Especial | Romance de 1930

"Nenhuma literatura está isenta de regionalismos"

João Claudio Arendt tem uma bandeira. No entendimento dele, “o regionalismo não pode continuar sendo uma categoria a rotular todas as obras de ambiência rural”. O professor da Universidade de Caxias do Sul estuda o assunto e, nesta entrevista exclusiva para o Cândido, ele observa, entre outras questões, que “o urbano, assim, não é puramente urbano, nem o rural é totalmente rural.”

Marcio Renato dos Santos

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O romance brasileiro da década de 1930 é sinônimo de literatura regionalista?

Antes de tudo, penso que é necessário revisar a categoria “regionalismo”, que há muito vem sendo usada para rotular todas as obras de ambiência rural. Na minha opinião, ela está superada, porque não dá mais conta de explicar os diferentes pontos de vista dos autores em relação ao mundo representado. Alguns historiadores e críticos literários inventaram sub-categorizações de regionalismo, como Alfredo Bosi, por exemplo, que menciona o regionalismo tenso e crítico, o regionalismo crônica ou reportagem, o regionalismo menor, amante do típico e do exótico, o regionalismo moderno e complexo, o regionalismo de opção crítica e de engajamento, o regionalismo de esconjuro do pitoresco e do exotismo de epiderme, etc. Creio que essa sub-categorização de Bosi atua não só como forma de inclusão e exclusão de autores do sistema literário nacional, mas também de diferenciação entre obras supostamente boas e ruins. Por ser valorativa, ela ignora os diferentes tipos de relações de regionalidade dos textos, abrigando tudo aleatoriamente sob o vago título de “regionalismo”. E o romance de 1930 foi e continua sendo rotulado, à revelia, como “regionalista”. Melhor dizendo: “regional mas universal”.

O que é regionalismo?

O regionalismo existe como discurso e prática em campos às vezes muito díspares, como o político-administrativo, o econômico, o midiático, o artístico, o científico, o turístico etc. Ele não é privilégio de escritores, editores e críticos literários interessados em superestimar e superfaturar o poeta local em relação a outras regiões ou à própria nação. Enquanto fenômeno próprio das sociedades modernas, o regionalismo é utilizado por grupos ou movimentos especializados para impor territorial e geograficamente os seus interesses de natureza econômica, política ou cultural. O regionalismo parece estar em contínua tensão com elementos espaciais e temporais, no seu propósito de elaborar representações de si e dos outros, afirmar certas particularidades, delimitar um território e definir relações com o meio ambiente.

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Pode citar obras que são classificadas de regionalistas?

É possível arriscar uma rápida exemplificação: O sertanejo, de José de Alencar, e São Bernardo, de Graciliano Ramos, não deveriam ser abrigados sob a expressão “regionalismo”, só porque ambos os romances estão ambientados em espaços rurais. Enquanto o primeiro idealiza o tipo de organização social do interior cearense oitocentista, o último questiona os mecanismos de poder do patriarcado rural alagoense do primeiro quartel do século XX. O posicionamento dos autores diante da matéria representada, nesse sentido, é diametralmente divergente e inconciliável, parecendo incoerente denominá-los “regionalistas” e diferenciá-los apenas com o recurso da adjetivação (regionalismo pitoresco ou romântico e regionalismo crítico ou neo-realista, respectivamente), ou alçar a obra de um deles a uma dimensão supostamente “universal”, para negar-lhe o parentesco com a literatura regionalista. Em outros termos, nem tudo é regionalismo.

Como surgiu o seu interesse pelo regionalismo?

Em um país como o Brasil, com uma dimensão territorial que quase corresponde à do continente europeu (são mais 8 milhões de km² divididos em 26 estados, contra 10 milhões de km² distribuídos em 46 países independentes, incluindo outros 10 territórios), é inconcebível o fato de pesquisadores e historiadores da literatura não identificarem e enfocarem com maior precisão os sistemas literários que se desenvolvem nos inúmeros âmbitos regionais do país. Da mesma forma, também me pareceu impossível aceitar que, à revelia da pluralidade cultural do Brasil (historicamente desenvolvida), ainda se considerem as manifestações literárias de Norte a Sul como uma unidade aparentemente homogênea, todas elas convergindo para um (epi)centro geográfico e sócio-cultural.

