Legado | Sérgio Sant’Anna

Antena da raça

Escritores de diversas gerações falam sobre a importância da obra de Sérgio Sant’Anna

Alvaro Costa e Silva


Uma reforma em casa obrigou o escritor Michel Laub a encaixotar os livros. Na hora de reorganizar a estante, bateu a vontade de reler alguns títulos. O melhor da experiência foi revelado num tuíte certeiro: “Voltei ao Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, do Sérgio Sant’Anna. Não lembrava como tudo já estava ali desde 1982: autoficção, fragmentação, metalinguagem, engajamento estético e político”. 

Por e-mail, sem a pressa e os caracteres contados da rede social, Laub elabora o pensamento: “Não sei se posso falar em pioneirismo, já que temas como o do papel do artista diante da realidade do seu tempo têm toda uma tradião na história do romance, e gêneros como o da autoficção já eram praticados (com esse nome específico) na França nos anos 1970. Mas o modo como Sérgio Sant’Anna mistura isso tudo na página (a combinação vinda de sintaxe, estrutura, visão de mundo) dá ao conjunto um frescor que soa inédito mesmo para um leitor de hoje. Como quase sempre em literatura, a noção de ‘originalidade’ está tão ou mais ligada a elementos de qualidade individual do texto do que a aspectos históricos do uso ou não de determinados recursos”.

Esse frescor diagnosticado por Michel Laub explica por que escritores nascidos na época em que SS começou a publicar sentem-se tão ligados à obra dele. A descoberta da conexão quase sempre envolve uma epifania de leitor. Ronaldo Bressane conta que leu “A aula”, do livro Breve história do espírito, por indicação de uma namorada: “Tem um cara que escreveu sobre o cigarro que você fuma”. 

De estalo, Bressane ficou mesmerizado: “A linguagem ao mesmo tempo coloquial e elegante, ligeira e sofisticada, precisa e inventiva, cheia de riscos e acenos tanto à autoficção quanto à metaficção, me pareceu ser a linguagem que o Machado de Assis teria se estivesse vivo. E hoje, depois de ter lido toda a sua obra, tenho total certeza de que o Serjão é o Machadão da nossa geração. Um escritor inquieto e interessado nas questões e nas escritas de seu tempo. É um cara que não se refugia nos louros da glória, antes prefere usá-los para temperar a sua feijoada transcendental”.

Joca Reiners Terron percorreu um bom circuito — Valêncio Xavier, José Agrippino de Paula, Campos de Carvalho, Hilda Hilst, Samuel Rawet — antes de chegar ao autor de A senhorita Simpson: “Em 2002 eu trabalhava na revista Coyote e diagramei o conto ‘Um erro de cálculo’. É engraçado, pois li o André Sant’Anna antes do pai dele. O conto, que depois integraria O voo da madrugada, me inquietou pelo uso que fazia da imagem, pelo erotismo deslocado, fetichista e com um clima ameaçador, de perigo, além da beleza da linguagem. O livro todo é espetacular, para mim o melhor do Sérgio. Nem podia sonhar que dividiria a mesa com ele na Feira de Frankfurt de 2013. Lá fiz questão de afirmar que ele é um dos melhores escritores em atividade do mundo. Por causa desse perigo que os contos dele emanam com frequência: é um escritor perigoso, abala certezas comportamentais, e com linguagem cristalina, à beira da poesia”. 

Carlos Henrique Schroeder concorda com Terron na preferência por O voo da madrugada, o qual relê de tempos em tempos: “O mundo só é verdadeiramente vivido quando pode ser narrado. Este bem podia ser o mote da obra de Sant’Anna, escritor que vem quebrando regras, ampliando contornos e questionando agudamente os limites das formas breves em busca de uma nova experiência na arte de narrar”, diz ele, destacando no conjunto de relatos a novela “O gorila”. “Embrenhar no mundo labiríntico e sombrio do escritor é como voar de madrugada num avião sem piloto, entregue à sorte e à morte”, conclui.

Foto: Daniel Ramalho
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Ieda Magri deixou-se fisgar pela novela “O monstro”: “Como ele podia narrar uma atrocidade de modo tão doce? Essa desconexão entre o mal e seu relato é algo que funcionou para mim como um curso de literatura. Nunca mais li do mesmo jeito. As personagens passaram a ter volume, profundidade, a se moverem nas histórias com propósitos nem sempre conhecidos delas mesmas, o que deixou a literatura que eu lia mais rica”, afirma a escritora, lembrando ainda o conto “As antenas da raça”, de O homem-mulher: “Tomar uma sopa de maneira tranquila se tornou impossível depois da experiência de ler esse relato impressionante”.

