Fotografias e Literatura
Literatura para ver
Obras que unem literatura e fotografia redefinem os limites entre imagem e palavra
Thaís Reis Oliveira
Em seu clássico Sobre fotografia (2004), a ensaísta Susan Sontag diz que o registro em imagens é a arte mais próxima da poesia, pois as duas oferecem uma visão renovada sobre a realidade. Essa ligação também está no cerne etimológico da palavra fotografia, que significa “escrever com a luz”.
Embora foto e texto pareçam formas opostas de expressão, as duas artes se relacionam desde o surgimento da fotografia, criando diálogos entre realidade e imaginação. “A fotografia hoje é muito popular, mas no século XIX, a literatura era mais. Um exemplo são os folhetins, que mais tarde, com a popularização da fotografia, foram substituídos pelas fotonovelas”, explica a curadora Rosely Nakagawa.
No Brasil, a união mais frutífera entre fotografia e literatura está na obra da fotógrafa Maureen Bisilliat. O trabalho da artista inglesa, radicada em São Paulo desde os anos 1960, traz para o plano das imagens sensações e cenários experimentados pelos leitores de obras literárias.
A relação entre Maureen e a literatura começou quando, recém-chegada ao Brasil, conheceu, por meio de um amigo, Grande sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “Fui instigada a verificar a conexão entre o mundo ‘real’ do escritor e o seu mundo criado, saindo pelas terras do sertão”, conta. Rapidamente, o contato entre a fotógrafa e o autor se tornou pessoal, “tratada com a delicadeza daquele que sabe, sem a necessidade de provar, pude desenvolver uma ideia de roteiro para minhas idas mineiras, cujos resultados eu logo levaria para avaliação de seu interesse e apreciação”. A recomposição da linguagem rosiana em fotografias deu origem ao livro A João Guimarães Rosa (1966).
A publicação marcou o início do projeto que Maureen chamou de “Equivalências Fotográficas”. A artista buscou nas obras de autores que, segundo ela, “revelam, em profundidade, facetas de uma realidade social e cultural deste país” a união entre a palavra e a imagem. Entre os livros lançados pela fotógrafa estão Sertão, luz e trevas (1983), inspirado no clássico de Euclides da Cunha, O cão sem plumas (1984), baseado no poema homônimo de João Cabral de Melo Neto sobre o Rio Capibaribe e Bahia amada, Amado (1996), com seleção de textos de Jorge Amado. O acervo da fotógrafa, com mais de 16 mil imagens, foi incorporado em 2003 à coleção do Instituto Moreira Salles.
O IMS é responsável também por outro importante trabalho que relaciona texto e imagem, os Cadernos de literatura brasileira, publicados desde 1996. Cada edição, dedicada a um grande autor brasileiro, traz um ensaio fotográfico, que se concentra em mapear a região geográfica que serviu de inspiração à criação literária do escritor.
Para Edu Simões, que assina os ensaios fotográficos dos Cadernos, se aprofundar na obra do autor é fundamental para desbravar a geografia pessoal dele. “Desde os primeiros ensaios, sempre procurei conhecer cada autor, ler seus livros, para então incorporar minha visão sobre a obra nos ensaios”, diz o fotógrafo, que registrou em imagens o universo de escritores como Raduan Nassar, Ariano Suassuna, Hilda Hilst e Clarice Lispector.
Olhar local
No Paraná, dois dos autores mais importantes do Estado estiveram envolvidos em projetos em que o texto dialoga com a imagem: Dalton Trevisan e Paulo Leminski.Logo após a lançamento da longa narrativa em prosa de Catatau (1975), Paulo Leminski uniu sua poética à busca do fotógrafo carioca Jack Pires por flagrantes do cotidiano da capital paranaense. O flerte entre os instantâneos de Pires e a poesia de Leminski deram origem a Quarenta clics em Curitiba. Já na introdução, o poeta observa: “Nenhum texto foi escrito para uma foto. Foi buscada a relação/contradição texto/ foto. Os poemas estavam prontos já”. O livro foi lançado em 1976 e reeditado nos anos 1990 pela Secretaria de Estado da Cultura (SEEC).
