Especial Capa: Grande sertão alemão


O alemão Berthold Zilly fala sobre sua tradução de Grande sertão: veredas e a recepção da literatura brasileira em seu país


Luiz Rebinski Junior


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Desde que traduziu Os sertões para o alemão, em 1994, Berthold Zilly tornou-se uma espécie de embaixador da literatura brasileira em seu país. Sua versão para o épico de Euclides da Cunha, Krieg im Sertão (Guerra no sertão), lhe deu escopo para encarar uma empreitada ainda mais desafiadora: traduzir Grande sertão: veredas, a obra-prima e experimental de João Guimarães Rosa. Há um ano, Zilly concilia o trabalho de tradutor com as aulas na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), o que o professor considera uma feliz coincidência. “Posso estudar, entre outros assuntos, Guimarães Rosa como professor e como tradutor”, diz Zilly em entrevista ao Cândido. Além de Os sertões, o tradutor já verteu para o alemão clássicos como Lavoura arcaica, de Raduan Nassar, Memorial de Aires, de Machado de Assis, e Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto. Mas foi a tradução de Os sertões, segundo Zilly, que levou a editora Hanser a convidá-lo para o trabalho atual, que deve ser entregue em 2015. Nesta entrevista, Zilly diz por que o livro de Guimarães Rosa, traduzido em seu país pela primeira vez em 1964, por Curt Meyer-Clason, merece uma segunda tradução e como a literatura brasileira é vista em seu país.

A primeira palavra de Grande sertão: veredas é “nonada”, um termo que tem um significado enigmático na boca de Riobaldo. O senhor poderia explicar como verterá ao alemão esse tipo de palavra, que, ao longo das mais de seiscentas páginas do livro, se prolifera?
“Nonada” realmente é uma palavra-chave, com seis ocorrências no total em Grande sertão: veredas, a primeira abrindo o romance e a última, de certa maneira, fechando-o, já que ocorre na penúltima linha da última página. Esta palavra constitui, além disso, o antônimo ao último sinal gráfico do livro, que é o símbolo do infinito. Assim, o movimento da trama e das ideias de certa maneira vai do quase nada ao infinito. Assim como muitas outras palavras e frases do livro, esta é por um lado coloquial e quase banal, tão banal quanto o sentido dela, ou seja: “coisa sem importância, um quase nada”, sendo por outro lado palavra estranha, rara, enigmática, principalmente no início, sendo esclarecida depois, parcialmente, pelo contexto. Esta tensão entre o corriqueiro, o popular, o cotidiano por um lado e o estranho, o enigmático, o hermético, por outro lado, é também uma característica do romance todo. Aliás, diferentemente de muitas outras palavras do livro, esta não é um neologismo rosiano, pois é uma palavra popular e meio antiquada, caída em desuso hoje, que se encontra em vários autores do século XIX e do início do século XX, inclusive em Os sertões, de Euclides da Cunha. Como vou traduzi-la? Ainda não sei, estou procurando uma expressão mais ou menos equivalente que também seja curta e concisa, popular, meio datada, e que tenha, no plano sonoro, pelo menos um elemento repetitivo, já que “nonada” tem até dois fonemas repetidos, o “n” e o “a”. Infelizmente, em alemão não temos uma palavra equivalente em termos semânticos, estilísticos e fonéticos, diferentemente do italiano, que tem “nonnulla”, ou o francês, que tem “que nenni”, e também não posso fazer o que fizeram os tradutores para o espanhol, que simplesmente mantêm “nonada”, que é neologismo em espanhol, mas que funciona nesse idioma, já que tem aí uma qualidade auto-explicativa. Em quatro das seis ocorrências, a palavra “nonada” constitui uma frase, o que não facilita a tarefa do tradutor. Estou cogitando diversas soluções, mas nenhuma me agrada muito. Antes de tomar uma decisão sobre a tradução desta palavra introdutória do livro todo, tenho que ver como os possíveis equivalentes funcionam nas outras cinco ocorrências de “nonada”. Pois quando a gente traduz uma palavra-chave com várias ocorrências, a gente deve tentar manter essa isotopia, ou seja, a igualdade do meio expressivo em todas as suas ocorrências, para que ele possa ser identificado pelo leitor do texto-alvo como elemento estruturador e orientador, função que tem no texto de partida e que o tradutor precisa respeitar. Em outras palavras: é desejável traduzir “nonada”, nas suas seis ocorrências, sempre de modo idêntico.

