Especial Capa: Diálogo Permanente

Um Diálogo Permanente


O cinema nacional sempre trabalhou com transposições literárias, e muitas delas já fazem parte do imaginário popular. Mas quais os filmes baseados em livros que realmente integram o nosso cânone cinematográfico?


Omar Godoy



Um diálogo permanente Ilustração








Ilustrações: Rômolo

De clássicos como Vidas Secas ao soft porn de Bruna Surfistinha, passando por sucessos de bilheteria do calibre de Dona Flor e seus dois maridos, Cidade de Deus e até Tropa de Elite, o cinema nacional sempre utilizou a literatura (boa ou ruim) como matéria prima. Mais do que isso: ao se elencar os títulos que fazem parte do imaginário popular, chama a atenção o grande volume de adaptações literárias presentes na lista. Mas quantos livros brasileiros realmente foram convertidos em filmes que podem ser considerados obras de arte?

Antes de tentar responder, é interessante identificar alguns momentos históricos em que o diálogo entre o cinema e a literatura foi mais intenso por aqui. Não se sabe ao certo qual o primeiro livro brasileiro transportado para as telas, mas é possível afirmar que as adaptações literárias se tornaram uma tendência durante a Primeira Guerra Mundial, quando os estúdios estrangeiros interromperam seus trabalhos e produtores nacionais viram uma oportunidade de aumentar sua ocupação nas salas do país. Para atender essa nova demanda por roteiros, apostou-se em livros como O Guarani (que já havia inspirado um curta-metragem em 1908), Inocência, A Moreninha e Iracema – alguns deles dirigidos pelo italiano Vittorio Capellaro, importante pioneiro do cinema nacional.

Outro período expressivo foi a década 1960, em que praticamente todos os cineastas ligados ao movimento do Cinema Novo realizaram transposições literárias. Exemplos não faltam: Vidas Secas (Nelson Pereira dos Santos), A Hora e vez de Augusto Matraga (Roberto Santos), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade), Ganga Zumba (Cacá Diegues), etc. Mesmo Glauber Rocha nunca escondeu a influência da literatura de cordel e de autores como Euclides da Cunha, José Lins do Rego e Guimarães Rosa em seus trabalhos.

Nelson Pereira dos Santos justificava esse interesse pela literatura dizendo que, na falta de uma tradição de filmes dedicados à reflexão sobre temas sociais, os cineastas acabavam recorrendo aos livros. Há quem diga, também, que o expediente de adaptar grandes escritores brasileiros era uma forma de garantir certa respeitabilidade perante os generais que comandavam o país durante a ditadura. Seja como for, a relação entre as letras e o audiovisual se tornou permanente a partir daí, e ganhou ainda mais força na fase de retomada do cinema nacional.

Estima-se que, entre 1995 e 2005, quase 40% dos títulos lançados tiveram matriz literária. Entre eles Cidade Deus (Fernando Meirelles), Carandiru (Hector Babenco), Tieta do agreste (Cacá Diegues), O que é isso companheiro? (Bruno Barreto), Policarpo Quaresma (Paulo Thiago), Bicho de Sete Cabeças (Laís Bodansky), O Xangô de Baker Street (Miguel Faria Jr.), Lavoura Arcaica (Luiz Fernando Carvalho), Bufo & Spalanzanni (Flávio Tambellini) e O Invasor (Beto Brant).

Como na década de 1910, havia oportunidades e recursos (neste caso, via leis de incentivo) para produzir – mas poucos roteiristas profissionais ou ideias originais. Some-se a isso a necessidade de um resgate cultural, após anos sem títulos brasileiros na telas, e talvez tenhamos uma explicação para a grande quantidade de adaptações realizadas no período.


Olhar através do livro

Para responder à pergunta de abertura, um tanto quanto subjetiva, a reportagem do Cândido procurou especialistas de diferentes áreas do cinema. O professor e pesquisador José Gatti, por exemplo, acredita que, apesar de o Brasil ter produzido muitos filmes baseados em livros, poucos deles realmente fazem parte de nosso cânone cinematográfico. “Muitas adaptações se prendem a um modelo de cinema realista e de narrativa clássica. Ou seja, limitam-se a contar a historinha em si, quando o mais importante é buscar o geist, o espírito do texto original”, afirma Gatti, membro da associação internacional Society for Cinema and Media Studies (SCMS) e um dos fundadores da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine).

O autor, consultor e professor de roteiros Di Moretti faz questão de discernir quantidade de qualidade. “Se o parâmetro da discussão for os filmes que ‘aconteceram’, que levaram público aos cinemas, aí, sim, a gente pode dizer que temos grandes adaptações literárias”, diz o roteirista, conhecido por trabalhos como Latitude Zero e Nossa vida não cabe num Opala (ambos baseados em textos de Fernando Bonassi e Mario Bortolotto, respectivamente).

