Especial | Percurso recriado pela palavra escrita

Inicialmente apenas representados em obras de prosa e de poesia, os afro-brasileiros passaram a escrever, a publicar e se afirmam, cada vez mais, na literatura brasileira e no imaginário cultural do país


Marcio Renato dos Santos

Morena Madureira

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O mineiro Ricardo Aleixo não se considera um poeta negro. “Esse rótulo é limitante. Sou, mais do que tudo, um poeta”, diz.


Impossível como nunca ter tido um rosto, o próximo, e o nono, livro de Ricardo Aleixo, reúne poemas escritos entre 2012 e 2015, entre os quais, “Na noite calunga do bairro Cabula”. O texto poético surgiu após o poeta mineiro receber a notícia do assassinato de 13 jovens negros na periferia de Salvador, na noite de 6 de fevereiro deste ano. O poema começa assim: “Morri quantas vezes na noite mais longa?/ Na noite imóvel, a mais longa e espessa, morri quantas vezes na noite calunga?/ A noite não passa e eu dentro dela morrendo de novo sem nome e de novo morrendo a cada outro rombo aberto na musculatura do que um dia eu fui./ Morri quantas vezes na noite mais rubra?” 

Apesar das origens, de todo um percurso artístico que inclui críticas ao racismo e diálogo com o legado cultural africano, Aleixo, 55 anos, não se considera um poeta negro. “Esse rótulo é limitante e eu quero expandir ao máximo a minha atuação, quero a liberdade. Sou, mais do que tudo, um poeta”, diz o artista mineiro, comentando que, ao assumir a postura, amigos, colegas e militantes de movimentos negros romperam relações com ele. 

Aleixo, que nasceu e vive em Belo Horizonte, participa de eventos culturais no Brasil em outros países. Já esteve em território alemão, em Berlim e em Frankfurt, na Espanha e no México. Em geral, é convidado para realizar performances. Ele se autodenomina um performador e explica o motivo: “Meus textos poético são vocalizados em voz alta. Há casos em que a musicalidade é tanta que agencio o corpo, o gesto e a dança e, então, estou diante de algo que requer, mais do que uma leitura, uma performance.” 

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O gaúcho Ronald Augusto lembra que alguns autores negros, como Machado de Assis e Cruz e Souza, se afirmaram como artistas apesar do preconceito e de outras barreiras sociais.

Dialogando com os dadaístas e com os concretistas, produziu os primeiros poemas autorais aos 17 anos e comenta que nem nos delírios juvenis cogitou que teria o atual reconhecimento: “O meu círculo de atuação é restrito, mas tenho alguma visibilidade.” Prefere, porém, não expor as dificuldades que enfrenta desde o início do seu percurso artístico. “Era ingênuo, por exemplo, em relação ao racismo. Se alguém dissesse que eu não poderia fazer poemas, eu daria risada. Afinal, tinha tudo em casa: papel, caneta, máquina de escrever, memória, corpo e voz”, comenta, completando, sem entrar em detalhes, que “nem tudo é tranquilo.”

Um espelho do mundo

O meio literário é — em certa medida — a representação, embora com suas singularidades, das imposturas e imposições raciais e econômicas da sociedade. A afirmação é de Ronald Augusto, autor entre outros, dos livros Cair de costas (2012), Empresto do visitante (2013) e Nem raro nem claro (2015). “Minha experiência como poeta e escritor negro em Porto Alegre me ensinou a reconhecer a existência de um desconforto mútuo, isto é, às vezes represento o outro, o estranho e, de outra parte, os demais escritores, que deveriam ser aquilo que chamamos ‘os [meus] iguais’, formam um grupo com o qual não alcanço ou nem quero alcançar a menor identificação”, diz. 

Felizmente, acrescenta Augusto, a literatura brasileira tem uma série de artistas que, para ele, servem de paradigma tanto porque afrontaram, quanto porque se afirmaram apesar desse estado de coisas: Machado de Assis, Cruz de Sousa e Oliveira Silveira — ambos negros. “Alguém argumentará que eles são exceções que confirmam a regra, mas, lembrando Jean-Luc Godard, digo que o cânone, o convencional, é a regra, e a arte é exceção — mesmo”, argumenta o poeta gaúcho. 

Esse fosso, literal e real, que separa autores brancos e negros, mencionado por Ronald Augusto, tem comprovação científica. A professora da Universidade de Brasília (UnB) Regina Dalcastagnè coordena o Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea que, numa pesquisa envolvendo 700 romances brasileiros, apontou que 96% dos autores são brancos — foram consultadas longas narrativas ficcionais publicadas em 3 períodos, de 1965 até 1979, entre 1990 e 2004 e, finalmente, de 2005 a 2014. 

