Especial | Literatura Erótica

A lei do desejo

Escritores e acadêmicos tentam jogar luz sobre o erotismo — um tema inerente à arte, mas que ainda hoje continua escondido embaixo do tapete da historiografia literária brasileira


Omar Godoy

Eliane Robert Moraes, organizadora da Antologia da poesia erótica brasileira: “A erótica literária brasileira continuava desconhecida, aguardando uma compilação

Eliane Robert Moraes, organizadora da Antologia da poesia erótica brasileira: “A erótica literária brasileira continuava desconhecida, aguardando uma compilação.

"Imagine o que aconteceria com a Medicina se os médicos negassem atenção às muitas imundícies (física e morais) que devem considerar”, disse o poeta e crítico Dámaso Alonso (1898 – 1990), justificando a importância do erotismo na literatura. Ou seja: se a arte busca o conhecimento integral do ser humano, um elemento tão determinante quanto a sexualidade não deve ser renegado na produção literária. A historiografia brasileira “oficial”, no entanto, ainda hoje ignora o texto erótico e o fato de que muitos dos grandes autores nacionais também já exploraram esse território — de Machado de Assis a Moacyr Scliar, de Olavo Bilac a Lygia Fagundes Telles, de Carlos Drummond de Andrade a Dalton Trevisan. 

Especialista no assunto, Eliane Robert Moraes, professora de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), publicou neste ano o livro Antologia da poesia erótica brasileira, com 255 poemas escritos nos últimos quatro séculos por autores como Hilda Hilst, Roberto Piva, Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Cruz e Souza, etc. Segundo ela, a ideia de organizar o volume surgiu de uma observação de Mário de Andrade (1893 – 19545), que nos anos 1920 já se queixava da ausência de um “erotismo literário sistematizado” no país. 

“Passados mais de 80 anos dessa afirmação, a erótica literária brasileira continuava desconhecida, aguardando uma compilação. As ponderações de Mário de Andrade estão na origem do meu livro, que veio a lume para dar testemunho não só da existência de uma lírica erótica do Brasil, mas também de sua extraordinária riqueza”, explica Eliane, também autora de O que é pornografia (1984, com Sandra Lapeiz), Sade — A felicidade libertina (1994) e O corpo impossível (2006), entre outros estudos. 

Para se ter uma ideia dessa “ausência” observada pelo autor de Macunaíma, o próprio poeta Gregório de Matos (1636 – 1696), considerado o pioneiro da literatura erótica nacional, só ganhou uma edição totalmente sem censura de sua obra no final da década de 1960. Mesmo no campo da prosa — teoricamente mais acessível ao leitor “comum” que o da poesia —, são poucos os exemplos de antologias disponíveis para consulta. O resultado é o desconhecimento quase total da faceta “picante” de autores consagrados como Carlos Heitor Cony, Erico Verissimo, Gilberto Freyre, José Lins do Rego, Marques Rebelo, Autran Dourado, Ferreira Gullar, Murilo Rubião. 

Estaríamos, então, diante de mais uma das várias contradições nacionais? O país da sensualidade e da malícia não conhece a própria produção literária erótica? “Ainda somos um país conservador, e vai demorar muito para vencermos esse conservadorismo, apesar de a televisão, o cinema e as outras artes em geral estarem ousando mais”, afirma o escritor sergipano Antonio Carlos Viana, autor de livros como Aberto está o inferno (2004), Cine Privê (2009) e Jeito de matar lagartas (2015), todos marcados pela descrição de cenas sexo em suas páginas. “Quando um escritor ousa demais, até alguns críticos lhe torcem o nariz. Já ouvi alguém tachar Nada a dizer (2010), de Elvira Vigna, como pornográfico só porque tem palavrão”, completa. 

A separação entre erotismo e pornografia parece ser mesmo um entrave na compreensão da sexualidade na arte. Mas apenas para o grande público, como aponta Eliane Robert Moraes. “Para o senso comum, o pornográfico é o que ‘mostra tudo’, enquanto o erótico é o ‘velado’. Contudo, para o estudioso do erotismo literário, essa distinção é falsa, moralista. A rigor, livros como os do Marquês de Sade, Georges Bataille, Glauco Mattoso ou Reinaldo Moraes são muito mais obscenos do que a pornografia comercial de uma Bruna Surfistinha ou de uma E. L. James [autora do best-seller Cinquenta tons de cinza]”, diz.

de Matos (1636 – 1696), pioneiro da literatura erótica nacional, só ganhou uma edição totalmente sem censura de sua obra no fim dos anos 1960.

Gregório de Matos (1636 – 1696), pioneiro da literatura erótica nacional, só ganhou uma edição totalmente sem censura de sua obra no fim dos anos 1960.

Para Eliane, a diferença não está no grau de obscenidade, e sim na composição formal. “O valor de um texto nunca se mede por sua moralidade, mas por sua qualidade estética. Hoje, mais do que nunca, é preciso avaliar a qualidade, pois há muitos textos que só fazem banalizar o erotismo e não acrescentam nada à nossa experiência humana”, afirma. Antonio Carlos Viana concorda: “Há momentos em que as duas coisas se confundem mesmo. Porém, ninguém lê um livro pensando: ‘Isto aqui é erótico, isto aqui é pornográfico’. O importante é envolver o leitor e mostrar-lhe que há uma dimensão no erotismo ou na pornografia que é salvadora”. 

