Laura Santos e a arte do incontrolável desejo

Pouco conhecida entre os leitores paranaenses, a poeta negra Laura Santos escreveu uma obra enxuta, em que a temática erótica se sobrepõe a questões como negritude

 

Claudecir de O. Rocha

 

Conhecida por alguns poucos curitibanos, Laura Santos (1919- 1981) talvez tenha sido a única poetisa negra de Curitiba dos anos 1950. Dona de uma linguagem sensível, Laura, a “pérola negra”, como ficou conhecida, fez uma poesia com alta carga erótica, elucidando o corpo como objeto da sua própria linguagem.

Influenciada pela estética parnaso- simbolista, principalmente por Olavo Bilac, criou uma poética diferenciada e moderna, com traços biográficos, por meio dos quais elucidava a realização dos seus anseios, ao mesmo tempo em que expressava um desejo de transcendência.

Laura Santos nasceu em 1919 e estreou com um texto chamado “História da evolução da aviação”, em 1937 — premiado em concurso literário local. Diz a lenda que escreveu seu primeiro soneto aos 13 anos. Deixou três projetos de livros, todos finalizados em 1953: Sangue tropical (Prêmio Academia José de Alencar), Poemas da noite e Desejo.

Obras que seguem a mesma linha temática, mesma expressão, deixando a clara impressão de formar um livro só. Ela buscou expressar nesses poemas o próprio corpo, alternando entre versos livres e sonetos, influenciados por uma constante romântica que busca no simbolismo a transmigração da alma através do amor não correspondido.

Laura também foi uma das fundadoras da Academia José de Alencar, em Curitiba, e os seus textos foram publicados na Gazeta do Povo e no Diário da Tarde até a década de 1980. Esse material nunca foi reunido em livro.

Independente, idealista e com uma personalidade forte e à frente do seu tempo, fez magistério e deu aulas de português e matemática. Também cursou enfermagem, porque queria participar da 2° Guerra Mundial como enfermeira da Cruz Vermelha, sonho que não conseguiu realizar. Depois acabou trabalhando como educadora sanitária, cuja função era orientar a população sobre hábitos de higiene — exerceu este ofício até a aposentadoria. Morreu em 1981, totalmente ignorada pela imprensa local.
 

Obra misteriosa


Foi a sua mais conhecida amiga, a também poeta Helena Kolody, quem primeiro resgatou sua obra do esquecimento, em 1959, numa antologia conhecida como Um século de poesia, organizada pelo Centro Paranaense Feminino de Cultura. Em 1985, Pompilia Lopes dos Santos organizou uma nova antologia, chamada de Sesquicentenário da poesia paranaense, que trazia alguns poemas de Laura. Cinco anos depois, a Secretaria de Estado da Cultura do Paraná (Seec) publica Poemas, reunião dos 3 livros da autora.
 No prefácio dessa antologia, Rosse Marye Bernardi, então professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), diz que os poemas de Laura “desvendam, num tênue fio biográfico, os sofrimentos de um corpo e de uma alma exasperadamente feminina. É através do corpo que lhe chegam as sensações do mundo trazido como sentimento. É através do corpo que ela tenta se comunicar com o exterior, com o outro”.

Seus poemas estão cheios de imagens eróticas que “são uma espécie de metáfora da sua relação básica com o mundo, relação que se traduz enquanto impossibilidade de amar, de viver plenamente, de ser feliz”, que faz ela obcecada pelo “desejo de libertação”, como comentou Rosse Marye.

O desejo de libertação é construído por meio de uma poesia que não encontra solução para seu amor porque, consciente de que ele não se realizará novamente, só lhe resta pensar na transcendência que contrasta com sua poesia carnal, de lábios, de coxas, de seios e de pele. E, assim, Laura busca no desejo sexual encontrar a si mesma — afinal, sozinha, no entanto, sente-se fria, incompleta, fraca nesse mundo de sensações e de belezas.
 

Diálogos, estilo e temas


A influência de Olavo Bilac parece ser pertinente, principalmente em relação à carnalidade que ela dá ao amor e ao desejo. Mas a expressão parnasiana se mistura com o desejo simbolista de transcendência da alma, por uma busca pela natureza primordial do amor. Entretanto, Laura Santos não deu o mesmo tom vulgar e artificial do erotismo bilaquiano com sua pomposa máquina de fazer versos, assim como seus diletos, que pareciam buscar “um academicismo epigônico com muita frequência temperado de anedótico e pelo emocional fácil”, para agradar “lavadeiras e condessas”, suas “Frineias e Messalinas da Rua da Quintanda”, conforme comenta Alexei Bueno no seu livro Uma história da poesia brasileira.

