Especial Capa: conto

O conto-riacho



Em sua clássica obra Aspectos do romance, E. M. Forster afirma que este gênero literário é irrigado por centenas de rios-histórias. Essa síntese feita pelo escritor britânico a respeito da prosa de ficção longa, leva-me, por contiguidade, a comparar o conto a um riacho.

Se o romance é um espaço inerente à polifonia, ao mundo coletivo, o conto é o locus onde se manifesta a escassez de vozes, o universo do indivíduo. O romance opera como uma sinfônica, instaurando um diálogo entre os seus variados músicos. Já o conto é a música de câmara: poucos instrumentos, rápida performance. Romance: grande sertão. Conto: veredas.

Mas se os rios-histórias de um romance podem, não raro, degenerar em pântanos, o riacho-conto também
ilustra
pode desandar. Para mover bem suas águas, é preciso não esquecer que ele consubstancia uma estética metonímica. O conto não é o todo, é apenas o detalhe. Mas o detalhe que contém o todo: as águas, os peixes, os seixos, a vida lá dentro em conflito — embora, à sua superfície, possa parecer em calmaria.

Oscar Wilde afirmou que a vida é desprovida de forma. A arte é uma das maneiras de delinear esses contornos. Na esfera do conto, ela o faz não com carvão grosso (do romance), mas com a fina ponta de um lápis. O rio é presença forte na paisagem. O riacho, corte seco. Daí porque a economia, o ritmo, a tensão, que o caracterizam.

Em busca de riachos, sigo algumas pistas deixadas por Horacio Quiroga em seu Decálogo do contista. Uma delas é: “não escreva sob emoção. Deixe-a morrer, e depois a evoque. Se fores capaz de revivê-la, terás chegado à metade do caminho”. O conto é, ao meu ver, a re-construção (literária) de uma emoção. Uma emoção que, se for bem transmitida vai gerar o “contágio”, como dizia Tolstói, e, consequentemente, será atualizada pelo leitor. Como um anti-narciso, ele reconhecerá seu próprio rosto nessas águas.

Outra pista deixada por Quiroga: “pegue seus personagens pelas mãos e conduza-os firmemente até o final, sem deixar que nada o desvie do caminho traçado”. É preciso tomar cuidado com os moinhos de ventos, que nos empurram a outros territórios, desviando-nos do nosso curso. O riacho não é o mundo, mas um mundo. Poe, Maupassant, Tchecov, Machado, Cortázar e Carver, entre outros, souberam dar profundidade e alargar as suas margens.

E, a principal de todas as recomendações de Quiroga, ligada umbilicalmente à anterior: “não comece a escrever sem saber aonde ir. Em um bom conto, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas”.

Tal elo, entre o início e o fim, conduz-nos a uma conexão com Antonio Skármeta. O escritor chileno, em Assim se escreve um conto, lembra que a noção de fim opera no conto desde o começo. “Tudo chama, tudo convoca a um final”. Em outras palavras: o riacho, em sua nascente, já é atraído pela sua foz. Qualquer conto é, portanto, metáfora da existência, apreendida numa metonímia. Riacho-instante.

João Anzanello Carrascoza é autor dos livros de contos O volume do silêncio (2006), Espinhos e alfinetes (2010) e Amores mínimos (no prelo), entre outros. Vive em São Paulo (SP).