Especial | Nicolau - A era Nicolau

A era Nicolau

Publicado pela Secretaria de Estado da Cultura ao longo de dez anos, Nicolau alcançou tiragem imensa, manteve um grupo diversificado de colaboradores e apostou em um jornalismo pautado pela reportagem e espaço generoso à poesia


Ben-Hur Demeneck


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Nicolau veiculou algumas das melhores páginas do jornalismo cultural produzido a partir de julho de 1987. Mescla do paiol do Estado com a dinamite da cultura, terminou em 1996 sob a comoção de intelectuais de todo o país.

O tabloide foi editado fora do eixo Rio-São Paulo em anos de inflação galopante, de promulgação da Constituição e antes do computador substituir a máquina de escrever. A edição fac-similar que a Secretaria de Estado da Cultura coloca em circulação este ano, embora venha a prejudicar seu status de lenda de fim-de-século, irá dar aos leitores acesso a um jornalismo feito como artesanato.

Marcado pela qualidade editorial, sua projeção foi alavancada pela tiragem e pela distribuição gratuita. Com mais de 76 mil exemplares em circulação, ainda hoje superaria a soma da tiragem média dos dois principais jornais do Paraná (IVC 2013). Na sexta edição, fez circular 162.500 exemplares. Durante sua trajetória, Nicolau foi encartado em mais de 25 veículos de imprensa e chegou a ter mais de 20 mil assinantes.

Fresta no guarda-sol

“A curiosidade intelectual, o assombro diante da arte e de seu poder transformador, a faísca dos atritos entre o arcaico e o moderno, entre o centro e o excêntrico, o olhar sobre a diversidade de culturas e ideias”, essas foram as motivações da redação de Nicolau, conforme enumera Josely Vianna Baptista. Ela foi editora-assistente nos 26 primeiros números. Autora de livros como Roça barroca, Josely se tornou uma poeta e tradutora de prestígio após a experiência no Nicolau. Em 1999, ganhou o prêmio Jabuti de tradução.

O impresso abriu espaços para a poesia experimental, para traduções criativas das mais diversas línguas, para textos sobre culturas ameríndias ancestrais e passou a um ter um foco especial na literatura hispano-americana. Talvez tenha sido o veículo que mais prestigiou a cultura paraguaia em terras verde-amarelas. Tudo “graças a uma fresta que abrimos no guarda-sol da cultura oficial (por vezes oficialesca e repleta de patrulhamentos)”, argumenta Josely.

Depois de viajar 600 km até Aluminosa, à beira do rio Paranapanema, a jornalista Adélia Lopes se convenceu de que “Curitiba pouco sabe do Paraná”. Ela expressa essa percepção na segunda edição do Nicolau, em texto sobre a localidade pouco conhecida e o escultor popular José de Freitas Miranda. Com esse mesmo interesse pela descoberta, a repórter escreveria sobre temas como os quilombolas dos Campos Gerais, a comunidade chinesa em Curitiba e as mulheres do Contestado.

Adélia Lopes editava o suplemento “Almanaque”, em O Estado do Paraná, e era assessora de comunicação da Cultura quando se envolveu na fundação do Nicolau. Foi uma das responsáveis para que a Secretaria deixasse o boletim Raiz para criar uma publicação autoral, marcada também pelo signo da reportagem. Para Adélia, o êxito do impresso passa por ele ter incorporado o clima do jornalismo dos anos 1980 — “quando o país acordava da ditadura” — e por ele conseguir refletir “tempos em que se ia para a rua e para o bar para falar de poesia”.

Artesanato Visual

A redação ficava separada da sala de arte-final, mas o movimento de colaboradores do Nicolau pelo prédio da Secretaria não era indiferente à então estagiária Rita de Cássia Solieri Brandt Braga, hoje chefe da Coordenação de Design Gráfico da Secretaria de Estado da Cultura. Ela se recorda de artistas como Denise Roman e Paulo Leminski se deslocarem até o imóvel da rua Ébano Pereira para levarem trabalhos para serem editados.

Na recepção, o movimento dos correios era diário após julho de 1987. O fluxo postal era suficiente para completar pelo menos uma página do jornal com as mensagens recebidas. Numa mesma edição dividiam espaço comentários vindos de Londres, Buenos Aires, Rio de Janeiro, Araraquara, Guaratuba e Presidente Castelo Branco (PR). Misturados aos anônimos, Rubem Fonseca e Lygia Fagundes Telles também se manifestavam como leitores.

Enquanto se desmontavam pacotes e envelopes para a redação, no setor gráfico Rita Brandt preparava as então 28 páginas do tabloide. Elas ficavam abertas, duas a duas, em papel quadriculado. A arte-finalista fazia as linhas de corte com caneta nanquim, usando algodão e álcool sobre a superfície para evitar borrões.