Mas há quem simplesmente não veja o erotismo como um gênero literário. É o caso do escritor paulista Marcelo Mirisola. “Erotismo, e até mesmo pornografia, equivale a sugestão, daí que eu não acredito num gênero. O potencial erótico das cunhadinhas de Nelson Rodrigues, por exemplo, é infinitamente maior do que o ramerrame da Adelaide Carraro [escritora que entre as décadas de 1960 e 1980 vendeu milhares de exemplares de “subliteratura pornô”]”, afirma o autor de romances como Joana a contragosto (2005) e Memórias da sauna finlandesa (2009). 

Márcia Denser, que inclusive já foi tema de trabalhos acadêmicos com foco no erotismo de sua ficção, também rejeita o rótulo. “Existe literatura erótica? Existe pornografia, há um mercado para isso. Em qualquer país do mundo e em todas as épocas, inclusive para grandes escritores que estejam em dificuldades financeiras”, diz a autora de O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984) e Diana caçadora (1986), entre outros títulos. Ela se queixa de ter recebido o carimbo de “escritora erótica” por questões comerciais. “Não sou escritora erótica, nem faço literatura erótica. Faço literatura, ponto.” 

O poder da sugestão 

Antonio Carlos Viana acredita que produzir textos eróticos é uma das tarefas mais difíceis para um escritor. Segundo ele, uma cena de sexo interessante deve, acima de tudo, ser necessária ao contexto da obra. “Muitas vezes, você pode fazer simplesmente uma alusão à cena e nada mais. Existe conto mais erótico do que ‘Missa do Galo’, de Machado de Assis? Tudo ali é apenas sugestão, mas o clima erótico envolve as duas personagens de tal forma que até parece sonho.”

Paulo Venturelli, escritor e professor aposentado do curso de Letras da Universidade Federal do Paraná (UFPR), usa outro exemplo “machadiano de elaboração literária a serviço do erotismo. “No conto ‘Uns braços’ há uma intensidade humana desesperada do desejo que fica apenas insinuada, nas entrelinhas. Aí o erotismo é ‘real’. Há um véu sobre os fatos narrados, mas este véu é rompido pela perícia do narrador e pela do leitor, que, se for inteligente, vai perceber o fogo do desejo queimando naquela carne”, explica. Venturelli também destaca a força de Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa. Em especial, a sequência em que o jagunço Riobaldo cheira o pelego do amigo Diadorim. “Isso vale por um transa infernal. É a cena mais erótica que conheço no século XX”, opina.

Viana ainda ensina que um dos cuidados a serem tomados pelo escritor é esquecer o perfil de quem vai ler a obra. “Não importa que seja um jovem ou um velho. O que importa é que a linguagem seja aliciadora, que o cative a cada palavra colocada, transportando para algo que ele conhece, mas nunca viu escrito daquele jeito”, diz. Viana, no entanto, considera que um traço comum da produção brasileira dita erótica é justamente um certo receio de assustar o leitor. “Poucos o afrontam”, lamenta. Marcelo Mirisola vai além e aponta o dedo para todos os gêneros literários. “Não é só no erotismo. Desde os livros infantis até a ficção científica, tudo neste país é tímido, carece de ambição, subversão e coragem.” 

Em Grande sertões: veredas, Guimarães Rosa explora a tensão sexual entre os personagens Riobaldo e Diadorim.

Em Grande sertões: veredas, Guimarães Rosa explora a tensão sexual entre os personagens Riobaldo e Diadorim.

Escritor e professor de Literatura da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Rinaldo de Fernandes não vê tanta autocensura nos autores nacionais. “Quando a cena exige o erótico, e este erótico é funcional, há sempre bons e excelentes momentos. Nossos escritores seguem fazendo uma literatura com uma linguagem desabrida, direta, sem bloqueios e até agressiva, a depender da situação narrada”, garante o organizador da coletânea 50 versões de amor e prazer, que reúne contos eróticos de 13 escritoras brasileiras (entre elas Márcia Denser, Ana Miranda, Ana Paula Maia, Luisa Geisler e Juliana Frank). 

O problema, de acordo com Fernandes, está nas “instituições” e em quem as comanda. Como o juiz do município fluminense de Macaé que proibiu a exposição sem lacre dos livros de E. L. James e de 50 versões... nas livrarias da cidade. “Creio que os tabus não caíram para todos, ainda há muitos moralismos por aí. O erotismo ainda choca, sim. A sociedade brasileira é mais conservadora do que imaginávamos. Vemos isso atualmente nas ruas do país, com pessoas pedindo a volta da ditadura”, compara. 

Eliane Robert Moraes também não acredita no fim total dos tabus. Prefere dizer que eles mudaram, diversificaram- se e adaptaram-se aos novos tempos. “A bem da verdade, não creio que a vida em sociedade seja possível sem a observação de proibições. De outro lado, não há dúvida de que a capacidade de choque diante de um texto obsceno é, hoje, bem menor que nos tempos vitorianos”, diz. E completa: “Seja como for, tendo a pensar que a fabulação erótica, por sua própria natureza, sempre encerra um desafio aos tabus sexuais”.