Especial Capa: O espaço das contradições

Representadas literariamente, as cidades são muito mais do que espelho e cenário geográfico. Atualmente, as urbes refletem os anseios e os conflitos do ser humano, em busca do progresso em meio à hostilidade caótica

Marcio Renato dos Santos


cidade


Dublin de James Joyce. Porto Alegre de Erico Verissimo e Dyonélio Machado. Nova York de Paul Auster. Rio de Janeiro de Lima Barreto e Machado de Assis. Lisboa de Eça de Queiroz. Curitiba de Dalton Trevisan e Cristovão Tezza. Brasília de Nicolas Behr. A literatura ocidental contemporânea é marcada pela cidade — ou pela representação literária de cidades. Dito de outra maneira, as cidades são cenário de parte significativa de textos de ficção produzidos em tempos recentes.

Estudiosos afirmam que foi a partir do século XIX que as cidades passaram a ser representadas com expressividade na literatura. Clara Miguel Asperti Nogueira defendeu tese de doutorado sobre o assunto na Universidade Estadual Paulista (Unesp), e explica que — a partir daquele contexto — o espaço físico da cidade e o viver em metrópole ganham força, sobretudo por causa das transformações econômicas, sociais e as suas inevitáveis consequências. A doutora em Letras cita a Paris de Baudelaire como referência fundamental. “Charles Baudelaire foi certamente um dos escritores do século XIX que mais colaborou para forjar entre seus pares contemporâneos a consciência do novo homem urbano moderno”, diz Clara. A capital francesa iria se tornar símbolo do novo ambiente moderno a partir do modelo de reurbanização conduzido pelo Barão de Haussmann entre 1853 e 1870. O então prefeito Haussmann reinventou Paris: entre outras ações, demoliu 120 mil casas para reerguer outras 320 mil — o que não passou despercebido pela sensibilidade do autor de As flores do mal.

Durante as aulas que ministra no curso de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Rejane C. Rocha costuma comentar que a Paris representada por Baudelaire em sua obra poética e ensaística talvez tenha sido mesmo — graças também aos estudos de Walter Benjamin a respeito da obra do poeta francês — a cidade que de forma mais paradigmática absorveu os paradoxos da representação moderna da cidade. “Isso porque é possível observar na obra baudelairiana um olhar crítico daquele que sabe ser a cidade o repositório de todas as tensões, as novas relações de trabalho, de consumo e de produção, de que a modernidade é portadora e, ao mesmo tempo, a sabe, também, como fonte inesgotável de material poético”, acrescenta Rejane.

Ativar o simbólico

A exemplo do que diz a professora da UFSCar, as urbes são mesmo fontes inesgotáveis para a ficção. E, muitas vezes, espelho. A Paris de Baudelaire tem pontos de contato com a Paris real, da mesma maneira que a Manaus de Milton Hatoum traz ecos da capital do Amazonas, com seus rios, museus e escolas. “Da maior ou menor recorrência aos elementos extra-literários, geográficos, arquitetônicos e históricos, resultam os diferentes graus de semelhança entre o ficcional e o real. Contudo, qualquer leitor de ficção sempre sabe, mesmo que inconscientemente, que ele está diante de uma 'representação' e não da realidade”, observa Rejane, completando que, para que a representação literária funcione, é necessário que o leitor, mesmo sabendo que não está diante do real, porte-se como quem nisso acreditasse.

O Rio de Janeiro de Machado de Assis e de Nelson Rodrigues são precisos. Quem faz a observação é o ex-professor da Universidade de São Paulo (USP) Flávio Aguiar. “Os nomes de ruas, de bairros, de lojas, etc., são muito reais e 'encontráveis' [nas obras de Machado e de Nelson], nem que seja pela pesquisa histórica”, comenta Aguiar. No entanto, pondera o também escritor, atualmente radicado em Berlim, São Paulo em poemas de Mário de Andrade, o Rio de Janeiro em poemas de Drummond, assim como a Curitiba de Dalton adquirem algo de um ambiente meio surreal, indeterminado, completamente abertos à imaginação.

Mais do que — apenas — reproduzir o real, os escritores conseguem, sutilmente, problematizar detalhes que muitas vezes passam despercebidos, por exemplo, em registros oficiais. Luis Alberto Brandão, professor da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), e também ficcionista, tem os olhos bem abertos para essa questão. Ele afirma que toda cidade é composta de várias camadas, desde as mais concretas, como edificações e vias, até as menos palpáveis, mas não menos atuantes, como os sistemas reguladores, as referências simbólicas, o jeito como as pessoas interagem, pensam, sentem. “Toda cidade
cidade
real tem um imaginário próprio, ou seja, um conjunto de valores e de imagens aos quais costuma estar associada. A literatura participa da configuração desse imaginário. E seguramente tem o poder de ativá-lo, problematizá-lo, torná-lo digno de interesse mais amplo, tanto para quem conhece, quanto para quem não conhece a cidade à qual ele se vincula”, raciocina o escritor e professor da UFMG.