Seus versos são límpidos, assonantes e aliterados, revelando um erotismo mais sensual e panteísta, retomando certo modernismo simbolista de Cecília Meireles, a religiosidade sensual de Vinicius e algo da poesia corporal de Drummond.

Laura vai se debruçar em temas comuns, pois a maioria dos seus poemas falam sobre a saudade, o amor, o desejo e a natureza como parte de si. O amor atravessa seus versos, resultado de uma paixão desenfreada por alguém que a fez conhecer o amor, o sexo e depois a abandonou, trocando-a por outras mulheres. Esse dilema conjugal vai ser o mote dos seus poemas, que vão se tornar uma espécie de confidente das suas ilusões amorosas, buscando através do desejo constante de reviver esse amor perdido, de reencontrar o Don Juan.
 

Descomplexada socialmente


Laura Santos deixou, para seus interlocutores, a impressão de ter sido uma mulher batalhadora, que nunca reclamou de discriminação, nem da sua situação econômica porque, de certo modo, não se conformou com o determinismo social e seguiu sua vida sem levantar bandeiras sociais, pois “não encontramos neles [nos seus versos] qualquer eco de negritude ou qualquer reivindicação feminista”, naquela Curitiba ainda provinciana dos anos 1950, diz Rosse Marye Bernardi.

Helena Kolody também comenta, em texto escrito, que “na obra de Laura Santos pode-se observar a inexistência de qualquer atitude complexada quanto à sua cor, porque sempre foi recebida em pé de igualdade por outros companheiros de arte e profissão”. Outro poeta que conheceu Laura, Tonicato Miranda, afirmou que ela era “sem complexos, inteligente, elemento positivo e querida nos ambientes onde convivia. Jamais queixara- se de discriminação ou de sua situação econômica difícil. Nunca se queixou das próprias dificuldades, que se presumia fossem muitas, dado que não conseguiu publicar sua obra em vida”.

Queria, antes, usar a poesia como instrumento de libertação e, diferentemente de poetisas como Gilka Machado, que usou erotismo para levantar a militância feminista, Laura Santos transformou suas perspectivas e desejos em poemas, nos quais não se restringiu em defesas ideológicas, mas que revelam a partir de uma linguagem simples e cotidiana o próprio corpo. Poemas que refletem suas angústias, seus medos, suas inquietações e a busca pela felicidade.
 

Distante do clichê provinciano


Ela também se afasta da qualidade estética de poetisas de cidadezinhas do interior. Mesmo assim, muitos dos seus versos são extremamente piegas, quase de uma ingenuidade adolescente, mas a sua linguagem clara e simples, seu erotismo latente e desejo de sublimação lhe dão outro tom. Um tom límpido, quase natural, uma espécie de dança poética, na qual as palavras, como gestos, tentam traduzir os desejos do corpo e da alma, dizer o inefável. Nos seus poemas, Laura Santos parece retomar muitas das características do romantismo, nos quais vigora um dualismo entre o amor e o pecado, o pudor e o desejo, a carne e o espírito e, usando da expressão erótica, objetiva seu desejo de transcendência através do amor.

Contemporaneamente, enquanto ainda vigora uma crítica sociológica e anacrônica, se orientando em classificar obras de arte conforme o interesse de um determinado grupo social, buscando enfatizar aspectos, mesmo que secundários, para reafirmar uma posição ideológica, e assim acentuar políticas raciais e feministas, Laura não parece se preocupar com isso, deixando de lado o engajamento ideológico. Daí seu afastamento de qualquer antologia de literatura negra, porque, segundo algumas classificações, para ser um poeta da literatura negra, não basta ser negro, tem que defender sua raça nos poemas, como se toda obra de arte tivesse uma obrigação social e histórica de servir para um determinado fim, como se as pessoas não sofressem os mesmos dilemas.
 
