Especial Fragmentação Literária | Prateleira

Ulysses, de James Joyce

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Em Ulysses, coube de tudo um pouco: da poesia ao teatro, da linguagem oral à letra de música, James Joyce recorre a uma miríada de referências culturais para compor seu principal romance, que até hoje é considerado um marco da literatura mundial, tão importante quanto livros fundadores como Dom Quixote. A pujança de vozes e esquemas narrativos contrasta com a ação do romance, que conta os passos de Leopold Bloom ao longo de 16 de junho de 1904. Bloom é retratado em afazeres prosaicos. Ele acorda, leva café para a mulher, Molly, vai ao açougue , encontra os amigos e segue para um velório e depois para um bordel. O que torna o livro especialmente revolucionário, é forma com que Joyce transforma um uma rotina aparentemente enfadonha em um universo simbólico, palco para reflexões filosóficas, debates religiosos e de consciência.


Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade
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Há indícios de que Oswald de Andrade tenha começado a escrever Miramar logo após uma de suas viagens à Europa, em 1912. Mas a primeira aparição do que viria a ser o livro se dá dois anos mais tarde, em 1914, no jornal A Cigarra. A partir daí vários capítulos do romance, formado por 163 fragmentos que compõe a vida do personagem-título, aparecerão em jornais e revistas de pequena circulação de São Paulo, onde apenas um círculo restrito de intelectuais tem acesso. Finalmente publicado em 1924, o livro traz capítulos que funcionam como retalhos do passado do narrador, cuja memória é acionada de forma fragmentada. João Miramar pertence a uma rica família burguesa. Sua infância é marcada pela morte do pai. Miramar estuda em bons colégios de São Paulo e, depois de se formar, parte para uma longa viagem de conhecimento e amadurecimento, passando por Tenerife, França, Alemanha, Itália, Suíça e Inglaterra. Inserido no projeto modernista, o romance desconstruiu as bases da forma tradicional da narrativa de ficção, o que lhe valeu comparações com Ulysses, de James Joyce.

 

Malone Morre, de Samuel Beckett

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Segundo volume da “Trilogia do Pós-guerra” que o escritor e dramaturgo irlandês publicou entre na primeira metade dos anos 1950 — composta ainda por Molloy e O inominável — , Malone morre antecipa questões que estariam no teatro de Beckett, em que reflete sobre a paulatina perda de identidade do ser humano frente um mundo fragmentado, onde a própria linguagem é colocada em xeque. Assim como em sua peça mais famosa, Esperando Godot, em Malone morre o personagem-título é uma figura misteriosa, cuja consciência é sincopada e fragmentária. Idoso, Malone está em um quarto, não sabe bem como e nem por que chegou ali, lembra-se vagamente de sua própria vida e tem apenas uma certeza, a de que vai morrer. Enquanto espera, protela este único acontecimento contando as histórias “nem bonitas nem feias” das famílias Saposcat e Louis, de Macmann e Moll. A primeira aparição do romance no Brasil se deu com uma tradução do poeta Paulo Leminski, publicada pela editora Brasiliense nos anos 1980.


Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis
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Especialistas apontam Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, publicado inicialmente em formato de folhetim em 1880, editado em livro em 1881, como um marco na literatura brasileira — é a passagem da fase romântica para a etapa realista. O romance tem qualidades, a começar pela quebra de linearidade. O narrador, Brás Cubas, já falecido durante a narração, vai de um assunto para outro em poucas linhas. E nisso está a novidade do livro. Mais do que a dissolução de começo, meio e fim, esta obra é formada por capítulos breves — fragmentados — nos quais aparecem, e desaparecem, em alternância, temas como casamento, relações nada pacíficas entre diferentes classes sociais, escravidão, política, perda da razão, entre outras questões. E, além de tudo, tem o texto com ironia e humor por meio do qual Machado de Assis, usando a voz de Brás Cubas, conseguiu elaborar um dos finais mais marcantes da ficção realizada no Brasil: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”


Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato

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O escritor mineiro radicado em São Paulo começou a imprimir o nome na história da literatura brasileira com Eles eram muitos cavalos, publicado em 2001. Luiz Ruffato apresenta um painel recortado da Paulicéia Desvairada por meio de personagens que, não fosse o seu olhar, estariam fora da cartografia literária. São os zé-ninguéns, trabalhadores anônimos mal remunerados, excluídos por exemplo das colunas sociais, mas os motores da metrópole. “Vêm os três, em fila, pela trilha esticada à margem da rodovia. A escuridão dissolve seus corpos, entrevistos na escassa luz dos faróis dos caminhões, dos ônibus e dos carros que advinha a madrugada” — eis um fragmento do livro que conquistou o prêmio Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA) e o Prêmio Machado de Assis de melhor romance de 2001 e se tornou referência. A fragmentação está presente em quase toda a obra de Ruffato, considerado um dos mais importantes escritores brasileiros — além dos livros que escreve, assina uma coluna na edição brasileira do jornal El País.