Mas, acrescenta Brandão, uma vez que a finalidade elementar da obra literária não é documental, não há exagero em dizer (antes ao contrário, é imprescindível ressaltar) que todas as cidades literárias são inventadas. “É a maneira como ocorre a invenção que lhes concede relevância, independentemente do ponto de partida: se cidades factíveis, ou, pelo contrário, se apenas difusa e tangencialmente semelhantes a cidades reais”, completa.

Mais que geografia, um lugar

O professor da UFMG chama a atenção para o fato de que a cidade não é só — literariamente falando — um lugar, mas uma série dinâmica de relações de todas as ordens: econômicas, políticas, sociais, e também existenciais, simbólicas, perceptivas. “Assim, a literatura não somente representa a cidade, como também incorpora, no trabalho com a linguagem verbal, as características da cultura urbana. Quando observamos, por exemplo, que o regime textual dos escritores modernos se pauta pela fragmentação, pela simultaneidade, pela justaposição de imagens, estamos considerando que suas obras se urbanizaram”, diz Brandão.

Rejane C. Rocha, da UFSCar, dialoga com o colega acadêmico da UFMG e observa que, atualmente, a literatura se apropria das cidades não apenas no que diz respeito a descrição física e espacial. “A ficção contemporânea vai além, problematizando de que forma a grande cidade, considerada, em finais do século de XIX e início do século XX como o repositório dos sonhos de progresso inerentes à Modernidade, tornou-se o ambiente hostil que hoje não oferece nem repouso, nem guarida, nem esperanças aos seus habitantes”, argumenta Rejane, citando Luiz Ruffato, João Gilberto Noll, Bernardo Carvalho, Marcelino Freire e Ferréz como exemplo de autores para quem a urbe é bem mais que ruas, prédios e cores, e sim uma mistura de território, imaginário e o impalpável que somente a ficção dá conta de fruir.

Contraponto

Bem antes da Paris de Baudelaire

Flávio Aguiar, ex-professor da Universidade de São Paulo (USP), atualmente radicado em Berlim, argumenta que as representações literárias de cidade são tão antigas como o ser humano. À pedido da reportagem do Cândido, o também premiado escritor, vencedor três vezes do Prêmio Jabuti da Câmera Brasileira do Livro, uma das quais com o romance Anita (2000), cita algumas das primeiras cidades literárias, de Troia a São Petersburgo, passando por Sodoma e Gomorra.


As cidades se tornaram relevantes desde os primórdios da literatura. Dois exemplos da antiguidade: Troia, dos poemas homéricos, e Jericó, na Bíblia. Em ambos os casos um dos detalhes mais relevantes é a demarcação de uma linha divisória entre a cidade e o “resto” do mundo, que equivale a uma demarcação entre presente e futuro, de um lado, e presente e passado, do outro: nos exemplos citados, uma inovação técnica, militar e política da maior importância, qual seja, muros defensivos.

Os muros de Troia tornavam a cidade praticamente inexpugnável, com a supremacia de seus arqueiros, e a cidade só foi tomada graças a uma astúcia baseada também no excesso de confiança dos seus habitantes, o cavalo de madeira com os inimigos em seu “ventre”.

Embora os poemas de Homero sejam de glorificação aos gregos piratas e rapineiros, não há como esconder que o futuro da humanidade jaz em Troia, com seu herói sacrificial, Heitor. Ele defende a sua terra, a sua “pátria”, a sua cidade, a sua família, o seu povo. A glória fica com os aqueus e com Aquiles; a admiração, com Heitor e seus valores.

Na Bíblia, há cidades anteriores a Jericó, que aparece no livro de Josué. Caim é o fundador da primeira cidade, a que dá o nome do filho, Enoque. Babel, além da torre, era também uma cidade, assim como Sodoma e Gomorra também o eram. Mas Jericó é a primeira cidade que aparece como um obstáculo real à marcha “do povo eleito”. E, como Troia, graças a seus muros, que precisaram de um verdadeiro “milagre” para caírem: o sopro das trombetas e a gritaria do povo invasor. Pode-se dizer que Jericó “caiu no grito”. Em seguida, ocorre o primeiro massacre militar bíblico descrito em detalhe, pois todos os seres vivos são passados no fio da espada, crianças, velhos, mulheres, homens e animais. Há uma única exceção: a prostituta Rahab ou Raabe, que escondeu espias hebreus enviados por Josué para estudarem a cidade, com seus familiares. Rahab é assim a primeira personagem genuinamente “urbana” do Velho Testamento. Para se salvar, ela colocou, por sugestão dos espias, um lenço vermelho na entrada de sua casa, e diz a lenda que essa é a origem de até hoje, em muitos lugares, inclusive no Brasil, luzes coloridas na fachada identificarem os bordéis.

Na literatura contemporânea, o espaço urbano é associado, muitas vezes, a uma ideia de “metrópole”, uma espécie de labirinto onde as identidades se perdem e se confundem. Consta que a primeira cidade a aparecer com toda a força dessa característica algo opressiva foi a São Petersburgo de Crime e castigo, de Dostoiévski.