Especial | Nicolau - Com quantos paus se faz um Nicolau

Com quantos paus se fazia um Nicolau

O poeta Rodrigo Garcia Lopes relembra os princípais momentos do período em que trabalhou no jornal e do convívio com Wilson Bueno e outros colegas de redação

 

RedaçãoNicolau


Em 1988 eu estava em meu segundo emprego como jornalista, na “Ilustrada”, da Folha de S. Paulo, quando fui convidado a ingressar na equipe do Nicolau (1987—1996), o que aconteceu no começo do ano seguinte. Eu colaborava com o tabloide mensal desde seu início, e a sugestão do meu nome ao editor Wilson Bueno (1949—2010) foi da poeta e tradutora Josely Vianna Baptista, editora-assistente e recém-amiga. Várias coisas influenciaram na minha decisão de topar a aventura: primeiro, meu estágio na Folha havia chegado ao fim e eu estava novamente sem emprego. Segundo, havia a chance de poder participar de um projeto incrível e apaixonante de jornalismo cultural com o qual eu me identificava e, terceiro, a proximidade de interlocução com figuras do calibre de Jaques Brand, Josely, Bueno, Alice Ruiz, Guinski e, sobretudo, Paulo Leminski, que acabara de voltar a Curitiba, vindo de São Paulo.

Eu não era contratado, nem era funcionário da Secretaria de Cultura. Trabalhava como free-lancer. O “salário” era mais um pró-labore, por isso minha grana era bem curta. Lembro-me de ter sobrevivido alguns dias do inverno de 1989 a base de pinhões. Nada mais curitibano, pensava. Às vezes, em meu caminho pela Saldanha Marinho, sacrificava a grana do ônibus e de um lanche por uma parada no bar Kapelle ou por uns solos insinuantes de jazz no Saul Trumpet. Depois, voltava a pé pro Bigorrilho, onde morava no apartamento de um amigo, o Gabriel Lessa. Foi um ano que pareceu interminável, intenso e cheio de descobertas.

Quando entrei para o jornal, o poeta e jornalista Jaques Brand já saíra da equipe, o editor era Bueno, a Josely, a editora-assistente, o Luiz Antonio Guinski, o designer e produtor gráfico. A equipe contava ainda com a Rita de Cássia Soliéri Brand e Lilian na parte gráfica, Iara Rossini e Hamilton (revisores). Incrível mesmo era o que conseguíamos fazer com uma equipe tão pequena. O ambiente era ótimo e agradável, de grande liberdade. Todo dia tinha alguma novidade. Nosso “bunker” ficava nos fundos da Secretaria de Cultura. Nicolau era frequentemente visitado. Apareciam na redação figuras como Sylvio Back, Valêncio Xavier, Manoel Carlos Karam, Alice Ruiz, Jamil Snege, Leminski. A grande estrela, até por uma questão de temperamento, era o Bueno. As pautas eram discutidas coletivamente. Posso dizer que, de certa forma, todos editavam o jornal, cada um acionava seus contatos. Era tudo muito democrático. O Bueno andava com problemas pessoais e era comum que se ausentasse por longos períodos, e muitas vezes o jornal acabava sendo fechado pelo Guinski, Josely e eu. Às vezes fechávamos o jornal inteiro e o Bueno mandava apenas o editorial. Já em outros números, sua participação era mais ativa. Discutíamos a estrutura principal da pauta do Nicolau, que tinha várias seções fixas como “Mosaico”, “Tradução”, “Depoimentos”, “Triz” (poesia brasileira contemporânea), “Fotografia”, “Ensaio”, “Dossiê”. Bueno mobilizava sua rede de contatos. A presença de histórias em quadrinhos, ilustrações e trabalhos gráficos era outra marca do Nicolau, sobretudo graças ao trabalho gráfico e os contatos do Guinski. Já a Josely e eu fazíamos a ponte com tradutores, jornalistas, poetas, ensaístas. Quando a edição saía, ficávamos todos lambendo a cria, saíamos pra comemorar. A gente sabia que cada número era uma vitória, ainda mais dentro de uma estrutura oficial, estatal. Resumindo, foi um período turbulento, mas muito gostoso e criativo. Por isso, considero cada número daquela época como único.

O Nicolau tinha uma tiragem impressionante naquela época (chegou a 150 mil, se não me engano). A mala direta também era robusta, alcançava muita gente no Brasil e no exterior. Seu alcance era ampliado pelo fato dele ser encartado em mais de vinte veículos da imprensa paranaense, como Gazeta do Povo e Folha de Londrina. Outra preocupação da equipe era “descuritibanizar” o jornal, mostrando a cultura que estava sendo feita em outras partes do Paraná com igual peso e valor. Isso acabou descentralizando e mostrando que havia vida inteligente no Estado, revelando nacionalmente novos autores e artistas.