Matteo perdeu o emprego, de Gonçalo M. Tavares
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Romance do renomado escritor angolano, publicado em 2013 no Brasil, Matteo perdeu o emprego tem 26 fragmentos na primeira parte — cada fragmento é um capítulo a respeito de um personagem — alguns deles se encontram durante a narrativa nonsense. O primeiro capítulo traz Aaronson que, em algumas linhas, será apresentado ao leitor antes de morrer. Ainda no primeiro capítulo, o narrador insere Ashley, que mata Aaronson, e que terá destaque no próximo fragmento: “Aaronson ainda deu cinco voltas completas à rotunda, mas na seguinte o automóvel guiado pelo Sr. Ashley bateu a grande velocidade no seu corpo, projetando-o, já sem vida, para o centro da rotunda. Não fosse o corpo humano ser tão pouco regular, Aaronson teria caído (ou a sua cabeça) no exato centro da rotunda.” Já a segunda parte do livro, as “Notas sobre Matteo perdeu o emprego”, é um ensaio no qual o autor comenta a própria narrativa, inclusive a decisão de apresentar os personagens, e os capítulos-fragmentos, em ordem alfabética.


O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar

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Esta longa narrativa, publicada em 1963 na Argentina, pode ser lida de várias maneiras. Por exemplo, do jeito convencional, linearmente. Ou a partir do capítulo 73, seguindo para o primeiro capítulo, depois para o segundo e, então, acompanhando algumas recomendações sugeridas por Julio Cortázar. O livro é um quebra-cabeças — também vale seguir pelas páginas aleatoriamente. Além da estrutura, fragmentada por excelência, há elementos da cultura de massas — é possível encontrar no texto ecos de novelas de rádio, música popular, história em quadrinhos, além de gírias, deslocamento de foco narrativo etc. Tudo isso, e bem mais, formando um polifonia bem resolvida. Em entrevista, o escritor explicou o motivo de elaborar a obra pouco convencional: “Desde pequeno, minha relação com as palavras, com a escritura não se diferencia de minha relação com o mundo em geral. Eu pareço ter nascido para não aceitar as coisas tal como me são dadas.” E, é preciso salientar, o texto ganha ainda mais força devido ao humor, presente nas linhas e entrelinhas deste marco literário.


Viagem à roda do meu quarto, de Xavier de Maistre
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Publicado em 1794, Viagem à roda do meu quarto é um livro inspirado e inspirador. O romance fragmentado foi uma das obras que impulsionou Machado de Assis a escrever Memórias póstumas de Brás Cubas. A ideia de Xavier de Maistre (1763-1854) é, realmente, notável. Ao invés de elaborar, por exemplo, um romance a respeito de viagem, ele criou um personagem que “viaja” pelo interior de quarto: “Eu empreendi e executei uma viagem de quarenta e dois dias à roda do meu quarto. As observações interessante que fiz e o prazer contínuo que experimentei ao longo do caminho davam-me o desejo de torná-la pública; a certeza de ser útil me convenceu a fazê-lo.” Em contraponto aos relatos de viagens, nos quais o leitor se depara com descrições de cenários, muitos deles surpreendentes, e ações ousadas, em Viagem à roda do meu quarto quase não há “movimento” — a narração, irônica, dialoga com tudo o que personagem teria diante de si dentro do quarto: “É um excelente móvel uma poltrona; é, sobretudo, de extrema utilidade para todo homem meditativo.”


Zero, de Ignácio de Loyola Brandão

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Esta obra, de acordo com o autor, reflete a própria fragmentação do Brasil. Zero apareceu em 1974, por meio de uma edição publicada na Itália, durante os turbulentos anos do regime militar. A opção da linguagem ousada, sem começo, meio e fim delineados, entre outras convenções, foi uma opção consciente que Ignácio de Loyola Brandão encontrou para espelhar o país de então. Vale ressaltar, ainda levando em conta depoimentos do autor, que, em Zero, ele não estava experimentando, mas fazendo algo planejado, porém, pouco usual. “José mata ratos num cinema poeira. É um homem comum, 28 anos, que come, ri, chora, se diverte, se entristece, trepa, enxerga bem dos dois olhos, tem dos de cabeça de vez em quando, mas toma melhoral, lê regularmente livros e jornais, vai ao cinema sempre, não usa relógio nem sapato de amarrar, é solteiro e manca um pouco, quando tem emoção forte, boa ou ruim.” Assim começa o livro que, em seguida, oferece aos leitores uma experiência estética única, surpreendente, inesquecível, fragmentada e difícil de ser resumida em poucas linhas.


Poesia pois é poesia, de Décio Pignatari
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Na metade do século XX, Haroldo de Campos (1929-2003), Décio Pignatari (1927-2012) e Augusto de Campos (1931) protagonizaram um movimento que modificou a maneira de fazer poesia. Eles estavam à frente da chamada poesia concreta que, entre outras diretrizes, aboliu o uso do verso e valorizou a disposição das palavras na página do livro. O concretismo é fragmentário e um de seus legados mais importante é o livro Poesia pois é poesia, de Décio Pignatari. Trata-se de uma antologia que reúne a produção de cinco décadas do criador inquieto, natural de Jundiaí (SP), que se tornou conhecido em São Paulo e viveu alguns anos em Curitiba. A liberdade que a poesia concreta sugeriu, a partir da poemas pouco convencionais, teve e ainda tem recepção entusiasmada, mas os seus críticos não são poucos. Até Ferreira Gullar que, inicialmente, flertou com o concretismo, em um segundo momento rompeu com o grupo e se transformou em um detratores dos concretos — o que revela a importância do legado dos irmãos Campos e de Pignatari para a cultura brasileira.