Ninguém imagina o esforço que era colar um acento agudo, após os revisores pedirem. O processo de fotocomposição exigia o recorte em estilete de colunas, títulos, imagens e fotos a partir de um pequeno rolo de filmes. Cada fragmento era colado separadamente. Em compensação, o trabalho era premiado pelo primeiro contato com trabalhos de artistas plásticos como Elifas Andreato e Poty Lazzarotto.

O projeto gráfico de Nicolau é de Luiz Antonio Guinski. Segundo Rita, além de idealizar a parte visual, ele participava das reuniões de pauta e selecionava ilustradores e fotógrafos. Depois, em folhas com os textos consolidados pelos redatores, fazia anotações, definindo modelo e tamanho das fontes, o espaçamento e a aplicação de efeitos.

Luiz Antonio Guinski foi procurado pela reportagem, mas não quis dar entrevista. Numa comparação com a música, seu projeto gráfico trouxe a consistência harmônica da publicação. Encadeando grafismos, recursos tipográficos e padronagens em branco e preto, deu uma unidade tonal para conteúdos tão diversificados. Nelson Bond e Joba Tridente também trabalhariam como designers, em edições futuras.

Catatau autoral

O conjunto das 60 edições de Nicolau é vigoroso pela regularidade de determinados autores e pela combinação de gêneros. No entanto, não é raro que uma edição, tomada individualmente, impressione pela constelação de participantes — Haroldo de Campos, João Cabral de Melo Neto, José Paulo Paes, Milton Hatoum, Sérgio Sant'Anna, Manoel de Barros, Arnaldo Antunes, Dalton Trevisan e Rubem Braga.

Em sua primeira edição, ele já demonstra seu conjunto de vozes. Na capa, há desenho de Rogério Dias. Na contracapa, conto de Domingos Pellegrini. No miolo, Leminski tratando de antologias de poesia em Curitiba, o humor do Solda, o jornalismo de Joel Silveira, o ensaísmo de Rosely Vianna e as literaturas de Jamil Snege, Valêncio Xavier e Manoel Carlos Karam. No contrapeso, havia notas de viagem, ensaio fotográfico, artigos e reportagens.
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Entre os autores mais regulares, estava João Antonio. Ora escrevia sobre a censura ao jornal Movimento, ora anotações sobre Marcos Rey, ora críticas a Martin Heidegger. Assunto não lhe faltava. Paulo Leminski publicou ensaios, poesias, tradução de Finnegans Wake, e até se envolveu em polêmica no quarto número — “Disparates do Duarte”. Antes de morrer, havia deixado dentro de seu Catatau folhas datilografadas que redigia para um número de Nicolau.

Quem abrir as páginas do jornal aleatoriamente encontrará nomes de diferentes vertentes: Sérgio Rubens Sossélla, Alice Ruiz, Sylvio Back, Ademir Assunção, Marcos Losnak, Bráulio Tavares, João Silvério Trevisan, Alberto Puppi, Caio Fernando Abreu, Thadeu Wojciechowski, Roberto Prado.

E entre contos e poesias, também havia espaço para trechos de romance. Na leitura de um crédito, o leitor pode se deparar com a apresentação de um autor promissor: “Rosa Amanda Strausz, 29 (...) vai lançar seu primeiro livro pela editora José Olympio (...) [faz aqui um] pré-lançamento nacional”. O livro em questão ganharia o Jabuti na categoria contos, em 1991.

Cosmópolis

Nicolau foi uma publicação em que o texto era tratado com nobreza”, enfatiza Toninho Vaz, autor de A biografia de Torquato Neto e “ex-correspondente” do Nicolau nos Estados Unidos. Além do cuidado linguístico, ele gostava da abertura criativa das pautas. Fato que o motivava a operar em caráter experimental.

Certa vez Toninho desafiou o fotógrafo Paulo Filgueiras a fazer um “retrato Express” de Manhattan, com 36 fotos em 36 minutos, na média de uma “chapa” por minuto. Virou ensaio no Nicolau. Performance mais radical resultaria de sua decisão de ir a New Orleans para encontrar o metro quadrado onde nasceu o Blues. Depois de muito pé na rua sob os vapores de “jambalaya”, delimitou no chão um “local exato”. E a matéria logo se converteu numa cerimônia creole.

