Especial Capa: Entrevista Affonso Romano de Sant’Anna

“O cronista olha pelo buraco da fechadura”


O intelectual mineiro diz que hoje muitos textos que são lidos como “crônica”, na realidade, não passam de comentários, colunas ou artigos

Marcio Renato dos Santos


affonso
Com a propriedade de quem tem quase 50 anos como cronista, Affonso Romano de Sant'Anna chama a atenção para um fato, um tanto crônico: “A universidade brasileira precisa descobrir a crônica”. Afinal, alega o poeta, ensaísta e também cronista, “o que existe teoricamente sobre crônica ainda é muito precário”. O mineiro de 75 anos atualmente escreve nos jornais Estado de Minas e Correio Braziliense. Também é possível lê-lo no Facebook e nas páginas do recém-lançado Como andar no labirinto, livro que reúne 65 de suas crônicas.

Ao lado de Chico Buarque,
no desfile da Escola de Samba Mangueira,
campeã em 1987 com o enredo
“O Reino das Palavras,
Carlos Drummond de Andrade”.

Nesta entrevista exclusiva ao Cândido, Sant'Anna — que substituiu Carlos Drummond de Andrade como cronista no Jornal do Brasil, durante a década de 1980 — faz questão de diferenciar o cronista do comentarista, do articulista e do colunista. “Não se deve confundir a crônica com blá-blá-blá. A boa crônica tem que ser uma coisa redonda. Há cronistas que contam experiências pessoais, outros que contam piada, outros estorietas, outros fazem devaneios literários e há quem se meta em diatribes políticas”, afirma o intelectual que esteve à frente da Fundação Biblioteca Nacional entre 1990 e 1996.

O cronista, na opinião de Sant'Anna, precisa ter responsabilidade sobre o que escreve porque a crônica — enfatiza — interfere na realidade. “A crônica [que escrevi] sobre Tim Lopes levou várias pessoas a pararem de consumir drogas e um editor pediu que eu selecionasse textos só sobre violência para o volume Nós, os que matamos Tim Lopes”, conta, completando que qualquer assunto pode entrar na crônica: “É como no romance, no conto ou no poema. Qualquer assunto pode virar romance, conto ou poema.”

Sant'Anna também recupera episódios de sua atividade de cronista, inclusive o convívio com Rubem Braga e Fernando Sabino. Com faro apurado de cronista, conta como se deram as demissões de cronistas célebres como Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, dele próprio e de sua esposa, Marina Colasanti.

O que é a crônica?
No livro A vida por viver faço uma coisa temerária, mas necessária: três crônicas sob o título “Teoria da crônica”. Crônica, metacrônica. Não sou um escritor ingênuo. Tento entender o que faço, porque faço e como faço. Portanto, raciocino sobre esse métier. O que existe teoricamente sobre crônica ainda é muito precário. A universidade precisa descobrir a crônica. Não é um simples blá-blá-blá como supõem alguns. O cronista é um jornalista a quem é permitido falar na primeira pessoa, mas seu “eu”, como na boa poesia, tem que ser de utilidade pública. Sinteticamente, diria que o cronista difere do “colunista”, do “articulista” e do “comentarista”. Tecnicamente, o cronista é metonímico: através de um detalhe ele fala do todo. O jornal noticia, o cronista interpreta o fato afetivamente e alegoricamente. O cronista olha pelo buraco da fechadura.

A crônica é um gênero tipicamente brasileiro?
Volta e meia se afirma isso. Mas tenho topado com cronistas em jornais estrangeiros. E no Brasil criou-se uma coisa curiosa: muitos escritores entregaram-se à crônica, de Machado de Assis aos nossos dias. Poderia dar dezenas de exemplos. Mas pensando no caso brasileiro, sinto que é necessário perceber uma certa diferenciação. Há escritores que escrevem crônicas, mas nem todo escritor é um (bom) cronista. E há escritores essencialmente cronistas, como Rubem Braga. Ele é o inventor da crônica moderna, da mesma maneira que Nelson Rodrigues inventou um tipo desconcertante de crônica de futebol. Há aqueles, como Fernando Sabino, que foram devorados pela crônica. E há autores interessantes que têm que ser revisitados, como Anibal Machado, que transitaram entre a poesia e a prosa, que valorizaram o fragmento, antes que isto virasse assunto universitário. E no caso do fragmento, veja Clarice Lispector: o que ela chamava de “crônicas” são possíveis trechos/fragmentos de seus romances. Portanto, é necessário estabelecer uma categorização, uma tipologia da crônica, mostrando onde ela se mistura e ao mesmo tempo deixa de ser comentário, artigo ou coisa de colunista.