O senhor já traduziu outro clássico de nossa literatura, Os sertões, de Euclides da Cunha. Apesar de ter um grau de complexidade imenso, não é um livro de linguagem, como Grande sertão: veredas. Em que sentido a tradução de Os sertões lhe ajudou em seus trabalhos como tradutor da língua portuguesa, mais especificamente na tradução de Grande sertão: veredas?
Os dois livros têm qualidades comparáveis, são obras canônicas da literatura brasileira, com um significado e um impacto que vão muito além da área literária e estética. São grandes interpretações do Brasil, com enorme influência nas mais diversas áreas da sociedade: geografia, história, política, educação, pensamento social, direito, psicologia social, fundamentais para a autoimagem dos brasileiros e para a sua imagem no exterior. São obras, além disso, apaixonantes, controvertidas inicialmente, mas que logo se tornaram livros cult, que, junto com os seus autores, são objetos de uma veneração que tem aspectos quase religiosos, os leitores formando uma espécie de confraria. Não há outros grandes autores brasileiros com o mesmo poder emocionante e apaixonante, nem Machado de Assis, nem Clarice Lispector ou Drummond. Existe uma certa filiação entre os dois livros, pois, como já insinua o título da obra central de Guimarães Rosa, ela está baseada na leitura de Os sertões. Se a editora Hanser me escolheu como tradutor do Grande sertão: veredas, creio que o fez porque já traduzi a obra que inspirou este livro, que é Os sertões. Embora o sertão da Bahia não seja igual ao sertão do norte de Minas Gerais, sendo este menos seco do que aquele, há muitos elementos em comum, tanto na paisagem, como na organização da sociedade, na cultural material, mental e espiritual, a chamada civilização do couro: a fauna e flora adaptada ao clima árido, a luta do homem com a natureza adversa, a relação especial do sertanejo com o gado, o coronelismo, o cangaço e a jagunçagem, a onipresença da violência, a ausência da justiça e do Estado em geral, a intensa religiosidade popular.

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Quando o senhor começou a tradução de Grande sertão: veredas, em que estágio ela se encontra hoje e quando pretende terminá-la?

Comecei em 2011, mais ou menos simultaneamente com a minha atividade como professor visitante na Universidade Federal de Santa Catarina. É uma feliz coincidência, posso estudar, entre outros assuntos, Guimarães Rosa como professor e como tradutor. Faz parte desta fase de pesquisa um trabalho tradutório que consiste na elaboração de três, quatro, cinco ou mais variantes em alemão, de cada frase. Espero poder terminar esta fase de experimentação até final de 2013. Depois, vai começar a fase mais difícil, que vai me exigir uma dedicação total, ou seja, examinar todas essas versões no seu conjunto, ensaiando novas variantes e versões, lê-las a voz alta para experimentar o seu efeito sonoro, para finalmente tomar uma decisão sobre cada palavra, cada oração, cada período, cada parágrafo, o livro todo. Espero que a tradução do Grande sertão: veredas fique pronta em 2015.

