Especial | Boom Latino-americano - Reportagem

A invenção de um continente

Gabriel García Marquéz, Mario Vargas Llosa, Carlos Fuentes, Julio Cortázar e outros escritores encontraram novos caminhos para a ficção recriando a vida na América Latina, o que resultou em obras lidas e admiradas em diversos países e idiomas

Marcio Renato dos Santos


Há quase 50 anos, a América Latina surpreendeu e, em alguma medida, conquistou o mundo por meio da ficção. Gabriel García Marquéz, Mario Vargas Llosa, Alejo Carpentier, Carlos Fuentes, Julio Cortázar e outros autores publicaram obras que tiveram ressonância no próprio continente, nos Estados Unidos e na Europa. Foi o chamado boom literário latino-americano. O marco inicial do fenômeno foi a publicação em 1967 de Cem anos de solidão, romance de Gabriel García Márquez — apesar de o crítico e pesquisador uruguaio Ángel Rama apontar O jogo da amarelinha, de Julio Cortázar, publicado em 1963, como a obra deflagradora do boom. Já o ano de 1973, de acordo com os especialistas, marcaria o fim do movimento — coincidência, ou não, em meio ao período obscuro das ditaduras militares na América do Sul.

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Retrato dos artistas quando jovens: o peruano Mario Vargas Llosa e o colombiano Gabriel García Marquéz foram amigos, autores fundamentais para a invenção da América Latina por meio da ficção e, a partir de um incidente mal explicado, se tornaram desafetos e rivais.

“Do ponto de vista estritamente latino-americano, acredito que o maior legado [desse movimento] foi no sentido de estabelecer definitivamente uma identidade própria para os escritores dessa região do mundo que, até então, eram vistos — e, o que é mais importante, muitos deles ainda se viam — apenas como discípulos dos grandes mestres europeus”, afirma o professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Claudio Celso Alano da Cruz. Contrariando todas as expectativas, completa Cruz, um desses escritores passou a ser visto desde então como um verdadeiro mestre para as novas gerações europeias que estavam despontando naquele momento: “Essa era uma façanha, digamos assim, absolutamente inédita para um escritor latino- americano. Refiro-me, claro, ao argentino Jorge Luis Borges.”

O estudioso da UFSC observa que, do ponto de vista internacional, talvez o maior legado do boom tenha sido o resgate visceral da capacidade narrativa que, em meados do século XX, e principalmente na Europa, havia entrado num beco sem saída com o noveau roman francês. “Vale lembrar que a França, em grande medida, ainda dava o ‘tom’ e a direção no que diz respeito aos caminhos da literatura mundial. Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa e Carlos Fuentes, além de vários outros, mostravam de forma cabal que o romance não havia terminado, como muitos falaram, nas experiências radicais de James Joyce com, por exemplo, Finnegans wake, de 1939”, diz.

Cruz ainda acrescenta que, quase que simultaneamente ao fenômeno do boom, começava a ser descoberto, e avaliado, pelo Ocidente em “O narrador”, texto do filósofo e crítico Walter Benjamin escrito em 1936. A tese principal desse célebre ensaio é de que o sujeito moderno estaria perdendo, gradativa e irreversivelmente, a capacidade de narrar a própria experiência, em função de uma série de transformações históricas e sociais que o autor explica ao longo do texto.

“Pois bem, o que os escritores latino- americanos vieram mostrar é que a questão era um pouco mais complexa, uma vez que seus textos parecia mindicar justamente o contrário do que constatava Benjamin, ou seja, pelo menos no que diz respeito à América Latina, ainda havia muito a ser narrado. E eles se puseram a contar suas próprias experiências, das suas famílias e antepassados, dos seus conterrâneos de cidades, regiões, países. E o que fizeram encantou leitores de todos os países do mundo”, comenta Cruz.

Economia e mercado

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A professora de literatura hispano- -americana da Universidade de São Paulo (USP) Ana Cecília Olmos explica que o boom da literatura latino-americana aconteceu durante um período favorável, entre os anos 1960 e 1970, com estabilidade econômica nos países, o que permitiu a editoras locais investir nas obras de autores, então, promissores. Além disso, naquele contexto também houve democratização do acesso à escola e à leitura e um consequente aumento do número de leitores. Maurício de Bragança, da Universidade Federal Fluminense (UFF), afirma que o termo boom, de fato, tem origem no marketing e na situação econômica. “Sem dúvida nenhuma a organização de um mercado editorial forte e eficiente na América Latina teve uma participação decisiva para a circulação destas obras em mercados internacionais e a ampliação de um público leitor”, diz.