Do catupiry da coxinha ao escândalo de Brasília, das lindas pernas da morena de Ipanema aos deslizes do Prêmio Jabuti, enfim: tudo cabe na crônica? Ou a crônica tem limites?
É como no romance, no conto ou no poema. Qualquer assunto pode virar romance, conto ou poema. Na crônica, até a falta de assunto pode virar assunto de crônica — até hoje escapei disto. Isto dá até uma tese. Quando você elege um cronista, você elege um “ olhar”, um modo de ver o mundo. Mas não é só isto. Já que o “estilo é o homem (ou mulher)”, esse modo de ver é também um estilo, uma maneira de escrever a vida.

Machado de Assis, João do Rio, Rubem Braga, Antônio Maria e Fernando Sabino, entre outros fazem parte do cânone da crônica no Brasil? Aliás, temos um cânone nesse gênero?
Olha, estou tentando escrever um texto-depoimento sobre crônica para uma coleção que o José Castilho, da Universidade Estadual Paulista (UNESP), vai lançar, intitulada generosamente “Coleção ARS”. Já escrevi um ensaio sobre meu trajeto nesses mais de 50 anos de poesia, outro ensaio sobre minha experiência na crítica/ensaios e preparo agora esse sobre minha experiência na crônica. Conto casos concretos de recepção de certas crônicas, tento entender esse gênero. Ou seja, o que era a crônica quando entrei nessa área e o que é, ou não é, hoje. Fui e sou leitor daqueles cronistas a que se referiu. E de outros. O que acho é que hoje está havendo uma confusão, uma perversão em torno da crônica. Volto a insistir na diferenciação entre “comentarista”, “articulista”, “colunista” e “cronista”. A Folha de S.Paulo informa que tem mais de cem “colaboradores” nessa área. Os outros jornais seguem por aí. O fato de a crônica estar modernamente ligada à história do jornal é interessante. Por exemplo: quando, nos anos 1960, pesquisei Drummond e o grupo de escritores mineiros que escreveram no Diário de Minas entre 1920 e 1930, notei que eles apareciam na seção “Sociais”. Era como se fosse a hora do recreio dentro do jornal e ali apareciam poemas, crônicas, etc. Um Antônio Maria que tinha em O Globo antigo a seção “Mesa de Pista” vem dessa tradição. Crônica era a hora do devaneio literário.

Quem são os seus cronistas favoritos?

Volto a dizer que não se deve confundir a crônica com blá-blá-blá. A boa crônica tem que ser uma coisa redonda. Há cronistas que contam experiências pessoais, outros que contam piada, outros estorietas, outros fazem devaneios literários e há quem se meta em diatribes políticas. Tendo não ser monocórdio, variar sempre, porque você escreve para um público muito variado. A crônica é coisa de muita responsabilidade. Você modifica a vida de uma pessoa com uma frase. Uma leitora me mandou um e-mail dizendo que se mudou para Europa há 20 anos, depois que leu “A Mulher Madura”, porque lá eu dizia que a mulher madura estava pronta para ir à Grécia ou assentar-se numa praça de Siena. Toda semana, há quase 3o anos, recebo recados de pessoas que se comovem com “Antes que elas cresçam”. Esse texto já foi lido em casamentos, batizados e até no nascimento de filho de Luciano Hulk e Angélica.

Como definir o cronista Affonso Romano de Sant'Anna?

Sendo um escritor crônico, estou preso ao meu tempo: é daí que parte minha perplexidade diante da história e do cosmos. Literatura é uma forma de transcendência. E o cronista que não transcende o seu eu e o instante será relegado à peça arqueológica. Tenho a noção de que minha obra de poeta-cronista-ensaísta está entrelaçada. Algumas de minhas crônicas foram chamadas de “poemas”, como o caso do texto que escrevi para Hélio Pellegrino quando soube de sua morte — “O telefone e o amigo morto”. Estava no meu escritório, Rubem Braga me telefonou dando a notícia. Eu ia começar outra crônica para a qual me preparei, mas diante daquele fato, o que fazer? Respirei fundo, e fiz uma crônica, que Fernando Sabino chamava de poema. Mais tarde a publiquei como poesia, pois o tônus dela era realmente poético. Algumas crônicas, no entanto, tinham um endereçamento político. A crônica sobre Tim Lopes levou várias pessoas a pararem de consumir drogas e um editor pediu que eu selecionasse textos só sobre violência para o volume Nós, os que matamos Tim Lopes. A crônica sobre seguros de saúde fez o Bradesco pagar os atrasados com as casas de saúde do Rio. A crônica “A mulher madura” ganhou espaço em rádio e televisão, e circula até hoje na internet. Atualmente, estou fazendo duas experiências ou metido em dois desafios. Na Rádio Metrópole de Salvador, faço um comentário semanal. É uma crônica radiofônica, onde o texto está ligado à minha voz. Outra é o “Quase-diário”, que venho publicando no jornal Rascunho. Neste caso, seleciono anotações antigas, tópicos e casos que vivenciei entre artistas.