Reprodução
capa do livro Laura Santos

Nos anos 1980, a Secretaria de Estado da Cultura do
 Paraná reuniu a obra poética de Laura Santos no
 volume
Poemas.
Laura, assim como muitos poetas, estava mais preocupada com a própria expressão poética, com o desejo latente de fazer arte, do que apenas ser defensora de ideologias como querem alguns críticos de tendência marxista. Sua poesia é feita de atitudes, na qual transparece a força da expressão e não usa do artifício para revelar essa intenção sentimental, mas da sinceridade que o erotismo possibilita.

Paulo Henriques Britto, no ensaio É possível transgredir no momento poético atual?, fala sobre os poetas da “geração mimeógrafo”, dos anos 1970, que contrapunham às posturas construtivistas dos poetas concretos, porque estes “defendia[m] uma arte engajada na luta contra a opressão capitalista e julgava necessário sacrificar o presente individual em nome do futuro da humanidade”. Essa geração de poetas que se auto-nomeava marginal, reafirmou “valores como liberdade e subjetividade, contrapondo-se ao construtivismo e objetivismo dos concretos. Ao mesmo tempo, afirmando o “desbunde, celebrando os pequenos prazeres do cotidiano, eles rompiam frontalmente com a sisudez ideológica da poesia participante”.

É nesse contexto que se encaixa Laura Santos, que não é propriamente uma poetisa “marginal”, nem se utilizava do poema-piada, nem defendia a bandeira banal do anticapitalismo, mas que traz alguns desses valores para sua poesia: a subjetividade, a individualidade, a liberdade, os prazeres do cotidiano, etc. Ela resgata o soneto e opta também por versos livres numa linguagem clara e simples. Ou seja, fez o percurso realmente marginal de muitos escritores desconhecidos ou secundários ao que conhecemos como cânone literário, não se preocupando com o reconhecimento.
 

Só poesia


Laura Santos está no meio do furacão de ideologias da geração de 45, onde alguns buscavam um engajamento cristão, como Murilo Mendes, Tasso de Silveira ou Jorge de Lima. E outros, o engajamento político, como Drummond e Ferreira Gullar. O interessante é que Jorge de Lima só vai se libertar da moral cristã com o livro Invenção de Orfeu (1952), Vinicius de Moraes com o Livro de sonetos (1957). Já Drummond se liberta do panfletismo socialista com Sentimento do mundo (1951). Eles mesmos admitem que essas últimas obras são as mais maduras da suas carreiras, mas há uma crítica marxista que ainda persiste em canonizar as obras pelas defesas ideológicas que atravessam os seus discursos e não pela liberdade criativa que cada um acreditava.

Então, como julgar Laura Santos, já que não há categoria acadêmica que pode defini-la como poetisa negra feminista? Preferimos a defesa de que ela é principalmente uma poetisa, uma mulher que se expressa artisticamente, sem se prender aos ecos da negritude ou do feminismo, porque construiu uma poesia desvinculada de ideologias modistas, e que, se tem algum valor, é o da própria arte, é o do próprio desejo de se expressar através da sua visão de mundo. Não quero dizer com isso que a poesia de Laura Santos não apresente traços biográficos, femininos e sensíveis, nem que sua poesia não tem autoria, podendo ter sido escrita por qualquer outra poetisa, branca ou negra, carioca ou curitibana.

Prefiro dizer que sua poesia é interessante simplesmente pela própria composição e unidade, pelo aspecto estético dos seus versos. Ser negro ou não, no caso dessa poetisa, é elemento secundário, como o fato de ser curitibana, como querem alguns paranistas, principalmente porque, como vimos nas opiniões de Helena Kolody e de Tonicato Miranda, não havia nela nenhuma atitude complexada quanto à sua origem.

Toda a sua sensibilidade, todo o desejo de ser amada, transcritos nos seus versos, revelam apenas a vontade de ser mulher, sem medos ou receios de se expressar, de amar, de perder o controle por esse amor. E se ela merece um estudo mais profundo, uma reunião completa das suas produções poéticas dispersas nos jornais — é coisa a se pensar a fim de que se possibilite um julgamento mais justo da sua obra.


Claudecir de O. Rocha é editor e professor universitário. Mestre em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), atualmente é doutorado em Estudos Literários pela mesma instituição. Também é autor dos livros de poemas, Teatro dos mortos e Ensauro. Vive em Curitiba (PR).