Autor da coletânea de contos “Cantos profanos”, Evando Nascimento conheceu SS em 2012 durante um debate reunindo finalistas do Prêmio Brasil Telecom (hoje Oceanos): “Ele disse que torceria pelo meu livro, pois eu era sangue novo e merecia a distinção. Lembro que durante minha formação universitária, no auge das teorias hoje defuntas do pós-moderno, ele era um dos autores mais lidos, sendo objeto de dissertações de mestrado e teses de doutorado. Mas, por uma razão que não consigo achar para essa grande falha cultural, li outros contistas e romancistas mais ou menos próximos de sua geração. Por causa do prêmio, O livro de Praga foi meu primeiro contato com sua ficção. Li também todos os livros que publicou em seguida, e fiquei absolutamente encantado com sua narrativa. Considero o ‘Conto zero’ uma obra-prima”.

Quando SS cursava direito em Belo Horizonte, envolveu-se com a turma de jovens escritores que alimentava o suplemento literário do jornal Minas Gerais: Luiz Vilela, Humberto Werneck, Sebastião Nunes, Duílio Gomes, Jaime Prado Gouvêa. Uma época, também, de intensa boemia: “Conheci o Sérgio em meados dos anos 1960, quando o Humberto, que era colega dele na faculdade, nos apresentou na piscina do Minas Tênis Clube”, conta Jaime Prado Gouvêa. “Depois passamos a nos encontrar na redação do Suplemento, mas só passei a conviver mais proximamente com ele no fim de 1971, quando voltei de uma temporada em São Paulo e ele de Iowa City, nos Estados Unidos. Uma tarde ele me disse que estava frequentando o bar Saloon, onde se encontrava com o compositor Fernando Brant, então repórter da revista O Cruzeiro. Lembro-me de encontrá-lo numa mesa do Saloon escrevendo num caderno anotações para o que viria a ser seu primeiro romance, Confissões de Ralfo. Foram mais de cinco anos regados a chope e música”.

Tricolor
E intermináveis discussões sobre futebol: “Éramos unidos pelo Fluminense, ele beirando o fanatismo, como demonstrou ao me contar sua volta do Maracanã quando, depois da conquista do Campeonato Carioca em 1971, 1 a 0 sobre o Botafogo, deu carona para o lateral Marco Antônio, e este lhe revelou que fizera mesmo falta no goleiro Ubirajara no lance do gol de Lula. Orgulhoso com a malandragem, ele ficou com a camisa do craque. Essa devoção futebolística nos levou, creio que no sábado de Carnaval de 1974, a ver o Fluminense derrotar o Cruzeiro por 2 a 1 no Mineirão, sendo nós quatro (eu, Fernando, Sérgio e André, o filho dele e hoje escritor, então com seus 10 anos) os únicos a assistir o jogo sob o sol forte de fevereiro, pois a torcida da casa ficava na arquibancada da sombra, do lado oposto ao nosso”, lembra Jaime.

Os sinais do amor ao tricolor estão espalhados pelo apartamento de Laranjeiras: o relógio com o escudo e a foto perfilada do time de 1932 (o goleiro era seu tio). Desde pequeno o escritor ficou íntimo dos estádios, não só o Maracanã, mas os de times como Bangu, Madureira, Bonsucesso. Até hoje acompanha pela TV todas as partidas do Fluminense: “Quando o time perde, fico três dias remoendo o resultado”, revela o autor de Páginas sem glória

“Ele foi um dos primeiros autores brasileiros a usar o futebol como matéria-prima temática na ficção. E o fez com brilhantismo em histórias como ‘Na boca do túnel’ e ‘No último minuto’. Não se trata de tentativas de mimetização do drama intrínseco à disputa dentro das quatro linhas, e sim de bem-urdida conexão entre o viés trágico do futebol e o jogo lúdico da trama ficcional”, aponta Marcelo Moutinho.

“Nesse conjunto de narrativas, incluo a novela ‘Páginas sem glória’. Ambientado no Rio dos anos 1950, o texto faz um recorte interessantíssimo da época, a partir das desventuras do protagonista Conde. A praia de Copacabana e o Jockey Club — Conde é apaixonado por corrida de cavalos — são cenários de uma história que, no fundo, faz o elogio da imperfeição. Como um pênalti que bate na trave”, define Moutinho.