. Ela nascera em Cruz Machado, no Sul do Paraná, no dia 12 de outubro de 1912. Filha primogênita de um casal de imigrantes ucranianos – Miguel e Vitória, cujos retratos severos ficavam nos observando de cima de uma cristaleira enquanto conversávamos ou revíamos as provas dos livros –, passou a infância em outra pequena cidade, Três Barras, em Santa Catarina. Percorreu com a família uma trajetória comum a muitos imigrantes e chegou à capital do Paraná em 1927. Em 1928, publicou o primeiro poema numa revista chamada O garoto. O poema chamava-se A lágrima. A precocidade do fazer poético era acompanhada e estimulada pelas leituras que sua mãe lhe fazia do poeta ucraniano Tarás Chautchenko e pela descoberta da leitura como um universo no qual mergulhava fascinada.

Em 1932 iniciou brilhante carreira no magistério. Formou gerações de professoras que exigiam, mesmo antes de aulas de biologia, que ela recitasse um poema. Não deve ser considerado acidental o fato de ter sido professora por mais de trinta e cinco anos. Traz desta experiência uma atitude de pedagoga, ou seja, de alguém visceralmente interessada no outro e em sua trajetória existencial, o que confere à sua poética um caráter de busca de sabedoria. Ademais, a paixão pelo ensino da biologia, além de render belas imagens em sua obra, conferiu a esta poeta, aparentemente mergulhada numa visão mística e etérea do mundo e da vida, um senso refinado de observação, uma abordagem quase microscópica da aventura humana. Além, quem sabe, de ter contribuído para a emergência de um senso de humor refinadíssimo e nem sempre ressaltado pelos seus estudiosos.

Entre 1932 e 1967, atua como professora e inspetora de ensino. Ao longo desse período, publica os nove títulos acima citados.

Nessa época, Helena Kolody já era lida e admirada por um círculo razoável de leitores, que cultuavam a poeta e a figura humana em que ela se tornara, misto de mãe e amiga, de poeta e professora. Conheci dois poetas que davam a todos a impressão de viver num estado permanente de poesia. Um deles foi Helena Kolody. Outro foi Mário Quintana. Davam a impressão de viver em outra dimensão, apenas se permitindo pequenos passeios pelo mundo onde nos encontramos.

No entanto, esse círculo de leitores era restrito à cidade de Curitiba. Após a publicação pela Criar Edições, vimos esse grupo aumentar – embora continue modesto, é claro. Além de Paulo Leminski e Alice Ruiz, que escreveram sobre Helena, vários críticos dedicaram atenção a sua obra após a edição de Viagem no espelho. E Helena contou, nos últimos anos de vida, com a amizade – que para ela era tudo – de jovens poetas que a entronizaram como uma espécie de símbolo. Multiplicaram-se cartazes e camisetas com sua imagem, com trechos de seus poemas. Por isso ela preservou o hábito antigo: presenteava a todos com seus livros. Ninguém saía de lá sem um livro e um autógrafo, mesmo filas de estudantes secundários tangidos por alguma professora. Essa a razão pela qual muitas vezes preferiu receber seus direitos autorais em livros. Queria presentear.

O pequeno apartamento na Voluntários da Pátria era um centro de encontros e de peregrinação. Hélio Leites, por exemplo, levava seu mini teatro para espetáculos na sala do apartamento. Normalistas e jovens senhoras pediam conselhos para seus casos de amor. Poetas recebiam conselhos e tinham seus originais lidos, relidos e anotados com a tal letra de professora. Helena servia licor ou refrigerante para todos, lia seus poemas com a voz já trêmula, divertia-se contando causos. Assim como certos judeus são os melhores contadores de anedotas sobre judeus, ela era a melhor contadora de causos sobre curitibanos. Se esses encontros tivessem sido gravados, muitas reputações provincianas seriam abaladas. Mas ela sabia a quem contar e quando contar tais causos. Evitava ferir pessoas, era sempre educada e gentil. Do signo de libra, notariam os astrólogos, conciliadora e diplomata.

Naquela madrugada de 2004, dia 15 de fevereiro, sonhei que entrava num auditório imenso. Não entendi o que se passava ali, até que vi Helena. Era uma homenagem a ela, que estava numa cadeira de rodas, à esquerda de um palco, o corpo coberto por um tecido azul claro. Quando lhe perguntei como se sentia, ela repetiu o que me dizia nos últimos tempos:

“Não estou doente, Roberto. Estou com 90 anos.”

Acordei preocupado. O primeiro telefonema do dia confirmou: Helena havia falecido.

Roberto Gomes
é escritor, autor, entre outras obras, do romance O conhecimento de Anatol Kraft, recentemente lançado pelas editoras Insight e Criar. Também é colunista do jornal Gazeta do Povo. Vive em Curitiba (PR).