A obra de Simões Lopes Neto é regionalista?

Sem entrar a fundo no mérito das soluções artísticas, gostaria de evocar que a literatura sul-riograndense vem, historicamente, sendo apodada de regionalista. Nela se instalou, desde a sua formação no século XIX, uma tendência à exaltação do “gaúcho”, um tipo social surgido no extremo-sul do continente americano durante a conquista e instauração do território brasileiro. Por longo tempo, à revelia de toda e qualquer corrente imigratória que aí tenha aportado, prevaleceu a representação desse gaúcho como síntese histórica, étnica e cultural para o Rio Grande do Sul. Mesmo com a emergência de tendências literárias posteriores, mais abertas à diversidade cultural, essa corrente continuou subsumindo os valores ideais para os habitantes do Rio Grande do Sul sob o epíteto do gauchismo, e acabou sendo absorvida pelo Movimento Tradicionalista, que possui Carta de Princípios e se desdobra em Centros de Tradições Gaúchas (CTGs). Entre os seus objetivos consta, por exemplo, o de “criar barreiras aos fatores e ideias alienígenas que nos vêm pelos veículos normais de propaganda e que sejam diametralmente opostos ou antagônicos aos costumes e pendores naturais do nosso povo”. Além disso, com o que o Movimento chama de “força intrínseca”, são proibidos nos CTGs os bailes de carnaval e as visitas do papai-noel, bem como a participação de homossexuais no Tradicionalismo.

O legado do Erico Verissimo é regionalista?

Por figurar no chamado romance de 1930, Erico obviamente recebeu o epíteto de representante gaúcho do regionalismo modernista — ou, nos termos de Walnice Nogueira Galvão, o de “um importante regionalista”. E a solução para esse rótulo, muitas vezes constrangedor, como aconteceu com os demais romancistas de 1930, ancora-se na seguinte equação: “É regional mas universal”.

Atualmente, faz sentido, é coerente, definir, classificar uma obra como regionalista?

Claro que sim. Mas essa definição e/ou classificação deve, em vez de tomar apenas a ambientação rural como pressuposto, passar pelo seguinte raciocínio: a literatura que se assume regionalista costuma qualificar uma região através da representação positiva das suas regionalidades (ou seja, das suas especificidades/particularidades culturais). Ela se alia ao regionalismo, com intenções programáticas de: preservar ou revalidar uma linguagem e um conjunto de hábitos em vias de extinção; tentar impedir o avanço da mecanização e da indústria sobre as formas tradicionais de produção; construir mitos de origem e exaltar os fundadores da região; defender os valores naturais em oposição aos artificiais; lutar contra as forças alienígenas que potencialmente ameaçam a região, etc.

Os contos de fronteira do Sergio Faraco são regionalistas?

Se a gente entende como regionalista uma obra em que tão somente se percebem uma linguagem regional, um tipo humano regional e uma paisagem rural-regional, então Sergio Faraco é regionalista. Todavia, se a gente toma como regionalista uma obra em que, além da linguagem, do tipo humano e da paisagem regional, o autor se articula a uma estética romântica apoiada na cor local, tende ao exibicionismo colorista e pitoresco, adota o gesto desdenhoso e excludente do alheio/estranho, assume um tom nostálgico, pratica o culto ao passado e a gerontofilia, padece de neofobia, entende a região como válvula protetora, acentua o espírito de campanário cultural e entende as influências externas como nocivas, então Sergio Faraco não é regionalista.

O que não é, em hipótese nenhuma, regionalista?

Tendo em vista que na pergunta subjaz algo que diz respeito ao urbano, vou dimensionar a resposta da seguinte maneira: os adjetivos “regional” e “regionalista” são usualmente associados às literaturas de ambiência estritamente rural, em função de a região ser tomada aprioristicamente como um espaço interiorano e rural, afastado das capitais e das metrópoles. E dessa concepção equivocada deduzem-se pelo menos dois aspectos: 1) que as cidades não se inserem nas regiões, ou, em outro sentido, compõem “centros” em torno dos quais as regiões gravitam; 2) que, em decorrência disso, os temas urbanos não fazem parte das regiões, levando a crer que as particularidades citadinas existem ex situ (fora do lugar).