Como foi a receptividade da tradução de Os sertões entre os leitores e críticos de seu país?
A recepção de Krieg im sertão (‘Guerra no sertão’), publicada em 1994, foi fantástica, o livro foi um sucesso de crítica, nem tanto de venda, pois a primeira edição, de capa dura, custava 100 marcos (50 euros), mas em 2000 saiu uma edição de bolso, bem barata, que custava apenas 15 euros. Ambas as edições estão esgotadas faz muitos anos, mas em 2013, por ocasião da Feira do Livro de Frankfurt, em que o Brasil será o convidado de honra, sairá uma nova edição que, espero, seja financeiramente acessível para um grande público. Saíram muitíssimas resenhas em jornais e revistas da Alemanha, Suíça e Áustria, até na rádio e televisão, e fui convidado para numerosas leituras públicas, pois isto é um hábito e uma tradição na Alemanha: leituras públicas de livros literários, incluindo debate com o público, em casas da cultura, livrarias, universidades. O que ajudou um pouco a recepção foi o romance de Vargas Llosa, La guerra del fin del mundo, publicado em 1982, em língua alemã, e que criou, junto com a propaganda em favor de Euclides da Cunha por parte de Vargas Llosa, que é muito conhecido na Alemanha, um clima de expectativa propício para Os sertões. Os melhores críticos saudaram Krieg im Sertão como uma grande interpretação do Brasil, uma grande obra histórica, antropológica, como denúncia das tendências bárbaras da própria civilização, e como grande obra literária, apesar de criticarem também elementos do pensamento racista em Euclides, típico na época, por volta de 1900, no mundo inteiro.

Outro traço peculiar da literatura de Guimarães Rosa é o aspecto visual das cenas que o escritor descreve. Como sua tradução pretende deixar “visível” o cenário rosiano a um alemão que nunca viu o sertão? Há uma paisagem na Alemanha que se aproxime de nossa caatinga?
Não há paisagem parecida na Alemanha, mas muitos leitores terão visto filmes sobre o sertão, de Glauber Rocha, de Nelson Pereira dos Santos, de Ruy Guerra, de Walter Salles, de Karim Aïnouz e outros, ou reportagens na televisão, ou lido artigos com fotos em jornais e revistas, e terão lido outros livros, como os mencionados, de Euclides da Cunha e Vargas Llosa, ou de Graciliano Ramos, em alemão. Hoje, o sertão pertence às paisagens da literatura universal, como a Normandia, a Bretanha, o Vale do Reno, a Toscana, o Peloponeso, as montanhas da Escócia, La Mancha, a Toscana, o Pampa, o Faroeste, as grandes cidades do mundo. Isto facilita a recepção do Grande sertão: veredas. Além disso, existe a internet, onde qualquer leitor pode se informar, inclusive através de fotos e filmes, para ter uma ideia plástica e viva do sertão, de cem anos atrás e de hoje. E precisamos confiar também no poder evocador e imagético do autor e do seu aliado, o tradutor.

Além da questão linguística, Grande sertão: veredas é, também, quase um western, com infindáveis cenas de batalhas entre grupos de jagunços, que ajudam a dar ritmo ao romance. Ou seja, é um livro de “linguagem”, mas que não abdica de contar boas histórias. Para o senhor, essa fu
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são, feita com precisão, é o que faz de Grande sertão um grande romance?
Grande sertão: veredas tem realmente muitos aspectos e muitas qualidades, é um romance de amor, de relações de gênero, também um romance confessional, quase “terapêutico” ou psicanalítico, e pode ser lido também como romance de aventura e até de guerra, cheio de escaramuças e batalhas entre pequenos exércitos irregulares e até regulares, pois a polícia e as forças armadas também participam das intermináveis correrias e lutas no sertão. Essas ações têm um alto valor de entretenimento, têm suspense, permitem identificação, simpatia, antipatia, rejeição com respeito a certos personagens. Também tem o lado ético, é uma luta entre as forças do bem e do mal, uma busca permanente de paz e justiça, contra as forças destrutivas dentro do homem e entre os homens. Pode-se fazer uma leitura de faroeste, pois tem muitos elementos em comum, uma sociedade basicamente masculina e machista, de homens que vivem cavalgando pela vastidão das paisagens mais ou menos inóspitas, longe das grandes cidades e do litoral, terras parecidas com as savanas e pradarias. Mas, em termos sociais e psicológicos, sem falar das qualidades estéticas, o romance rosiano é muito mais sofisticado, pois mostra que o bem e o mal estão intimamente ligados, e que um pode se transformar no outro e vice-versa, sem que se apregoe um relativismo ético. Pois a procura do bem, da justiça e da paz é um fio condutor, uma constante pergunta, sem resposta, solução ou receita definitiva. Suponho e espero que os leitores da futura tradução deem prioridade para dois tipos de interpretação: uma mais bem antropológica e política, vendo no sertão uma região que tem aspectos de um Estado falido, sem instituições capazes de satisfazer as necessidades básicas da população em termos de segurança, moradia, alimentação, justiça, educação, saúde, pois é dominada pela violência dos mais fortes ou mais astutos, dos mais poderosos, mais violentos e mais traiçoeiros. E nesse cosmos regional, que reflete situações frequentíssimas na história e também no mundo de hoje, surgem de vez em quando personalidades “civilizadoras” querendo impor a ordem, a paz, a justiça, alguma cultura, sabedoria: Medeiro Vaz, Zé Bebelo, Joca Ramiro, o próprio Riobaldo, o governo anônimo, Diadorim, de certa forma, o compadre Quelemém, este uma autoridade puramente espiritual. Todos falham, pelas mais diversas razões, por falhas próprias ou estruturais e institucionais, ou metafísicas, depende muito da interpretação, mas falham de uma maneira muito elucidativa e emocionante. E naturalmente, haverá muita curiosidade em conhecer as muito elogiadas qualidades estéticas do livro, de modo que o tradutor tem que se esforçar por fazer jus a elas. De qualquer forma, entre leitores e críticos que têm noções de literatura latinoamericana, e entre os especialistas das culturas do subcontinente, sejam leitores cultos, jornalistas ou professores universitários, há unanimidade de que Grande sertão: veredas é uma obra-prima da literatura universal, de modo que existe grande interesse por esse romance.