“Talvez, no caso da criação artística, fosse diferente, mas a literatura espelha o preconceito social e torna a questão ainda mais visível”, observa Regina. E, ela acrescenta, uma vez que os escritores, em geral, escrevem a respeito daquilo que conhecem, “o fato de haver poucos autores negros publicando romance — o gênero com mais prestígio no país — se reflete em poucos personagens negros na ficção brasileira”. 

Entre os 4% de autores negros apontados pela pesquisa da UnB, há pelo menos duas vozes literárias com ressonância. Uma delas é a da mineira Conceição Evaristo, autora, entre outros títulos, de dois romances a respeito da identidade negra, Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006). 

O outro destaque é o carioca Paulo Lins, autor de Cidade de Deus (1997), romance sobre as transformações de um conjunto habitacional do Rio de Janeiro, e em alguma medida do próprio Brasil, sobretudo pelo impacto do narcotráfico. Adaptado para o cinema em 2003 por Fernando Meirelles — o longa-metragem homônimo conquistou prêmios em diversos países e foi indicado ao Oscar em quatro categorias. Em 2012, Lins lançou o seu segundo romance, Desde que o samba é samba [Leia mais sobre no autor no BOX].

No gueto e fora dele

Desde 2006, o curitibano Celio Jamaica, 38 anos, escreve poemas, crônicas e contos, como ele mesmo diz, levando em consideração temas universais. “Posto logo existo”, conto publicado na antologia Flupp Brasil: novos autores (2014), é um exemplo: o texto de ficção dialoga com a realidade contemporânea, num contexto em que as redes sociais são onipresentes: “Hoje pela manhã fui conferir a minha pontuação no Lulu. Fiquei preocupado, pois não havia nenhum comentário e a frase matinal que havia postado no Facebook tinha recebido apenas três curtidas.” 

Anteriormente, Jamaica era mais engajado na causa negra. Não que tenha deixado de problematizar, por meio da palavra falada e escrita, questões relacionadas, por exemplo, à violência e racismo. “É que os textos universais podem atingir mais pessoas e são uma ‘porta de entrada’ para, em um segundo momento, eu falar de temas como direitos humanos”, afirma.

Kristiane Foltran
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O curitibano Celio Jamaica se vale de textos mais universais para, em um segundo momento, discutir questões urgentes para ele, como direitos humanos.

Jamaica participa de saraus realizados em bairros da periferia de Curitiba e em cidades da Região Metropolitana, inclusive em ocupações. Nesses encontros, ele diz que dezenas de jovens negros declamam textos e, na maior parte do caso, a temática — da chamada literatura hiphopiana — é quase a mesma: famílias desestruturadas, falta de educação, comida e oportunidade, entre outros problemas. 

Já o paulistano Allan da Rosa, 39 anos, acredita que dialogar apenas com a “militância” pode ser uma ação de pouco impacto e ressonância limitada. “Além disso, a literatura tem de ser imprevisível e deve ir além do discurso, do questionamento de valores e, por exemplo, da exigência de cotas. Gosto da beleza e da plástica do texto”, comenta o autor, entre outros, dos livros Vão (2005), Morada (2007) e Da cabula (2008). 

Entre 2005 e 2009, Rosa esteve à frente da Edições Toró, selo independente que viabilizou obras para 20 escritores e poetas, sobretudo, das periferias paulistanas. Ele chama atenção para o fato de que, cada vez mais, autoras e autores negros escrevem e publicam prosa e poesia no Brasil. “Acontece que o sistema cultural é excludente e apenas alguns autores são badalados. E tem mais: não basta publicar. O livro precisa entrar em circulação, ser lido, discutido e o sujeito tem de participar do circuito literário, muitas vezes conquistar prêmios, para ser reconhecido como escritor”, completa.

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Luiz Gama é considerado o primeiro autor brasileiro a dar voz ao personagem negro que assumirá, no poema, a primeira pessoa do discurso.

Eu enunciador 

O negro está recriado em prosa e poesia desde o início da literatura brasileira, por exemplo, nos poemas de Gregório de Matos Guerra e, posteriormente, nas obras dos autores do Romantismo e do Realismo. “Mas os negros aparecem quase que confundidos com os móveis e demais objetos da casa, pois, em geral, não têm voz na trama romanesca. Ocupam o lugar do subalterno, do escravo doméstico que convive no âmbito familiar para servir a seus senhores”, explica a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Zilá Bernd. 

