Especial Capa: Um país leve e palatável

machado
Do histórico Rio de Janeiro de cronistas como Machado de Assis e Nelson Rodrigues à sensual e envolvente Bahia de Jorge Amado, o Brasil se reinventa a cada página e aparece como inspiração para grandes (e pequenas) narrativas

 







Felipe Kryminice


No romance Budapeste, de Chico Buarque, o personagem-narrador conta que o melhor jeito de se conhecer uma cidade é se fechar em um aposento dentro dela. A afirmação do personagem tem sua verdade. É fato que a introspecção e o exílio sempre foram determinantes para entender uma época ou lugar. A literatura, por sua vez, além de também ter esse caráter introspectivo, é uma alternativa para conhecer outros espaços e épocas. No que diz respeito ao Brasil, nada mais genuíno do que entendê-lo a partir da crônica, esse gênero leve, palatável e tipicamente brasileiro.

No Rio de Janeiro — que à época dos primeiros grandes escritores brasileiros era a capital federal — cronistas como Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo e João do Rio, entre outros, tiveram papel importante na construção simbólica da cidade. Os cronistas cariocas mostraram que a influência da literatura na formação do espaço urbano do Rio ultrapassa o legado deixado pelo centenário Nelson Rodrigues e sua obra singular.

Quem destaca a importância dessa relação é o crítico Sérgio Rodrigues, autor de um dos blogs mais respeitados de literatura do Brasil, o Todaprosa: “Acho que essa relação profunda dos cronistas com o espaço urbano que habitam nasce com a própria ideia moderna de metrópole. Não se concebe crônica na roça. Esta no máximo vai ser uma idealização ou um refúgio de fim de semana para o animal urbano que conversa no jornal com seus companheiros igualmente urbanos”, aponta o também escritor, autor do romance Elza, a garota (2009).

Rodrigues também conta que o seu Rio de Janeiro é resultado de algumas de suas leituras. “O meu Rio, cidade onde vivo há mais de 30 anos, vai ter sempre ecos de Machado de Assis, Nelson Rodrigues e Rubem Fonseca”, afirma.

O Rio de Janeiro rende, já faz tempo, muita crônica. Da sua cobertura em Ipanema, Rubem Braga — considerado um dos maiores cronistas brasileiros — retratou uma cidade que repercute até hoje no imaginário de seus leitores. Em “Aí de ti, Copacabana!”, um dos mais conhecidos textos do autor, Braga mostra porque é considerado um dos mestres do gênero, uma vez que funde prosa e poesia com maestria: “Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniquidades e de tua malícia”.

Rubem Braga


Pluralidade crônica

As terras mineiras deram origem a uma generosa safra de jornalistas, escritores e cronistas — o que confirma que a crônica não é, necessariamente, um milagre carioca. Humberto Werneck, cronista e jornalista mineiro, conta que — no caso de Minas — houve um tempo em que, mais do que pão de queijo, o Estado se tornou conhecido por seus cronistas, que tinham como assunto recorrente o “chão de ferro”. “A terra natal era marca obrigatória. Mais do que isso, obsessiva, no que escreviam seus ficcionistas, poetas e cronistas. Nem poderia ser de outra forma, porque naquelas Minas, se vivia em grande isolamento. Ali, escrever era uma forma de suprir vivências que o meio não favorecia”, afirma o prosador, colunista do jornal O Estado de S.Paulo.

Werneck não acredita que o “cantar a sua aldeia” — seja Minas, Rondônia ou Mato Grosso do Sul — venha a ser um fator que limite ou restrinja a obra a um certo publico de leitores locais. “Não será isso que impedirá o bom leitor do Acre, por exemplo, de se encantar com a Belo Horizonte do romance O encontro marcado, de Fernando Sabino, onde nunca terá botado os pés”, pontua.

