Ficção | Paloma Vidal e Elisa Pessoa

Dupla exposição

10 exercícios para


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Exercício 1: 

— Imita uma árvore que caiu com o vento.
— … 
— Imita um sapo que acabou de comer uma mosca. 
— … 
— Imita um cachorro que espera pelo dono do lado de fora de uma loja. 
— … 
— Imita uma mulher que acabou de saber da sua morte próxima. 
— Falta muito pra menina chegar?

Exercício 2: 

Duas mulheres dormem numa cama. Começa a se ouvir uma respiração ofegante e se vê um movimento ofegante sob o lençol. Uma delas se masturba. A outra dorme ainda. Mas logo acorda. Faz de conta que continua dormindo e escuta, em silêncio e sem olhar para ela, a outra. Até que tudo se aquieta.

Exercício 3: 

Não pense com sua cabeça. Pense como uma pessoa que quando um policial a detém e pede a ela os documentos do carro, e os leva com ele, e demora, não pensa, com raiva, no que está perdendo, no cinema ou em qualquer outra coisa, por culpa dessa gente que poderia ocupar melhor seus dias em vez de querer estragar os dos outros. Não pensa na outra cena possível. Não vê tudo sobreposto, como uma imagem em dupla exposição. Também não pensa nas consequências sombrias da ditadura militar. Ou na perversão do sistema. Em como se sentiriam essas pessoas se estivessem no lugar dos que elas reprimem. Também não sente pena dessas pessoas. Não pensa nas suas casas e em como ficam quando chove. Se ficam inundadas. Se suas coisas se molham. Se dormem numa cama úmida. Não pensa na outra cena. Nem passa pela sua cabeça. Fica ali, imersa nessa cena, vê a chuva que cai, mas não a deixa triste, não a faz pensar em outra coisa, não lhe parece um sinal, apenas lhe dá vontade de cantar, e canta uma canção e depois outra, e outra, sem pensar em nada.

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Exercício 4: 

Uma das mulheres compra uma peruca loura. Inventa para a vendedora que é atriz. As perucas são mais caras que ela esperava, nessa loja, e a vendedora explica que são de cabelo natural. Acha esquisito, mas compra assim mesmo. Abre uma conta de e-mail como Gertrude Brown. Gosta de como soa e não há nenhuma conta de gmail com esse nome. Espera o momento de mandar um e-mail com o novo nome. O momento virá quando for capaz de escrever como se fosse outra.

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Exercício 5: 

Se tivesse uma menina compraria para ela uma fantasia de princesa? Se tivesse uma menina diria a ela que ela é uma menina? Se tivesse uma menina ficaria com pena? Se tivesse uma menina ficaria com medo? Se tivesse uma menina pensaria mais na morte? Se tivesse uma menina sentiria que ela é como um duplo de si mesma? Se tivesse uma menina e se essa menina tivesse outra menina seriam três gerações de mulheres? Se tivesse uma menina diria a ela que todos os homens são iguais? Se tivesse uma menina diria a ela que a entende? Se tivesse uma menina seria cruel? Se tivesse uma menina seria muito mais feliz? Se tivesse uma menina daria a ela um nome que é um anagrama do seu nome? Se tivesse uma menina seria uma mulher completa?

Exercício 6: 

Quando ela nasceu, fui feliz. Ela era muito mais bonita do que eu tinha imaginado. Bom, na verdade ela era inimaginável para mim. Mas eu não achava que seria bonita, porque nunca acho os bebês bonitos. Mas ela era bonita. Não tinha os olhos inchados, a pele vermelha e o rosto enrugado dos outros bebês. Fazia calor demais e não importava. Passava as noites insones e não importava. Minha mãe falava sem parar, como sempre, e já não importava. Então, de repente, sem que eu pudesse reagir, meu corpo decidiu que essa felicidade não me pertencia. Que eu tinha que voltar a ser eu, e eu era doente. Eu tinha uma doença difícil de diagnosticar, inexata para os médicos, mas não para mim. Quando uma manhã não consegui pôr os pés no chão, soube que tinha voltado a ser eu. Ela não tinha me transformado. Eu não era feliz.

Exercício 7: 

“Romeo Clarke, um adorável pequeno britânico, não poderá voltar ao seu programa de atividades extraescolares, a menos que esqueça a ideia de usar vestidinhos, porque ‘confunde as outras crianças’. Na localidade inglesa de Rugby (isso, ali nasceu esse esporte), mora Romeo Clarke, um simpático menino de cinco aninhos que é notícia por ter sido proibido de frequentar a escola. A irmandade cristã de Rugby dirige o programa de atividades extraescolares do Buzz Children’s Club, e não quer que Romeo volte ali, porque ele gosta de ir vestido de princesa. Assim contava sua mãe, Georgina Clarke, a quem disseram: ‘Romeo será bem-vindo de novo quando usar roupas adequadas ao seu gênero’. Alguma outra mãe ou criança se queixou? O curioso é que em absoluto: nenhum outro progenitor ou colega de Romeo pôs impedimento algum ao uso dos vestidos rosa que esse menino tanto adora, mas o chefão do clube infantil diz que ‘confunde as outras crianças’.” 

Exercício 8: 

— “Cada uno da lo que recibe, y luego recibe lo que da, nada es más simple, no hay otra norma: nada se pierde, todo se transforma.” 
— Não acredito que você está citando Jorge Drexler! 
— Antes você gostava. 
— Continuo gostando, mas mesmo assim. 
— Você lembra como a gente dançava. Era divertido. 
— Será que dá? 
— Sei lá. 
— Quando a menina chegar, a gente experimenta. 
— Falta muito pra ela chegar?

Exercício 9: 

Uma delas diz: “Não preciso de um homem.” A outra se pergunta se isso se refere ao que ela acha que se refere. Porque se for isso ela acha que a outra tem razão. Mas o que ela quer saber, e não sabe, é se são uma família. O que ela quer saber, e não sabe, é o que é uma família. Numa etimologia selvagem, e própria, para ela a palavra tem a ver com fome e mulher: faim e femme. Por essa etimologia própria elas seriam a família mais autêntica, pelo que têm e pelo que não têm. Ainda que talvez tudo seja apenas uma ficção deslocada. 

Exercício 10: 

A menina chega.


Paloma Vidal nasceu em Buenos Aires, Argentina, em 1975, e vive no Brasil desde os dois anos de idade. É autora dos livros de contosA duas mãos (2003) e Mais ao sul (2008), traduzido para o espanhol, e do romance Algum lugar (2009). Além de ficcionista, é crítica, tradutora e professora de teoria literária na Universidade Federal de São Paulo. O material publicado pelo Cândido faz parte do livro Dupla exposição, que além dos textos de Vidal, inclui fotos de Elisa Pessoa. A obra será lançada neste mês pela editora Rocco. 

Elisa Pessoa nasceu e vive no Rio de Janeiro. Estudou ciências da educação e artes plásticas na Universidade de Paris 8. Em 1997, iniciou seu trabalho com fotografia e Super8. Realizou exposições em galerias no Brasil e no exterior, como A Gentil Carioca, no Rio de Janeiro, e a Pablo’s Birthday Gallery, em Nova York.