Especial | Fragmentação literária

A linguagem da imperfeição

Autor do fundamental O que é pós-moderno, Jair Ferreira dos Santos fala sobre o caráter fragmentário da vida e seus reflexos nas artes e na mídia


Omar Godoy

No início dos anos 1980, o escritor Jair Ferreira dos Santos escolheu um assunto “da moda” para sua tese de mestrado em Comunicação: a pós-modernidade. O trabalho não foi concluído, mas a pesquisa acabou se transformado num livro que ainda hoje é referência no país. O que é pós-moderno, lançado pela editora Brasiliense em 1985, já vendeu mais de 200 mil exemplares e segue sendo reeditado. De lá para cá, Ferreira publicou apenas outros três volumes — A inexistente arte da decepção (contos, 1996), Breve, o pós- -humano (ensaios, 2003) e Cybersenzala (contos, 2007) —, todos marcados por reflexões sobre o contemporâneo, a vida urbana e a era da informação.

“Fragmentação”, portanto, é um conceito bastante presente no universo do autor de 68 anos, paranaense de Cornélio Procópio radicado no Rio de Janeiro desde a década de 1970. Em entrevista concedida à reportagem do Cândido, Ferreira falou sobre o tema do especial desta edição e seus desdobramentos estéticos, filosóficos e sociológicos. Também adiantou detalhes de seu próximo romance, que trata, entre outros tópicos, das transformações recentes vividas pelos habitantes das cidades do interior do Brasil. Leia a seguir os melhores momentos da conversa.

UM DRAMA NA ORIGEM
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O drama da separação homem/ mulher, do dia/noite está na imaginação e na sensibilidade humanas desde sempre, portanto somos fragmentos já na origem. Boa parte dos mitos trata disso, a nostalgia do uno, do todo. (…)

As grandes epopeias são divididas em cantos. Por aí também se vê que a fragmentação nos acompanha desde a antiguidade. Mas ali seu papel era de organizar a sucessão dos fatos para entregar ao leitor um significado transparente. Hoje a fragmentação serve, ao contrário, à opacidade da leitura, à resistência à significação imediata. É que é preciso trazer à tona, junto com o fragmentário, a complexidade. Nossa vivência de mundo é parcelar e múltipla, com entrelaces de lógicas diferentes. É preciso violar o senso comum acomodado no berço esplêndido da linearidade, da clareza, da verdade única. (…) À medida que as metrópoles crescem, os fenômenos do isolamento, da atomização social, da alienação começam a se impor e a determinar modos de vida em que os sujeitos parecem estranhos a si mesmos, não têm mais um ego unitário e estável. Sua experiência de mundo é descontínua, cada vez mais veloz e insatisfatória, em suma, fragmentária e ininteligível. O hermetismo da arte moderna não quer dizer outra coisa. Quando Picasso fraciona um objeto ou um rosto em mil ângulos e Kandinsky embrenha formas desconexas umas nas outras, eles estão dizendo que a unidade e a totalidade implodiram, o real não é representável articuladamente. Temos de nos contentar com fragmentos, com a imperfeição, que aliás é o tema filosófico por excelência do contemporâneo.

AUTORES PIONEIROS

A fragmentação se torna regra no Modernismo, que também é um fenômeno urbano, o que significa mutação constante, sensorialidade, solidão, anonimato, abstração, desumanização. A obra de autores como Rimbaud, Poe, Baudelaire, Kafka, Joyce e Proust reflete essa condição existencial, e a melhor maneira de se apresentar uma desagregação espiritual, civilizatória — instituições e valores burgueses estão vindo abaixo — é pela fragmentação. A outra é a guerra, como a de 1914, um prodígio de crueza e destruição, com um impulso não muito diferente daquele das vanguardas modernistas e seus manifestos. A esse contexto é preciso acrescentar, entre meados do século XIX e inicio do século XX, o advento de artes e ofícios fragmentários por natureza como o jornalismo, a fotografia, o cinema, o rádio. Cabe incluir neste inventário, ainda, as contribuições de Einstein e de Freud, que abalam as convicções científicas e filosóficas das visões de mundo determinísticas, agora em confronto com os modelos probabilísticos. O sonho, tão cultuado pelos poetas, é não só fragmentário como obscuro e aleatório, traços bastante presentes na obra de Joyce, por exemplo. Proust pura e simplesmente destitui o enredo, que é conexão, organização das partes, como valor estético, substituindo-o por uma temporalidade incerta, fluida, ao sabor das associações imprevisíveis da memória involuntária.