Autora, entre outros, de O que é negritude? (1988), Zilá lembra que Castro Alves (1847-1871) é conhecido como o poeta abolicionista, apesar de que, em seus poemas, o negro ainda é retratado em terceira pessoa, ou seja, é aquele a respeito de quem se fala. A estudiosa cita outro autor, Luiz Gama (1830-1882), filho de escrava e pai branco, como o primeiro a dar voz ao personagem negro que assumirá, no poema, a primeira pessoa do discurso — assumindo a sua condição de negro. “Hoje reconhecemos sua força poética e o fato de ter sido uma espécie de precursor da negritude, deixando emergir em seus poemas o ‘eu que se quer negro’ e isso em pleno período escravocrata, portanto, anterior a Castro Alves”, afirma. 

Zilá inciou o curso doutorado na Universidade de São Paulo (USP) na década de 1980. O objetivo de sua tese, defendida em 1987, era comparar a produção literária afro-brasileira com a poesia da negritude do caribe de língua francesa: “Meu ponto de partida foi uma dúvida. Se a música brasileira conta com a contribuição decisiva de compositores e letristas negros, por que essa contribuição [dos afro-brasileiros] é, aparentemente, pouco expressiva na literatura?”. 

Em seguida, analisou as obras teóricas e críticas existentes e diz ter encontrado, em sua maioria, o esquema binário que falava em produção literária de autores brancos e de autores negros. “Como acho os binarismos redutores e li praticamente toda a produção poética de 1960 até aquele momento [década de 1980], verifiquei que muitas vezes quando não havia uma foto do autor na capa eu não conseguia identificar se era obra de brancos ou de negros. Além disso, autores aparentemente brancos se identificavam como negros e vice-versa”, conta. 

A especialista diz ter construído o conceito do “eu enunciador”: “Seria a emergência no texto ou poema de um eu enunciador que assume a identidade, a memória e os valores a comunidade afro, o diferencial que passaria a adotar para classificar como literatura afro-brasileira ou não.”

No entendimento de Zilá Bernd, o critério epidérmico, ou da cor da pele, leva a equívocos porque um autor negro não precisa necessariamente falar de negritude, enquanto um autor branco pode ter uma memória associada à cultura afro: “O critério textual, da recuperação de uma memória individual ou coletiva associada ao passado é mais rico, possibilitando descobertas ligadas a temas de uma comunidade que está reescrevendo o seu percurso por meio dos rastros memoriais. A literatura, talvez mais do que a História, pode reabilitar os apagamentos dessa história pontuada por sofrimentos e sacrifícios.”




“Em evento literário não há negros”

“Os negros não conseguem visibilidade no Brasil”, afirma Paulo Lins. Dezoito anos após o lançamento do romance Cidade de Deus (1997), o carioca nascido no bairro Estácio de Sá vive em São Paulo e, apesar de ter conquistado uma situação financeira mais confortável, ainda identifica uma mesma realidade social: “Em evento literário, congressos médicos ou encontros de dentistas não há negros. Você só encontra negro nas camadas mais baixas da sociedade.”

Ele é convidado para bate-papos e mesas em encontros ligados ao universo dos livros, acompanha a produção dos escritores contemporâneos, entre os quais destaca Ferréz, Ana Paula Maia, Milton Hatoum e Daniel Munduruku. “A literatura brasileira vai bem, obrigado.” No entanto, elogia — mais do que qualquer outra obra contemporânea — o romance Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. “É uma obra-prima, um livro tão bom e complexo quanto Grande sertão: veredas, do Guimarães Rosa.”

Colaborador de roteiro da novela I love Paraisópolis, da TV Globo, Lins diz estar, já faz alguns anos, “muito” interessado em audiovisual — escreveu roteiro para televisão e para cinema, entre os quais Quase dois irmãos (2004), filme de Lúcia Murat — prêmio de melhor roteiro da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), em 2005.

 

Três mestres

A convite do Cândido , a professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Zilá Bernd comenta, brevemente, o legado de 3 autores negros, Cruz e Souza (1861-1898), Lima Barreto (1881- 1922) e Machado de Assis (1839-1908)
 
Cruz e Sousa foi equivocadamente lido, inclusive pela comunidade negra, como um autor deslumbrado com a cor branca. É que se só se liam seus poemas simbolistas, deixando-se de lado poemas em prosa como o “Emparedado”, texto profundamente empenhado na denúncia do racismo. Em relação a Lima Barreto, quanto mais se lê a sua obra mais se percebe sua necessidade de denunciar o cinismo do preconceito no Brasil que aceita o negro “desde que ele fique no seu lugar”. Isso é lindamente tematizado por ele no romance Recordações do escrivão Isaías Caminha. Quanto a Machado de Assis, é preciso captar o simbolismo de sua crítica à hierarquização das classes sociais e a tendência a deixar os escravos e seus descendentes na periferia do sistema. Ao ler atentamente seus contos e crônicas encontramos exemplos eloquentes de sua crítica mordaz ao preconceito e ao apagamento da comunidade negra na sociedade brasileira.