Pode falar sobre o seu percurso de cronista na imprensa brasileira?
Comecei com 17 anos, meu primeiro texto em jornal foi uma crônica, horrível, claro, só publicada por motivos que nem sei explicar. Guardei esse e outros textos para exercitar a humildade. Como eu era ruim! Os que me acham ruim hoje não podem ter ideia como já fui pior. Depois publiquei no Diário da Tarde, de Belo Horizonte, em uma seção chamada “Revezamento”, que dava espaço aos jovens. Em seguida, na revista Três Tempos, onde também escreviam o Fernando Gabeira, o Ivan Ângelo e o Roberto Drummond. Atuei na IstoÉ, depois na Manchete, onde fiquei poucos meses e para substituir o Carlos Drummond de Andrade no Jornal Brasil. Fiquei no JB até 1988 e fui para O Globo, a convite do próprio Roberto Marinho. O esporte dele era tirar colaboradores do Jornal do Brasil. Ele tinha tirado de lá o Chico Caruso, logo após fui eu e depois o Zózimo. Permaneci em O Globo por 17 anos, até ser demitido em 2006, sob a alegação de que o jornal estava em dificuldades financeiras. Fiquei, no entanto, muito feliz porque com minha saída o jornal recuperou-se financeiramente. Um capítulo interessante na história da crônica e dos cronistas é a demissão. Clarice Lispector, por exemplo, foi demitida do JB sumariamente. Ela recebeu de volta a sua última crônica. O Drummond foi dispensado da Folha de S.Paulo, segundo ele me disse, porque o jornal achava que seu texto era velho. Era a época que se pregava que não se devia acreditar em quem tinha mais de 30 anos. Seria interessante ver as estórias de Rubem com Assis Chateaubriand e os Bloch. E, no plano doméstico, Marina Colasanti [com quem Sant'Anna é casado], cuja colaboração na revista Nova havia elevado a tiragem da revista a recordes históricos, foi também sumariamente demitida sob a alegação de dificuldades financeiras da Abril. Quer dizer, a Abril e o sistema Globo nos devem a vida.

Qual a sua relação com a crônica? Necessidade escrever esse tipo de texto? É um hábito? Fonte de renda?
A crônica se transformou, para mim, num modo necessário de expressão. Da mesma maneira que alguém diz: isto daria um filme, uma música, aprendi desentranhar a crônica do cotidiano. Virou vício, segunda natureza. Descobri o que eu pensava sobre certas coisas por causa da crônica que tinha que escrever. Nesse sentido, ela enriquece a minha vida, antes de tudo. E, claro, o contato com o leitor é realimentador, gratificante. Enquanto você leva anos para publicar um livro de poemas ou ficção, a crônica bate-pronto e a resposta do leitor é imediata. É também um execício de escrita. Financeiramente ajuda. Na verdade, o público da crônica não é necessariamente público de literatura. É o publico de jornal e revista. Muitos leitores te descobrem por acaso nas revistas de consultório. A crônica vai até eles, atrás deles. É uma literatura volante.

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Com formação acadêmica, incluindo experiência como professor universitário, Affonso Romano de Sant’Anna tem repertório e feeling. No Rio, onde mora, enxerga muito além do Corcovado e do cartão postal.


O senhor substituiu o Drummond no JB? Poderia comentar como foi esse episódio?
Para mim, foi uma surpresa. Acho que foi consequência dos artigos/ensaios/crônicas/poemas que eu publicava no JB e que o Paulo Rocco pediu para reunir em Politica e paixão. Curioso é que o Drummond não teve qualquer participação na minha escolha pelo jornal. Foi deliberação da direção. Desde logo percebi que não se tratava de “substituir” o outro. Cada um tem seu ponto de vista, escritor não é peça de automóvel que se substitui. E a rigor eu achava que Drummond não usava seu espaço com a força que tinha. Durante a ditadura, ele ficava numa conversa de meio tom, numa desconversa mineira. Vou até lhe fazer uma revelação: a ditadura estava comendo solta e ele naquele tom neutro. Um dia, não sendo cronista de jornal algum, fiquei tão furioso que sentei e escrevi uma crônica, a crônica que gostaria de ler no jornal. Guardei essa crônica vários anos. Quando aconteceu de me chamarem, a publiquei — trata-se do texto “Da minha janela vejo”. Era o que eu via de minha janela frente à favela: três pontos de vista: eu vendo o marginal limpando seu revólver se preparando para o assalto, o policial passivamente dando a ronda rotineira e eu o futuro assaltado pré/vivendo a cena. Quando comecei a escrever no JB, trouxe a questão da violência cotidiana para a crônica. O Rio já não era mais “o barquinho vai, o barquinho vem”, não era mais bossa-nova, nem o Rio lírico de Rubem Branca, nem bastava os caso engraçados de Fernando Sabino. A cidade (o Brasil) perdeu sua ingenuidade. E o cronista tinha que dar conta disto, embora falasse às vezes de amenidades.