Que tipo de leitor, em seu país, pode se interessar por Grande sertão: veredas, um livro considerado “difícil”?
Os leitores devem ser estudantes universitários e sobretudo pessoas que gostam da boa literatura, esteticamente exigente e antropologicamente interessante, com alguma qualidade de entretenimento. Serão os leitores da editora Hanser, que vem publicando toda uma série de novas traduções de obras clássicas da literatura universal, como por exemplo a Ilíada, Dom Quixote, O vermelho e o negro, Madame Bovary, Moby Dick, Anna Karenina, Guerra e paz. Este é o contexto de recepção em que será lida a futura tradução alemã de Grande sertão: veredas.

O senhor conhece a literatura brasileira contemporânea? Gostaria de traduzir algum outro autor, que ainda esteja em atividade?
Simplesmente me falta tempo para ler muitos livros recém-publicados das literaturas brasileira e alemã, para nem falar de outras literaturas, de modo que os meus conhecimentos são ecléticos e não permitem um juízo. Conheço melhor a literatura até os anos 1970 e 1980. Até 2015 estarei ocupado com Guimarães Rosa, de modo que a questão de fazer outra tradução não se coloca. Talvez depois, eu me dedique mais ao ensaísmo e à crítica literária. E há muitos clássicos brasileiros e outros latino-americanos que mereceriam uma tradução, o que não quer dizer que eu seja tradutor deles, mas tem alguns nomes, que de vez em quando me passam pela cabeça: Manuel Antônio de Almeida, Lucio Mansilla (autor argentino), Machado de Assis (algumas crônicas e contos, o romance Esaú e Jacó), Euclides da Cunha (os ensaios amazônicos), Lima Barreto (Recordações do escrivão Isaías Caminha), os três Andrades (Oswald, Mário e Carlos Drummond), Pagu (Parque industrial), Jorge de Lima, José Lins do Rego, também alguns clássicos traduzidos mereceriam uma revisão: Machado, Graciliano, Gilberto Freyre. E um clássico português: Arte de furtar, de autor anônimo do século XVII, talvez uma ou outra coisa de Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, que também admiro. Mas é coisa ingrata procurar editora para um livro que a gente ama e gostaria de traduzir ou de ver traduzido. Em geral, as editoras te tratam como um pedinte, e não reconhecem que você está prestando um favor a eles. Já cansei um pouco de procurar editora para os meus textos favoritos. Um autor vivo do qual gostaria de traduzir outros textos é Raduan Nassar, que infelizmente não escreve mais, há décadas, mas pelo qual tenho a maior admiração. Ainda tem alguns contos dele não traduzidos, se eu encontrasse uma editora, eu gostaria de assumir essa tarefa.