Então há uma confusão entre urbano e rural...

Como contrapartida a essa forma de dispor espacialmente a literatura, deve-se dizer que os espaços urbanos, embora tradicionalmente caracterizados pela diversidade, pelo universalismo e pelo cosmopolitismo, não possuem existência independente das regiões. Não são ilhas auto-suficientes, em conexão apenas com outras ilhas urbanas e “não-regionais”. O seu universo cultural, ao mesmo tempo em que transborda as fronteiras imaginárias e age sobre o entorno rural, também recebe o impacto dos valores que pretende negar ou sobrepujar. As fronteiras, portanto, são antes espaços de comunicação, troca e intercâmbio, do que de segregação, autonomia e isolamento. Em razão disso, nenhuma literatura “urbana” está isenta de regionalidades ou de regionalismos, já que os espaços geográficos compõem-se pela sobreposição de fenômenos culturais diversos, resultando em “condensações espaciais”. O urbano, assim, não é puramente urbano, nem o rural é totalmente rural. Existem particularidades que diferenciam cidade e campo, mas ambos os espaços não são impermeáveis ao que se afigura como valor supostamente alienígena. Se as regiões existem como fenômenos empíricos, discursivos ou simbólicos capazes de organizar espacialmente a vida social, isso significa que delas também fazem parte as cidades – as quais, por sua vez, contribuem para a diversidade das paisagens culturais regionais e podem ser, igualmente, inseridas em programas regionalistas. Deve-se lembrar que os adjetivos “regional” e “regionalista”, quando juntados ao substantivo “literatura”, são capazes de lhe atribuir noções de espaço, de origem, de matéria, de valor, de tempo e de etnicidade. O termo “regional” indica que alguma coisa — a literatura — pertence ou é própria de uma região, ao passo que a palavra “regionalista” sugere que a “literatura regional” inscreve- -se numa tendência que considera e favorece os interesses de uma região.

Deve-se evitar usar regionalismo para se referir a obras apresentadas em ambientes rurais?

O “regionalismo” não pode continuar sendo uma categoria a rotular todas as obras de ambiência rural, mas, sim, apenas aquelas em que as particularidades culturais regionais sejam intencionalmente postas em evidência, exaltadas em relação a outras. Em razão disso, a categoria “literatura regional” surge como alternativa viável para englobar não só o regionalismo literário, como também as outras obras ambientadas ou produzidas na região. E, avançando ainda mais, acredito na escrita de histórias literárias regionais (não necessariamente estaduais), a partir da reconstituição do conjunto de fatores responsáveis pela vida literária em uma região, tais como: as vias e meios de difusão pela imprensa (jornais, revistas, calendários, almanaques); editoras, livrarias e bibliotecas para pesquisa e empréstimo; grêmios literários, clubes culturais, grupos de leitura, salões e performances de poesia; centros culturais dentro e fora da região; escolas e universidades como instituições de formação dos autores e seu público, bem como locais de pesquisa científica e espiritual; atuação da crítica literária; política cultural pública regional e local; recepção da literatura em outras regiões; presença de literatura estrangeira no original ou em tradução; tradução para outras línguas que possibilitem a recepção fora da região; situação da linguagem escrita e uso de recursos dialetais; processos de troca entre os dialetos e línguas vizinhas; situações de bilinguismo e multilinguismo; circunstâncias étnicas, histórico-povoacionais, geográfico-culturais, sócio-culturais e histórico-mentais. Sinceramente, estou farto de teses e dissertações preocupadas em comprovar a universalidade de textos regionais/regionalistas (como se isso fosse necessário!). Especialmente, quando os estudiosos não explicitam o que entendem por “universal” e tomam-no como bitola para julgar o regional como bom ou ruim. É hora de renovar a discussão.