MÚLTIPLAS VOZES

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James Joyce, cuja obra é marcada pela fragmentação, com especial destaque para os romances Ulysses e Finnegans wake. Foto: Reprodução.

Os romances com vários narradores esfacelam a tonalidade narrativa. Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas, interpola fragmentos curtos e longos ligados ao passado e ao presente e imprime à sua pouca históriauma dinâmica inteiramente em contraste com o tom cético e irônico do seu frio narrador, um morto. “The Babysitter” (1969), conto do americano Robert Coover, é mais radical e relata a noite de um casal que foi a uma festa na vizinhança, deixando os dois filhos com a babá. Cinco ou seis enredos possíveis se entrelaçam no mesmo cenário: o marido vai ver como estão os filhos e come a babá. A mulher flerta com um amigo ou sai à procura do marido e é surpreendida por ladrões, um dos quais, namorado da babá, mata a mulher ou mata a babá. A polícia não vem. A polícia entra na casa duas horas depois. É um conto brilhante e constitui um dos pontos altos da literatura pós-moderna.

A IMPORTÂNCIA DA POESIA

A poesia foi a frente de batalha mais intensa da revolução modernista. A fragmentação se mostrou uma das armas altamente eficientes na destruição em massa dos códigos, das formas, dos temas, da ideologia estética da tradição. Contra as formas fixas e os temas convencionais, o fragmento foi o operador inigualável do mote “Palavras em Liberdade”. É o signo mais evidente da “experimentação” formal introduzida pelos modernistas. Ele quebra o poema como mensagem unitária no mesmo movimento em que afasta a eloquência, recondiciona a emoção. A música das esferas dá lugar ao registro dos ritmos urbanos e mecânicos, nos quais a dissonância impõe menos harmonia. Com isso, muda-se a noção de leitura lírica: sai a declamação e entra o compromisso do poema com a prosa da vida cotidiana, que é bastante truncada. No mesmo passo, revoga-se a primazia da linguagem erudita, trocando- se a solenidade pela agilidade, mas sobretudo afasta-se do poema a joia dascoroas arcaicas — a rima — porque os versos passarão por cortes inesperados e sem metro. O verso livre não significa verso arbitrário, mas sujeito à medida da sensibilidade individual. Em suma, a poesia fragmentária é um decalque da existência em fragmentos e sua inclinação para as desilusões teológicas. A poesia moderna nos oferece os primeiros momentos da transcendência vazia, da ausência de Deus, e a paisagem que nos resta não é propriamente um jardim das delícias. É angústia, incerteza, insegurança ontológica, despersonalização — a matéria prima das obras de Rilke, Eliot, Apollinaire, Pound, Mallarmé, Trakl, Lorca, Fernando Pessoa. O que, senão a fragmentação, poderia representar esses mestres cantores da negatividade?

OUTRAS MÍDIAS

Atualmente a fragmentação é uma técnica narrativa ou poética que perpassa as mídias, a literatura, as artes, sendo hoje menos uma saída revolucionária na estética, como foi para o Modernismo, ao romper a linearidade do discurso exigida pela razão, do que um hábito, um macete de composição de amplo domínio público. No entretenimento, em especial na televisão, seu principal papel é a economia de custos e a valorização do tempo, que é o que o veículo vende. Um ou dois anos depois de 1989, quando teve fim a União Soviética, os locutores de rádio e televisão da Rússia foram obrigados a dobrar sua velocidade de locução. Isso tornou as notícias mais compactas e mais caras. Não é de graça que o videoclipe, com seus cortes ultra rápidos, se tornou uma constante na programação para jovens. Em grande parte, portanto, a fragmentação hoje está aliada à velocidade, que é o vetor soberano do capital.

