Estante | Guerra conjugal

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Senhora, de José de Alencar 

O professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Leandro Pasini afirma que Senhora (1875), de José de Alencar, é uma das obras da literatura brasileira em que o casamento teve uma representação incomum. “A função moralizadora e socialmente redentora do casamento atinge um ápice. Aí, o casamento corrige os comportamentos não normativos das personagens principais e os conforma à correlação entre posição social e comportamento moral”, diz Pasini. Aurélia Camargo apaixona-se por Fernando Seixas, mas ele não quer se casar com ela, que é pobre, e sim com uma mulher rica. Tempos depois, Aurélia recebe uma herança e negocia o seu casamento com Seixas. O acordo estabelece que o noivo não saberá quem é a noiva até a véspera da cerimônia. Aurélia e Fernando acabam se entendendo e relevam tudo o que passou. João Luiz Lafetá escreveu que as imagens de Senhora, metáforas do luxo e do desejo, recobrem o som degradante do dinheiro que vai ao mercado e tudo compra: “longe de qualquer realismo, a narrativa projeta o sonho de uma outra sociedade, utopia mítica ‘iluminada por uma aurora de amor’”.

São Bernardo, de Graciliano Ramos

Publicado em São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, é um romance em que o casamento constitui, na definição do professor da Unifesp Leandro Pasini, uma relação problemática entre Paulo Honório e Madalena. De acordo com a professora da Uerj Giovanna Dealtry, a união deles se dá por interesses ou necessidades mútuas. “Ele interessado em ter um herdeiro, ela, professora pobre, acreditando ser possível aprender a amar um homem. O casamento aqui é sinônimo de posse do homem sobre a mulher”, explica Giovanna. O desfecho da obra é o suicídio de Madalena. Paulo Honório não se consola com a perda e com o seu destino de negociante e dono de fazenda: “Os sentimentos e os propósitos esbarram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins. E a desconfiança terrível que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também consequência da profissão. Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens.”

Dom Casmurro, de Machado de Assis 

São muitas as questões que este romance, publicado em 1899, apresenta, entre elas um olhar sobre o casamento do ponto de vista de um narrador já com alguma experiência de vida, chamado de casmurro, mas que não gosta da alcunha. Quem narra é Bentinho, Bento Santiago, e ele vai atar as duas pontas da vida, que poderia ter sido bem mais feliz. Bentinho gostava de Capitu, mas foi para o seminário. No entanto, não se ordenou padre. Enquanto seminarista, conheceu Ezequiel de Souza Escobar, que tinha parentes em Curitiba e que se torna o seu melhor amigo. Uma das questões do livro é o ciúme que Bentinho sente de sua esposa Capitu — ele tem a impressão de que ela o traía com Escobar. Até o filho, Ezequiel, Bentinho achava parecido com o amigo — ele ficará cada vez mais convencido de que Ezequiel é filho do outro. Então, Escobar morre afogado no mar e, no velório, Bentinho analisa que a sua esposa manifestava sentimento demais para quem não compartilhava intimidade com o falecido: “Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vagado mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã.”

Um copo de cólera, de Raduan Nassar 

Escrita na década de 1970 e publicada em 1978, esta ficção já é um clássico da literatura brasileira. A narrativa apresenta um casal, a respeito de quem o leitor não tem informações precisas. Podem ser casados, mas eles também podem ser apenas amantes. A partir de um acontecimento aparentemente banal, os dois começam a discutir. A briga ocupa parte significativa do texto literário, de alta qualidade, como se lê em um trecho aleatório: “sem contar que ela, de olho no sangue do termômetro, se metera a regular também o mercúrio da racionalidade, sem suspeitar que minha razão naquele momento trabalhava a todo vapor, suspeitando menos ainda que a razão jamais é fria e sem paixão.” O livro é elogiado pela crítica, tem traduções para outros idiomas, entre os quais inglês e espanhol, e conquistou o prêmio de ficção da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA). Em 1999, Aluizio Abranches lança uma adaptação cinematográfica homônima do texto de Nassar, com Alexandre Borges e Júlia Lemmertz, entre outros, no elenco.

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Operação impensável, de Vanessa Barbara 

Vencedor do Prêmio Paraná de Literatura em 2014 na categoria romance, Operação impensável é uma ficção a respeito de um relacionamento que desanda. Lia e Tito são um casal nerd. Eles têm repertório cultural, conhecem cinema, por exemplo — e tais referências, pelo menos durante um período, os isolam do resto do mundo. Lia e Tito são incrivelmente infantilizados (durante o enredo, eles não transam). Em determinado momento, eles se desentendem e, então, há um conflito — o título da obra, inclusive, é emprestado de uma operação militar e foi utilizado pela autora para retratar, e definir, uma relação amorosa que vai se transformar em guerra conjugal. Em entrevista ao jornal Cândido, Vanessa falou sobre a obra: “Esse livro é como uma pessoa magra demais tentando caminhar no meio de uma tempestade de vento — a Lia é uma heroína forte que a todo tempo parece prestes a se esfarelar. Mas não esfarela. Pelo contrário, sai da narrativa milhões de vezes mais forte do que entrou.” Em 2015, o romance foi reeditado pela Intrínseca.

Madrugada de farpas, de Paulo Venturelli 

Curitiba é o cenário do romance Madrugada de farpas (2015), de Paulo Venturelli. Inclusive, locais da capital paranaense, como o Shopping Curitiba e o Museu Oscar Niemeyer, servem de ambientação para a narrativa em que dois jovens, de pouco mais de vinte anos, querem se amar. Israel é filho de uma família de italianos, o pai administra uma cantina no bairro Santa Felicidade. Já Obadiah é um negro que migrou de um outro estado para cursar Letras em Curitiba. Os dois se conhecem na reitoria da Universidade Federal do Paraná e, após um início difícil, se envolvem. A narração mostra a intimidade do casal a céu aberto, em meio à natureza, da mesma maneira que há descrição do interior de quartos de hotéis e boates que eles frequentam. Mais do que tudo, Madrugada de farpas proporciona reflexões a respeito da várias formas de amar possíveis (a partir da angústia dos personagens) e de que como ainda hoje, no século XXI, há preconceito e intolerância em relação ao fato de um homem amar outro homem — o casamento tradicional é questionado durante quase toda a longa narrativa.