O especialista da UFF cita as casas editoriais que atuaram ativamente naquele período, por exemplo, Losada, Emecé, Sudamericana e Compañía General Fabril Editora em Buenos Aires, as mexicanas Fondo de Cultura Económica, Era e Joaquín Mortiz, as chilenas Nascimento e Zig Zag, asuruguaias Alfa e Arca, a venezuelana Monte Avila — além de Barral, Lumen e Anagrama, em Barcelona, na Espanha.

“É importante destacar ainda que o mercado que se organizou naquele momento acabaria republicando uma série de romances que haviam tido tiragens muito baixas originalmente, aumentando o escopo de publicações literárias relacionadas à nova literatura latino-americana”, completa Bragança.

Claudio Celso Alano da Cruz, da UFSC, analisa que o êxito do boom também se deve, entre outras questões, ao fato de a comunidade de língua espanhola ser ampla. “Creio que aí há uma concordância generalizada, e por outro lado essa situação explica também o motivo pelo qual autores brasileiros não puderam se beneficiar desse fenômeno, apesar da língua portuguesa ser tão próxima à espanhola”, opina Cruz.

Já o professor Maurício de Bragança acredita que esse dado merece atenção, mas não é determinante: “É claro que o número de leitores em espanhol no mundo é algo impressionante, mas não devemos esquecer que os escritores do boom logo seriam traduzidos para outras línguas. Essa literatura vai ter um grande êxito em mercados editoriais como o francês, o italiano, o alemão e mesmo o norte-americano.”

O peso da herança

Em 1996, os escritores chilenos Alberto Fuguet e Sergio Gómez organizaram uma antologia apresentando novas vozes literárias da América Latina. A proposta da publicação estava explícita no título: McOndo — referência à rede de fast-food McDonald’s e à aldeia criada por Gabriel García Marquéz, Macondo. Ana Cecília Olmos, da USP, analisa que o título, McOndo, pode ser interpretado como demonstração de ironia e, ao mesmo tempo, homenagem. “Os jovens autores tentavam matar os ‘pais’ literários, sem deixar de reconhecer o valor da herança”, afirma.

Maurício de Bragança acredita que o êxito do boom, em âmbito mundial, foi tão impressionante que acabou criando uma “camisa de força” para as gerações seguintes. “Sob uma certa perspectiva, o boom ajudou a engessar uma identidade para a América Latina forjadora de um imaginário mundial que permaneceu por várias décadas. Isso foi recebido de forma muito problemática pelas novas gerações que tiveram como desafio enfrentar essa espécie de projeto que acabava por reduzir as múltiplas possibilidades estéticas e narrativas do continente aos parâmetros trabalhados pela geração do boom. É nesse quadro que se insere a geração McOndo, na década de 1990”, diz o professor da UFF.

Ana Cecília Olmos, da USP, lembra que, além do McOndo, na década de 1990 o escritor mexicano Jorge Volpi criou o “Manifesto Crack” para, entre outras finalidades, questionar a herança do boom. Naquele momento, anos 1990, alguns escritores latinos que nasceram nos anos 1960 sinalizavam estar em busca de liberdade. “Liberdade que significa não se sentir obrigado a se disfarçar de latino-americano o tempo todo. Liberdade para poder escrever sobre qualquer tema, libertando a literatura de qualquer representação feita na América Latina, inclusive experimentando narrar em outras línguas”, argumenta.

O legado do boom, salienta a professora da USP, é heterogêneo. “Por causa do sucesso de Cem anos de solidão, com tiragem inicial de 10 mil exemplares em 1967, algo surpreendente para a época, muitas vezes a tendência é reduzir o boom ao Realismo Mágico. Mas os escritores latino-americanos não escreveram apenas romances. Também teve ensaio e excelentes contistas. É preciso não perder de vista a heterogeneidade”, diz Ana Cecília.