O LIVRO NO MUNDO DIGITAL

Desconheço assunto mais chato do que as maravilhas do mundo virtual, a internet e Steve Jobs. Mas a era do livro, da cultura letrada, infelizmente está chegando ao fim. A velocidade imposta pelos computadores, um dos aceleradores do retorno do capital, aparentemente é incompatível com a reflexão, a contemplação. O mundo atual é pura efetuação, pura ação comunicacional, pouco importa o conteúdo, e isto é a apoteose da razão instrumental: os fatos da tecnologia dispensam o sentido. Imagino que uma nova cultura vá surgir com novas formas de produção e consumo literários, mas dificilmente elas terão o mesmo prestígio alcançado pelo livro, que realizou todo o trabalho do Iluminismo. A fragmentação hoje é em escala individual, os indivíduos estão sós com seus tablets, seus PCs, seus egos que são uma colagem de grifes, mas dispõem dos primeiros socorros das coletividades virtuais que são as redes. Tudo está sendo reescrito no código digital, a língua do capitalismo triunfante.

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Charles Baudelaire, autor de As flores do mal, segundo Jair Ferreira, é um poeta que retratou a condição existencial do ser humano por meio da fragmentação. Foto: Reprodução.

FORMAÇÃO E INFLUÊNCIAS

Como muita gente da minha geração, minhas origens intelectuais mesclam marxismo e existencialismo. Eu me bato por uma literatura que seja radicalmente interpretação original da experiência humana. Os estudos de comunicação não modificaram em profundidade essa base, mas acrescentaram a ela um olhar diferente, capaz de pinçar elementos e formatos surpreendentes para o drama individual aqui e ali. É assim que meu último livro de contos, Cybersenzala, focaliza uma série de conflitos com viés pós-moderno na paisagem urbana. A obesa que rouba um bebê e sua luta contra os estereótipos midiáticos, a influência do cinema na ideologia do glamour dos ricos nas cidades do interior nos anos 1960, a presunção de superioridade em contraste com a precariedade do trabalho entre os operadores do mercado financeiro, os serviços funerários descritos num site com a linguagem do entretenimento, e a paixão de um advogado por Kafka na juventude, que o leva a escolhas absurdas. Cada uma dessas narrativas se movimenta em torno de uma mídia — a publicidade, o cinema, o computador, a internet, o livro. Certamente muito do que eu li sobre os meus temas vazou para o texto. O resumo disso é: antigamente a realidade ditava a informação, agora a informação edita a realidade.

PRÓXIMO PROJETO

No momento eu trabalho num romance, do qual publiquei, em 2013, uma sequência na revista Helena (publicação da Secretaria de Estado da Cultura do Paraná, editada pela mesma equipe do Cândido). A ação se passa numa cidade interiorana do norte do Paraná. Há um drama existencial envolvendo os principais personagens, mas o contexto é um elemento importante, porque eu tento falar das transformações socioculturais que modificaram sensivelmente aquela como outras regiões do país nos últimos anos. Por exemplo, os alunos do Cefet de Cornélio Procópio produzem games. A caipiragem pode subsistir conforme a faixa social, mas os caipiras estão acabando. A culinária das festinhas mudou. Volta e meia cita-se a TV a cabo. O acanhamento, a desconfiança, a “inferioridade” do provinciano estão desaparecendo de modo acelerado. Depois desse livro, eu gostaria de me dedicar à poesia, esteja ela ou não por aqui. Vamos ver, vamos tentar.