Especial Capa: Clássicos

Uma geração na encruzilhada

Em sua maioria surgidos a partir dos anos 1990, escritores selecionados pela enquete do Cândido, segundo críticos, não criaram escolas ou painéis, investindo mais no conteúdo do que na forma

 

Luiz Rebinski Junior


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Quem acompanha o cenário literário nacional há pelo menos dez anos vai lembrar que os anos 1990 chegaram ser chamados de “a década perdida da literatura brasileira”. A coletânea Geração 90 — manuscritos de computador, organizada em 2001 por Nelson de Oliveira e que reunia essencialmente prosadores surgidos na última década do século XX, gerou debates acalorados e foi motivo de chacota em alguns meios — mais pelo título pomposo do que pelos autores contemplados, com se verificaria anos depois. O fato é que, com o devido distanciamento do tempo, a grande maioria dos autores da coletânea estabeleceu suas carreiras nos anos seguintes. É só pensar em alguns nomes que se afirmaram em definitivo nos anos 2000: Bernardo Carvalho, Luiz Ruffato, Marçal Aquino, Amilcar Bettega, entre tantos escritores. Muitos outros autores, presentes ou não na coletânea de Nelson de Oliveira e que surgiram após os anos 1990, por méritos próprios, criaram grandes expectativas em torno de suas trajetórias e produções futuras. 


Baseando-se na ideia de que a literatura tem seu próprio “tempo” e que este talvez seja o critério mais rigoroso quando se tenta “prever” qualquer coisa nessa área, o Cândido perguntou a 15 especialistas que acompanham de perto a literatura brasileira (críticos, jornalistas, curadores, etc.) quem são os dez autores contemporâneos que, em duas décadas ou menos, podem cravar seus nomes, em definitivo, na história da literatura nacional.


Autores como Ignácio de Loyola Brandão, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan, Ferreira Gullar, Manoel de Barros e João Ubaldo Ribeiro, que escreveram alguns dos livros essenciais da literatura brasileira no século XX e ainda estão na ativa, já conseguiram registrar seus nomes em nossa história literária, independentemente do que ainda possam produzir. A partir daí, um novo grupo de autores vai dar sua contribuição à nossa rica história literária. Quem são eles? 


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Segundo os especialistas consultados pelo Cândido, Daniel Galera, Michel Laub, Angélica Freitas, Cristovão Tezza, Paulo Henriques Brito, Milton Hatoum, André Sant'Anna, Bernardo Carvalho, Nelson de Oliveira (Luiz Bras) e Ricardo Lísias (leia mais sobre os autores e o juri que votou) são as vozes mais promissoras da atual literatura brasileira.


Dada a profusão de autores surgindo a cada ano, dez nomes podem parecer um número irrisório, perspectiva que se transforma quando se analisa a história da literatura nacional. Quantos contemporâneos de Machado de Assis e Lima Barreto são lidos hoje, mais de cem anos depois de suas mortes?

Gerações

Todos os jurados, que não terão seus votos revelados, puderam opinar de forma livre, levando em conta apenas a sua experiência de leitura para responder à enquete. Ainda que traga alta dosagem de subjetividade, a pesquisa se baseia na opinião de leitores que trabalham com literatura diariamente, seja na imprensa ou na universidade. Devido a diversidade das vozes que votaram, 61 escritores foram citados, dos mais óbvios, como Marçal Aquino e Miguel Sanches Neto, até gente que “abandonou” a ficção há anos, como Diogo Mainardi.

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Entre os mais votados, escritores como Cristovão Tezza e Milton Hatoum, que produzem e publicam ficção desde os anos 1980, aparecem ao lado de autores bem mais jovens, como Michel Laub e Ricardo Lísias. O que, na opinião da pesquisadora Regina Dalcastagnè, faz com que a lista abarque duas gerações distintas de escritores. Regina é professora do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB) e autora de, entre outros livros, Literatura brasileira contemporânea: um território contestado.


Resultado de 15 anos de pesquisa e da leitura de 258 livros da literatura brasileira (romances e coletâneas de contos), lançados entre 1990 e 2004, o livro chamou a atenção ao trazer dados que demonstram que o campo literário brasileiro ainda é bastante homogêneo, dominado por autores homens, brancos, de classe média, moradores de Rio e São Paulo e cujas profissões são ligadas a espaços já privilegiados de produção de discurso: os meios jornalístico e acadêmico.


“Em termos de tempo, são duas gerações distintas. A de Cristovão Tezza e Milton Hatoum, que são autores que viveram a ditadura militar e tiveram sua formação nos anos 1970, e a de escritores mais recentes, como Michel Laub, que têm outras preocupações”, diz Regina. Para a professora da UnB, o fato de Tezza e Hatoum terem começado suas carreiras sob o impacto do fim da ditadura, fez com que suas obras trouxessem certo sentimento de desilusão em relação à vida. “Tezza tem um livro emblemático sobre esse impacto, chamado Uma noite em Curitiba, em que a grande pergunta é: ‘E agora, o que faremos que a ditadura acabou?’”

Marcas
Em 2012, por conta do lançamento da revista inglesa Granta, que listou os “20 melhores jovens escritores do Brasil”, após uma seleção que reuniu 247 textos inéditos, o crítico gaúcho Luís Augusto Fischer, um dos profissionais consultados pelo Cândido para este especial, escreveu artigo no jornal Folha de S. Paulo criticando o que para ele era um ponto característico entre os escritores selecionados pela revista: a autorreferência e as constantes tramas passadas fora do país, o que, na opinião do crítico, seria um indício da influência de autores de língua inglesa entre os jovens contistas e romancistas nacionais.