O cosmopolitismo do Nicolau atraiu também a participação de estrangeiros como a fotógrafa inglesa Sue Cunningham. Também deixou colaboradores à vontade para fazer entrevistas exclusivas com tipos como Nam June Paik, Bill Sienkiewicz, William Burroughs e Murray Schafer. E com — por que não incluir nesse rol? — Paulo Francis, César Lattes e Luiz Carlos Prestes.
A falta de fronteiras podia ser sentida em traduções bilíngues, ainda que fosse de emigrados para o Brasil como Nempuku Sato. E mesmo nas decifrações do código guarani feitas por Luli Miranda. A diversidade de opiniões estava desde a seção “Mosaico”, onde circulavam comentários das mais diversas figuras — de poetas a políticos. Em uma delas, lemos o jornalista Jaques Brand defender o deslocamento da capital paranaense para a região de Manoel Ribas e Cândido de Abreu.

Se a telenovela “Vale Tudo” havia lançado na multidão o “quem matou Odete Roitmann?”, Rodrigo Garcia Lopes devolveria o bordão com a reportagem “Quem matou Miguel Bakun?”. Nesse texto questionou por que esse pintor de Curitiba cometera suicídio. Afinal, a vida não tem replay.

As três sílabas

“O Nicolau é o último bastião romântico do jornalismo brasileiro” — era o que José Fernando Karl ouvia do editor Wilson Bueno (morto em 2010). Eles repetiam esse dístico entre si com frequência. Não é à toa que, o alvo da equipe era cumprir “uma pauta impossível”, hiperboliza.

Fernando Karl foi redator e editor-assistente da edição 36 a 55. Fase em que acompanhou “concursos”, como o que revelou Ricardo Corona, e em que ajudou a publicar material inédito como trechos do livro inacabado de Pedro Nava. Fernando se emociona em saber do lançamento dos fac-símiles de um periódico que “era totalmente artesanal”.

A história de sucesso (e embates) do Nicolau começou durante a gestão de René Dotti, no governo de Alvaro Dias. No seu primeiro ano, já foi considerado o melhor veículo de divulgação cultural de 1987 pela Associação Paulista dos Críticos de Arte (APCA). Alçado a estrela dos governos, chegou até o mandato de Jaime Lerner e atravessou o de Roberto Requião.

Basicamente, o Nicolau teve três momentos. O primeiro se deu do número 1 ao 26 (agosto de 1989). Período de criação e de estabelecimento de uma identidade, no qual se completaram dois anos corridos de periodicidade mensal. A imposição de um conselho editorial foi o ponto de partida para uma crise que terminou com a demissão em massa da redação. Apenas o editor Wilson Bueno permaneceu do núcleo original. Durante essa segunda fase, que vai da edição 27 à 55 (Set/Out 1994), o jornal apresentou algumas falhas na periodicidade, mas se estabeleceu como bimestral.

Em 1995, diferenças entre a direção do jornal e o então secretário de Cultura culminam em outra debandada da redação. Para Eduardo Virmond, o jornal deveria ser como a “New York Book Review”. Sob a edição de Regina Benitez circulariam mais cinco números, o primeiro deles foi comemorativo aos “50 anos da Vitória das Forças Aliadas”.

Fac-similar

A edição fac-similar, apesar da redução do tamanho em relação aos originais, não traz prejuízos para a leitura. Cada exemplar mede 23 x 29, ou seja, é cerca de três centímetros maior na altura e na largura que uma edição das revistas semanais de circulação nacional. As 60 edições de Nicolau serão agrupadas em três caixas, com design de Osvalter Urbinati.

Em 2009, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo lançou livro reapresentando ao público “O Homem do Povo”, o semanário de Oswald de Andrade e Pagu. Em 2001, a Imprensa Oficial do Paraná havia feito o mesmo com a revista Joaquim sob a direção de Miguel Sanches Neto. Segundo o escritor, “a reedição de publicações simbólicas servem para dimensionar a sua relevância ao permitir uma visão de conjunto”.

Os fac-símiles, ao replicarem a experiência editorial, tendem a estimular produções acadêmicas e novas publicações culturais. Para o Secretário de Estado da Cultura Paulino Viapiana, “o Nicolau foi o mais importante veículo cultural do Paraná”. Paulino foi o responsável pelo projeto, que levou dois anos para ser concluído e terá tiragem inicial de 2.000 exemplares com distribuição concentrada para todas as bibliotecas do Estado e instituições nacionais.

Nicolau ganha agora status de livro de 1.828 páginas. A sua consulta promete uma imersão numa interessante experiência regional de jornalismo cultural. Por trás desse nome típico de colônia, revela-se uma produção intelectual e artística de primeiro nível distribuída em larga escala e gratuitamente sob os brados de uma nova Constituição e o frenesi de etiquetadoras do comércio. Cabe ao leitor retirar a dinamite de dentro do paiol, em caso de querer retirar as rochas que atravancam seu caminho.



Ben-Hur Demeneck
é jornalista e doutorando em Ciências da Comunicação (ECA-USP). Foi editor do jornal cultural Grimpa e é autor do livro PG de A a Z e outras crônicas.