Especial | Boom Latino-americano - Ensaio

A expressão da alteridade e da diferença

A professora de Literatura Hispano-americana na Universidade de São Paulo (USP) e tradutora Laura Janina Hosiasson defende que a ficção produzida na América Latina vai além de qualquer rótulo, seja realismo mágico  ou boom, pelo fato de ser realizada por hábeis narradores


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Por mais que hoje tenhamos um olhar distanciado com relação ao boom literário latino-americano dos anos 1960 e 1970 e pensando, sobretudo, nos problemas que o conceito todo acarreta, não há como negar que ele foi e continua sendo um ótimo chamariz editorial para a captação de novos leitores desse conjunto bastante amorfo e mutante que o compõe. Mas o que fica claro, com a nitidez que adquirimos no afastamento do tempo, é que aquilo que se pensou nesse momento como o conjunto de uma produção literária com características aglutinadoras, muito pouco ou nada tinha em comum e hoje, quando tentamos falar sobre ele, entramos necessariamente no campo das negações.

Para começar, embora o top de vendas tenha sido e continue sendo Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez, se pensarmos no legado que a literatura latino-americana do século XX espalhou entre autores de outras línguas iremos nos deparar com escritores que na época nem foram considerados parte do chamado boom da literatura latino- americana, como o argentino Jorge Luis Borges e o mexicano Juan Rulfo, por exemplo. O primeiro inspirou os italianos Ítalo Calvino e Umberto Eco, o filósofo francês Michel Foucault, o norte- americano Paul Auster, o grupo de escritores e matemáticos em língua francesa, Oulipo, entre muitos outros; e Juan Rulfo semeou afinidades que vão de Susan Sontag a João Guimarães Rosa.

Um dos equívocos históricos foi a identificação daqueles autores que constituíam o boom (sempre de forma muito aleatória, ao sabor dos editores e agentes literários) com o que veio a se chamar Realismo Mágico, na verdade um conceito resgatado da pintura de vanguarda alemã dos anos 1920. Aqui ele foi entendido e adaptado como a possibilidade de um alargamento exótico das fronteiras do real por meio da magia e a imaginação que daria conta da verdadeira identidade latino-americana. A América Latina encontrava finalmente sua verdadeira expressão.

Ora, se a chave funcionou para a leitura da obra de um García Márquez e parte da do cubano Alejo Carpentier, nada tinha a dizer a respeito da produção de um Borges ou de um Rulfo. O rótulo funcionou especialmente para as editoras internacionais que se utilizaram do chamariz boom/Realismo Mágico latino-americano para vender essa “nova literatura” que o “novo” continente começava a exportar.

Há que se dizer que, como em tudo na vida, houve também a coincidência com outros fatores que determinaram a qualidade e independência narrativa de muitos escritores do continente, ao longo do século XX. Isso tem a ver, em parte, com a chance que grande parte dos intelectuais latino-americanos — em sua enorme maioria, pertencentes às elites locais — teve de viajar para as metrópoles europeias ou de acessar bibliotecas internacionais bem equipadas. Isso possibilitou o contato com a melhor tradição literária ocidental e com o que de mais vanguarda se escrevia no“além mar” (Joyce, Faulkner, Woolf, Kafka, Hemingway...).

A leva de bons narradores que por essas décadas circula aleatoriamente dentro e fora do chamado boom é enorme. Trata-se de um conjunto expressivo de excelentes escritores inovadores e criativos, sobretudo em sua fase primeira, após a qual alguns dentre eles tropeçaram na repetição de fórmulas, como é o caso lamentável de Mario Vargas Llosa.

Mas o que é certo é que a alteridade, a impossibilidade de rotulá-los dentro de um mesmo saco salta à vista. Se lermos em paralelo Julio Cortázar e José Donoso ou Carlos Fuentes e Jorge Luis Borges e assim por diante, de pouco ou de nada irá nos servir o conceito do realismo mágico que parece se referir unicamente a uma visão do atraso cultural e social latino-americano, em chave exótica. Aliás, cada um deles estava procurando elaborar uma voz própria e original, lançando mão de procedimentos narrativos dos mais diversos para romper os parâmetros tradicionais com que, até meados do século XX, a literatura da região tinha se defrontado.
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McOndo, uma experiência literária promovida por dois jovens escritores chilenos do pós-boom, Alberto Fuguet e Sergio Gómez, veio escancarar de vez o problema. Em 1996, eles organizaram a publicação de uma coletânea, convocando narradores de qualquer tendência excetuando a do realismo mágico. O título e a proposta eram uma evidente gozação que confrontava sem pudor os extremos da atualidade contemporânea no continente: a sociedade de consumo (McDonald’s) e o primitivismo (Macondo). Na América Latina há escritores e ponto final, sem rótulos!

Um dos exemplos mais significativos de narrador antenado no presente e que absolutamente nada tem a ver com a etiqueta associada ao boom, é Roberto Bolaño, recentemente falecido. Sua obra reconhecida internacionalmente faz circular as tramas da ficção no espaço latino-americano e europeu, atravessando as fronteiras linguísticas, inclusive aquelas dos diferentes espanhóis. Nele, as marcas de autores como Jorge Luis Borges e Julio Cortázar são evidentes, inclusive por ele confessas. Ele é uma prova de que felizmente a pecha dos rótulos mercantis da produção literária latino- americana está sendo superada e o que domina hoje é a expressão da alteridade e da diferença.