Fiz algumas matérias importantes naquele período, como “Quem Matou Miguel Bakun”, um dossiê sobre o “Van Gogh” curitibano (1909-1963), entrevistas com o músico Itamar Assumpção, o diretor de cinema Sergio Bianchi, e um longo ensaio sobre a poesia de Leminski. Também publiquei poemas, perfis (como o do buttonmaker Hélio Leites), reportagens sobre poesia brasileira, espeleologia (explorando as cavernas de Rio Branco do Sul) e ecologia (sobre a ilha de Superagui). Fiz uma longa reportagem sobre o Cerco da Lapa (1894), que acabou ficando inédita. No Nicolau eu era meio um faz-tudo, me revezando nas funções de redator, repórter, editor, revisor e tradutor. Lembro de ter de assinar, a pedido do Bueno, várias matérias com pseudônimos (Nicolas Lucas, Daniel Link, Gertrude Stein). Desde o começo um ponto forte do jornal era a qualidade e diversidade das traduções, propiciando um diálogo com outras culturas, inclusive indígenas. Das que publiquei (quase sempre em parceria com Maurício Arruda Mendonça), destaco as de Shiki, John Donne, Arthur Rimbaud, Ezra Pound, Sylvia Plath e Gary Snyder. Posteriormente, contribuí com entrevistas com o videomaker Nam June Paik, o cineasta Stan Brakhage e a cantora e compositora Meredith Monk.

Não posso deixar de citar a edição do número 24, sobre ilhas e utopias, além da edição especial que fizemos quando da morte de Paulo Leminski, em agosto daquele ano. Minha convivência com o Bueno era boa, ele sempre foi carinhoso e generoso comigo. Lembro-me das crises pelas quais ele passava, e os papos noite adentro tentando acalmá-lo, animá-lo. Bueno estava, entre outras coisas, bebendo muito, e quando Leminski morreu ele, como todos nós, ficou arrasado, e decidiu parar de beber. Acho que ele virou um melhor escritor e ser humano depois disso. É um absurdo que seu assassino confesso esteja em liberdade.

Nicolau era a grande vitrine cultural do Paraná. No ano de sua criação já havia recebido o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) de melhor jornal cultural do país. Logo nas primeiras semanas comecei a perceber que o Nicolau e sua equipe eram alvos de inveja de algumas pessoas do meio literário e artístico paranaense. Gente que insistia em “delatar” ao secretário René Dotti nosso “elitismo” (quando chegávamos a ser ditáticos!). Ou a existência de uma “panelinha” quando, na verdade, estávamos abrindo o leque, enfatizando a pluralidade das vozes e visões. Creio que o fato da equipe defender, com unhas e dentes, a autonomia e ousadia do jornal, recusando-se a fazer jornalismo “chapa-branca”, também foi incomodando o poder. Éramos independentes, ambiciosos, criativos demais. O Bueno e a equipe sofriam muita pressão. Política, institucional, ideológica. Eu mesmo fui convencido a fazer um material “chapa-branca” para acalmar os ânimos. A crise estourou no número 26, quando a equipe foi forçada pelo secretário da Cultura (e pelo Wilson Bueno) a engolir um conselho editorial. Nós fomos contra, pois conhecíamos os interesses que haviam por trás da decisão e sabíamos que aquilo seria o início do fim de um projeto que nasceu coletivo. Na esteira da arbitrária demissão do Guinski, quase toda a equipe saiu, inclusive eu, em solidariedade. Durante a crise, Leminski chegou a publicar um artigo em defesa do jornal que foi amplamente divulgado. Anos depois desse imbroglio, voltei a colaborar com o jornal.

Orgulho-me de ter participado da fase heroica do Nicolau, e acho uma pena não existirem veículos com seu perfil hoje no país. Talvez seja porque o Nicolau tenha sido a tradução de sua época, pré-internet e barbárie cultural, de fala alijada, perda de referências e materialismo desenfreados, quando as pessoas ainda eram movidas por alguma utopia ou princípio-esperança. Hoje o jornalismo cultural virou, em grande parte, jornalismo de entretenimento, submisso aos interesses do Deus Mercado.

Rodrigo Garcia Lopes
é escritor, compositor e tradutor. Autor do disco Canções do Estúdio Realidade (2013). Mantém o site Site www.rgarcialopes.wix.com/site. Vive em Londrina (PR).