Especial Capa: escritores - roteiristas

Roteiro com pedigree

Schulberg
Como forma de sobrevivência ou de divulgação de suas obras literárias, grandes romancistas colocaram seu talento a serviço do cinema

Luiz Rebinski Junior


Ao ser apresentado a William Faulkner, o ator Clark Gable, o grande nome de Hollywood nos anos 1930, teria perguntado ao escritor: “Muito bem, senhor Faulkner, o que o senhor faz para viver?” Ao que o escritor teria respondido: “Eu escrevo romances. E o senhor?” A resposta do escritor traz em sua gênese mais do que sarcasmo. Roteirista de Hollywood, Faulkner recorria à industria do cinema quando sua situação financeira estava tão caótica quanto sua instável saúde mental, quase sempre abalada pelo excesso de álcool. Faulkner, assim como diversos outros escritores, se valeu da íntima — e nem sempre harmônica — relação entre literatura e cinema para não apenas arranjar trabalho, mas também para divulgar sua obra romanesca, amplamente adaptada para a telona.

Nos Estados Unidos, por conta da influência de Hollywood, muitas gerações de romancistas migraram para o roteiro de cinema, alguns deles com colaborações que entraram para o cânone cinematográfico, e outros que cuja passagem pela indústria se tornou apenas uma nota de rodapé em suas biografias.

Faulkner
Faulkner iniciou sua carreira como roteirista ainda nos anos 1930, a década mais fulgurosa de sua prosa, quando escreveu livros seminais como O som e a fúria (1929), Luz em agosto (1932) e Palmeiras selvagens (1939). Mas foi nos anos 1940 que o escritor emplacou seus principais roteiros, como Uma aventura na Martinica (1944) e À beira do abismo, ambos dirigidos por Howard Hawks.

A parceria de Hawks e Faulkner não é algo isolado. Diferentemente do romance, que se caracteriza por ser uma criação individual, o roteiro, em geral, é uma obra coletiva e não subsiste como peça independente. Daí as parcerias entre diretores e escritores-roteiristas.

“Há grandes roteiristas, muito respeitados e valorizados por seu trabalho, mas geralmente são associados a algum diretor. Alguns exemplos célebres são: Jean-Claude Carrière, visto sempre como 'o roteirista de Buñuel', embora tenha trabalhado também com Milos Forman, Andrzej Wajda, Peter Brook e até Godard — que geralmente fazia seus próprios 'não-roteiros' —; Tonino Guerra, o 'roteirista de Fellini'; I. A. L. Diamond, 'o roteirista de Billy Wilder', etc”, explica o crítico da Folha de S. Paulo José Geraldo Couto.

Além dos escritores da chamada “Geração Perdida”, como Francis Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway, Hollywood abrigou um time destacado de autores, que incluí nomes como John Fante, Truman Capote, Gore Vidal, Ray Bradbury, John Steinback, David Goodis e Norman Mailler. Todos romancistas de ofício que deixaram marcas na história do cinema americano.

Vidal, por exemplo, escreveu o polêmico Calígula (1979) e teve uma participação no roteiro do clássico Ben-Hur, mas esses trabalhos nunca obtiveram a mesma repercussão de sua obra como dramaturgo e romancista. No que Vidal não está sozinho. Truman Capote, seu maior adversário, apesar de ter no currículo os célebres roteiros de O diabo riu por último (1953), filmado por John Huston, e Os inocentes (1961), de Jack Clayton, entrou para a história por conta de sua prosa, em especial pelo romance A sangue frio (1966). O mesmo aconteceu com John Fante, que dedicou grande parte de sua vida a escrever roteiros, foi colega de Fitzgerald em Hollywood, mas nenhum dos filmes que ajudou a fazer conseguiu eclipsar Pergunte ao pó, o romance que influenciou várias gerações de leitores e escritores.

“Pelo fato de não ter uma obra material autônoma, já que o roteiro não subsiste como peça independente do filme — mesmo que seja publicado em livro —, o roteirista é visto como um profissional, digamos, acessório, atrelado e submetido a um projeto maior”, especula Couto.

Já Budd Schulberg é um ponto fora da curva entre roteiristas-escritores, seguindo caminho inverso da trajetória da maioria de seus colegas. Schulberg escreveu dois romances sensacionais sobre os bastidores de Hollywood, O que faz Sammy correr e Os desencantados (este último inspirado na vida de Fitzgerald), mas teve seu nome eternizado pelo roteiro de Sindicato de ladrões (1954), o filme de Elia Kazan que ganhou oito estatuetas do Oscar.

Cinema brasileiro

Em 2010, o escritor Robert McKee, um dos principais consultores de roteiros de Hollywood, afirmou que o principal problema do cinema brasileiro é a falta de roteiristas. Para ele, a classe no país é norteada pela adaptação de romances literários.

“[O que falta é] o roteiro. Vocês têm ótimos atores, ótimos diretores, vocês têm tudo que os melhores países têm. Se um filme no Brasil é bom, ele geralmente é a adaptação de um livro. Muitas vezes o cinema brasileiro tem que esperar escritores fazerem bons livros que podem ser adaptados. Precisa parar de se 'canibalizar' os romances”, falou McKee, em entrevista à Folha S. Paulo.
Mantovani


Talvez a falta de uma indústria cinematográfica no Brasil possa explicar a constatação de McKee, pois aqui os escritores contribuíram mais com o cinema nacional cedendo os direitos de seus livros do que efetivamente escrevendo roteiros originais. Desde a chamada “retomada” do cinema brasileiro, em 1995, nossos grandes sucessos vieram de livros. É só pensar em Carandiru, Tropa de elite e Cidade de Deus, os dois últimos roteirizados por Bráulio Mantovani, que também é romancista e dramaturgo, mas mais conhecido por suas colaborações no cinema. “O problema, no Brasil, é que os roteiristas de cinema ganham pouco. O esforço pode não valer a pena”, opina Mantovani, que começou a escrever seu primeiro romance, Perácio, dois anos antes de iniciar a primeira versão de Cidade de Deus, lançado em 2002. O livro de Mantovani, no entanto, só seria publicado em 2010, quase dez anos depois de ser iniciado.

“Ser um grande escritor de romances não qualifica ninguém como escritor de filmes. Um excelente escultor pode ser um pintor medíocre e vice-versa, mesmo ambos sendo artistas plásticos. A forma do drama não tem nada a ver com a forma da prosa, seja do romance ou do conto. Esse fator é tão decisivo quanto o financeiro”, diz Mantovani.

José Geraldo Couto concorda, citando Faulkner e Fitzgerald, que “não alcançaram no cinema a excelência e o caráter autoral, intransferível, de suas obras literárias”. Mas o crítico lembra de Marçal Aquino, que tem uma importante obra literária, mas que também consegue êxito como roteirista de seus próprios livros e de outros escritores. “Aquino é um excelente escritor, mas certamente alcança um público maior como roteirista dos filmes de Beto Brant ou de séries de TV.”