“A Granta parece ter fotografado um momento cosmopolitizante, antipovo e autorreferente, na geração mais nova, que surfa num mercado muito mais maduro do que jamais foi, em todos os níveis de renda, nos circuitos de difusão, no consenso da importância da leitura”, escreveu Fischer. Dos dez escritores selecionados na enquete do Cândido, três deles também apareceram na seleção da revista inglesa (Ricardo Lísias, Michel Laub e Daniel Galera), cujo pré-requisito para os autores era ter menos de 40 anos.

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O professor de Literatura Brasileira da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) Audemaro Taranto Goulart acha que uma das principais marcas da literatura feita pelos escritores listados na enquete do Cândido é a falta de maior preocupação com a estética, ou seja, a linguagem que tanto marcou a prosa brasileira do século XX, com escritores fundamentais, que renovaram a literatura nacional, como Guimarães Rosa e Clarice Lispector. “O que não quer dizer que esses autores, sugeridos como as apostas dos críticos ouvidos pelo Cândido, não produzam obras significativas. Mas o foco deles se virou para aspectos mais sociais, no sentido que essa literatura se interessa mais em mostrar como as pessoas, hoje, estão inseridas no mundo. Por outro lado, é certo que esses autores deixaram de lado uma das marcas da literatura brasileira no século XX, que é experimentação com a linguagem”, diz o professor da PUC-Minas, que também ensina literatura portuguesa na universidade. 


Ele lembra que escritores portugueses contemporâneos, como António Lobo Antunes e Valter Hugo Mãe, autores de gerações distintas, ainda trazem em suas literaturas a preocupação com a forma. “Essa característica mais realista dos escritores brasileiros atuais, deve-se, talvez, a certo esgotamento da linguagem. As vanguardas acabaram e o tempo de experimentação talvez tenha ficado no século XX. Outro fator é que talvez esses autores tenham preocupação em serem plenamente entendidos por uma gama maior de leitores. James Joyce e João Guimarães Rosa, em seus últimos trabalhos, Finnegans Wake e Tutameia, respectivamente, fizeram uma literatura muito difícil, que apenas poucos abnegados conseguiam compreender.”


Regina Dalcastagnè corrobora a opinião de Goulart e explica que constatou, em sua pesquisa, que a linguagem não é, em regra, uma preocupação dos escritores das gerações mais novas. “Essa literatura atual talvez seja mais careta nesse sentido, pois é uma prosa com linguagem mais certinha, com começo, meio e fim. Há pouco investimento na estrutura do texto. É um conjunto mais realista. Inclusive os livros estão cada vez mais finos; os romances estão muito mais próximos de novelas. Talvez esse esquema de trabalho seja mais fácil”, opina a professora, que está dando porsseguimento à sua pesquisa sobre a literatura contemporânea brasileira. O objeto de estudo a partir de agora são os livros publicados “pelas principais editoras brasileiras entre 2004 a 2014”. O trabalho deve superar a primeira parte do estudo ao passar por 300 livros de ficção.

A professora da UnB também se surpreendeu ao não ver o nome de Luiz Ruffato entre os mais citados da pesquisa. Para ela, o mineiro é um escritor fundamental hoje, um nome que destoa do atual cardápio de nossas letras ao investir no lupemproletariado e na linguagem.

Outra observação de Regina é que entre os dez autores selecionados, apenas uma mulher aparece na lista. Com apenas dois livros publicados, Angélica Freitas também é a menos experiente, em termos editoriais, entre os escritores listados. Ao lado de Paulo Henriques Britto, é a única poeta. “Ter apenas uma mulher na lista é sintomático do que acontece na cena literária atual. Há várias mulheres escrevendo, mas poucas estão publicando regularmente, por isso não conseguem firmar carreira. A Elvira Vigna é uma das poucas exceções.”


Fenômeno Galera

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Entre os escritores citados, o gaúcho Daniel Galera foi o autor mais lembrado. Galera é também o mais jovem da lista, tem 33 anos e cinco livros em sua bibliografia, sendo quatro romances e um livro de contos. Nos anos 1990, participou de um coletivo de escritores que produzia um fanzine na internet chamado CardosoOnline. Mas foi com seu último romance, Barba ensopada de sangue, que o escritor foi alçado à condição de grande promessa da literatura brasileira. O livro, lançado em dezembro de 2012, já vendeu mais de 11 mil exemplares, um fenômeno para o mercado editorial do país, ainda mais por se tratar de um autor tão jovem. O que chamou a atenção da cena literária foi o empenho de sua editora, Companhia das Letras, em promover o livro e o escritor. O romance já teve seus direitos vendidos para o cinema e para editoras estrangeiras. A campanha de marketing inclui três versões diferentes para a capa do romance. Tamanho empenho gerou, na mesma proporção, entusiasmo e crítica à ascensão do escritor.

Um dos acadêmicos mais assíduos da imprensa brasileira, Alcir Pécora é também conhecido por seus textos mordazes sobre a literatura contemporânea. Para ele, o furor em torno de Galera se refere mais ao plano do marketing do que literário. “De modo geral, até onde pude perceber — pois não acompanho sua carreira tão de perto assim —, trata-se de um escritor de talento mediano, tanto em termos estilísticos, elocucionais, como de invenção e matéria. Que ele seja visto como um autor importante a ser lembrado não deixa de ser sintomático de um momento de crise que vivemos, no qual a euforia publicitária se conjuga mais ou menos perceptivelmente com a depressão intelectual.”