O jornalista ainda lembra que, seguindo exemplo de outras regiões do Brasil, a obra mineira também originou algumas cidades imaginárias: “Lembro de duas cidades que Otto Lara Resende inventou: a Lagedo, do romance O braço direito e da novela A testemunha silenciosa, e a Santa Rita do Rio Acima, da novela A cilada”.


“Literariamente falando, toda cidade é uma colcha de retalhos"

 Sérgio Rodrigues, crítico literário.




Romances e lugares

Nem só de breves narrativas vivem os prosadores brasileiros. Grandes romancistas trataram de eternizar cidades e tempos. A história da literatura baiana muitas vezes se confunde com a obra de Jorge Amado. Dona Flor, Nacib e Tieta são alguns dos personagens que habitam a Bahia de Jorge e o imaginário de cada leitor. Dono de uma dicção inconfundível, Jorge Amado criou uma Bahia envolvente e sensual.

Além de Amado, outros escritores sustentaram longas — e consagradas — narrativas em outras regiões. Manuel Antônio de Almeida , com Memórias de um sargento de milícias, foi o primeiro a romper com o romantismo. O escritor deixou de lado o cenário aristocrata de salões e tratou de um Rio de Janeiro mais urbano, incorporando a linguagem das classes mais baixas e ambientando seu romance na rua.

Para além do Nordeste de José Lins do Rego e Jorge Amado e do Rio de Manuel Antônio de Almeida, literariamente falando, Manaus virou sinônimo de Milton Hatoum — um dos mais festejados romancistas da atualidade. Outro exemplo que reforça a relação das cidades nos grandes romances contemporâneos é a influência de Recife na obra de Raimundo Carrero.

Metrópoles literárias

A produção contemporânea literária brasileira acabou evidenciando uma involuntária tendência: grandes centros urbanos acabam aparecendo como destaque em narrativas de romances. Dois dos principais romancistas da atualidade, Bernardo Carvalho (O sol se põe em São Paulo) e Luiz Ruffato (Eles eram muito cavalos), sustentam suas narrativas na cidade dos engarrafamentos e conglomerados econômicos.

A professora Nádia Barbosa, que fez um estudo sobre a relação da obra de Luiz Ruffato com São Paulo, acredita que a presença da cidade na narrativa do autor é tão intensa que se faz presente até mesmo quando a história se passa em outro espaço: “Portanto, São Paulo, com sua efemeridade, parece-me estar na própria dicção de Ruffato, até mesmo quando o espaço de sua narrativa é Cataguases, interior de Minas”, pondera a professora da Universidade Estácio de Sá.

Nádia ainda observa a influência de fatores externos na inspiração dos escritores. “A industrialização crescente e a globalização mudaram a geografia humana do país e, em última instância, deram força à ficção centrada na vida das grandes cidades”, salienta.

Luiz Ruffato


Um Brasil inexplorado

Por maior e mais plural que seja a relação da produção literária brasileira com as suas urbes, uma pergunta é recorrente: existe alguma cidade brasileira que ainda não apareceu com grande destaque na literatura, mas é fonte rica para sustentar uma narrativa?

Questionados sobre essa lacuna, Sérgio Rodrigues e Humberto Werneck cravam observações coincidentes: ambos acreditam que Brasília ainda não teve o devido prestígio na literatura.

Embora a cidade apareça com destaque na narrativa de alguns escritores, como na premiada obra de João de Almino, Rodrigues crê que a singularidade da capital brasileira ainda não foi devidamente aproveitada. “Tenho a impressão de que Brasília, aquele delírio modernista de concreto cercado de favelas por todos os lados, ainda não rendeu e tem tudo para render nas letras uma obra à altura do seu jeitão único”, ressalta o crítico literário.

Rodrigues ainda destaca a pluralidade e a riqueza literária de cada espaço brasileiro. “Não existe um só Rio de Janeiro na literatura, como não existe um só Rio de Janeiro na vida real. Literariamente, toda cidade é uma colcha de retalhos, e o Rio talvez o seja mais do que as outras”, diz.