O fotógrafo curitibano Nego Miranda publicou em 2010 A eterna solidão do vampiro, baseado na obra de Dalton Trevisan. Após seis meses de tentativas, conseguiu a autorização do contista, conhecido por sua reclusão e aversão a fotografias. O livro revisita os lugares percorridos pelo autor e seus personagens na Curitiba sombria criada por ele em obras como O vampiro de Curitiba, A polaquinha e O maníaco do olho verde.
A cidade de São Paulo foi fonte de inspiração de Paranóia (1963), obra do escritor Roberto Piva e do artista plástico Wesley Duke Lee. A parceria fotógrafo-poeta se debruça sobre a capital paulista, no que o autor definiu como “uma visão alucinatória de São Paulo”.
O escritor-fotógrafo
Alguns autores foram além no diálogo com a imagem. O inglês Lewis Caroll é o exemplo mais célebre de escritor que enveredou pelos caminhos da fotografia. Em uma época em que fotografar significava passar horas em frente à câmera, o autor se especializou em retratos, sobretudo de crianças. Em sua coleção, há uma série de retratos da menina Alice Liddell, que o inspirou a escrever o clássico infantojuvenil Alice no país das maravilhas.Um dos romances-chave do surrealismo, Nadja (1928), de Andre Breton, é um bom exemplo de como o uso de imagens pode expandir as possibilidades da narrativa em texto. O livro, uma narrativa fantasiosa e intrincada que relata a busca do autor pela personagem-título, é repleto de fotografias, que criam uma sensação de realidade em meio à prosa delirante de Breton.
Embora seja mais conhecido pela literatura, Mário de Andrade também era um entusiasta da fotografia. O autor de Pauliceia desvairada (1922) usava os instantâneos como registro de suas viagens pelo Brasil, usando-os como instrumento de pesquisa antropológica. Em sua dissertação O fotógrafo Mário de Andrade (1993), o pesquisador Amarildo Carnicel ressalta a importância da fotografia na construção temática da obra do autor, que deixou um arquivo com cerca de 2.500 imagens: “Por trás desse olho ‘etnográfico’ está um intelectual consciente da realidade brasileira, um indivíduo simples que se emociona com o cotidiano do povo nordestino.”
Diálogos possíveis
“O curador tem o papel de instigar em torno do trabalho do artista todo o potencial que ele tem”, afirma Rosely Nakagawa, uma das maiores especialistas em fotografia de arte no Brasil. Essa busca pode culminar na aproximação entre o olhar autoral do fotógrafo e obras da literatura mundial, como comprova o trabalho da curadora. Em mais de 30 anos de carreira, Rosely foi responsável por possibilitar a interlocução entre foto e literatura em diversos livros e exposições.Foi o caso de Adriana Lafer Rosset, fotógrafa paulistana autora de Ao vento, uma série de fotografias inspiradas pelo poema “Vento”, de Manoel de Barros. “Ao conhecer este ensaio, imediatamente o relacionei com Manoel de Barros pela identificação de ambos com seus mundos conservados na poética da infância e da natureza”, conta Rosely. Outros fotógrafos tiveram suas obras conectadas ao mundo da literatura com o auxílio dela, como o cearense Tiago Santana, autor (em parceria com o jornalista Audálio Dantas) de O chão de Graciliano (2006), que registra a região de nascimento e criação literária do autor de São Bernardo.
As possibilidades no diálogo entre fotografia e literatura parecem longe de se esgotar. Maureen Bisilliat é categórica ao situar a importância do diálogo entre texto e imagem na atualidade, “seria talvez uma maneira de interessar uma geração visualmente alerta ao silêncio e concentração da palavra escrita”, diz.
Para Adriana Lafer Rosset, o instante da fotografia e a reflexão da literatura sempre se relacionam de forma complementar, trazendo múltiplas perspectivas da criatividade: “Em certos autores, as palavras tem tanta força de imagem que os lemos como se estivéssemos diante de verdadeiras fotografias. E o que é melhor, de infinitas possibilidades de imagens, uma vez que a imaginação é infinita”.