Gatti destaca dois títulos bem-sucedidos em sua missão de transmutar a literatura em uma obra-prima audiovisual: Macunaíma (“por captar o lado malandro, nonsense e surreal do Brasil”) e Vidas Secas (“que traduz perfeitamente o sofrimento dos retirantes nordestinos”). Este último também é citado por Moretti. “O Nelson Pereira dos Santos soube olhar através do livro. Usou o roteiro, a fotografia e o próprio trabalho de direção para transmitir a essência do texto”, explica.

Moretti ainda fala sobre Lavoura Arcaica, que simplesmente não tem roteiro. “O diretor não trabalhou com esse filtro. Apenas deu um exemplar do livro do Raduan Nassar para cada integrante da equipe. É impressionante como o espectador consegue entrar de cabeça naquele universo”, diz.

Para ele, um dos segredos da boa adaptação é administrar (e muitas vezes reduzir) o elenco de personagens
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da obra original. “O Bráulio Mantovani realizou uma missão dificílima em Cidade de Deus, com todos aqueles personagens e universos diferentes. Já o resultado do Carandiru, que tem o Bonassi como um dos roteiristas, não é tão bom. São 17 personagens, exatamente como no livro, e o público não se identifica com nenhum deles”.

Com a autoridade de quem já adaptou Cidade de Deus (Paulo Lins), O Jardineiro Fiel (John Le Carré) e Ensaio sobre a cegueira (José Saramago), o cineasta Fernando Meirelles surpreende ao eleger um único filme, e ainda por cima inédito no circuito comercial: A Hora e a vez de Augusto Matraga, do diretor Vinicius Coimbra, inspirado no clássico de Guimarães Rosa (já levado para a tela por Roberto Santos em 1966). “É uma versão belíssima, com um ótimo trabalho do ator João Miguel. Deve estrear em breve. Cinema precisa de ação, enquanto a literatura pode ser mais introspectiva. Muitas adaptações mostram personagens pensando, como em um livro, e isso é sempre desastroso”, diz.

O escritor Marçal Aquino, que costuma roteirizar os próprios livros, destoa dos outros entrevistados. “Gosto de muitas adaptações, acho até injusto escolher uma só. Se for indispensável citar um filme, eu mencionaria o São Bernardo (1971), do Leon Hirszman, adaptado do grande romance do Graciliano Ramos. Para além dos critérios indevidos, como a fidelidade, o diálogo que o filme estabelece com o livro é soberbo. Mais que isso, as absurdas limitações (impostas pela ditadura militar) que cercaram a produção hoje servem para torná-lo ainda mais memorável”, afirma o autor de O Invasor e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios, entre outros.



Potencial Cinematográfico

Sobre os clássicos que ainda não ganharam versões para a tela, o professor José Gatti afirma que alguns livros talvez não se prestem ao cinema. De qualquer forma, acredita que os realizadores brasileiros continuam “devendo” um filme à altura de Machado de Assis – mesmo destacando o roteiro inventivo do Brás Cubas (1985) de Júlio Bressane. Opinião compartilhada por Di Moretti, que gostaria, ele próprio, de roteirizar Dom Casmurro (que já ganhou uma releitura contemporânea, Dom, de Moacyr Góes).

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Marçal Aquino vê potencial cinematográfico em Jesus Kid, de Lourenço Mutarelli (de quem adaptou O cheiro do ralo), enquanto Meirelles revela um sonho: filmar Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. “Já houve uma versão para o cinema (dos irmãos Geraldo e Renato Santos Pereira) e outra para a televisão (de Walter Avancini), mas é um livro que sempre faz sentido. Também gostaria de assistir, no cinema ou na televisão, uma adaptação de Um Defeito de Cor, da Ana Maria Gonçalves. Seria um filme bem popular, por falar sobre a origem dos negros no Brasil”, explica o diretor, em cartaz com o longa 360.

Questionado a respeito de uma possível “contaminação” da literatura contemporânea por parte do cinema, Meirelles não vê problemas na convergência entre as duas áreas. “Há escritores que se apropriam da estrutura do roteiro de cinema ou incluem diálogos coloquiais como nos filmes. Se a história e os personagens são bons, se funciona para o leitor contemporâneo, está valendo. Quem disse que cada coisa tem de ficar numa gavetinha?”.

Aquino reconhece que muitos escritores norte-americanos já escrevem pensando numa futura adaptação. Mas não enxerga essa tendência no meio literário brasileiro. “Nunca aconteceu comigo. Diante de qualquer idéia que me ocorre, penso sempre: isso dá um conto, um romance ou uma novela? Nunca penso em cinema nessa hora”.

Para Gatti, o problema é dos críticos de literatura, não dos autores. “Desde que surgiu, o cinema passou a influenciar, com muita intensidade, toda a cultura. Seria impossível que esse fenômenos não passasse pela literatura. Daqui a alguns anos, vão dizer que a literatura está sendo contaminada pelos videogames. A verdade é que algumas pessoas não estão instrumentadas para analisar essas novas obras”.