Especial Beat | Capa

Cena beatnik

O legado de autores norte-americanos como Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Gregory Corso e Lawrence Ferlinghetti influenciou escritores de todo o mundo, seja pela proposta estética como pela postura  existencial que ainda hoje encontram ressonância entre prosadores e poetas brasileiros

 

Marcio Renato dos Santos


Edson Kumasaka
Marcelo Montenegro cursava História na Faculdade de Educação, Filosofia, Ciências e Letras Senador Fláquer, em Santo André, quando ouviu — no início da década de 1990 — pela primeira vez a expressão beatnik. E não foi na sala de aula, e sim em um bar — “Estava tomando cerveja com um amigo. Vendo agora, em retrospecto, é engraçado que tenha sido dessa forma: não na aula, mas no bar.” Em seguida, emprestou na biblioteca da faculdade On the road (1957), de Jack Kerouac. “Como eu fazia História, o mundo todo que se descortinou a partir desse livro, dos outros livros e dos outros escritores beats, representou também uma abertura de flanco ‘não literária’ importantíssima pra mim”, diz Montenegro.

Kerouac, considerado o rei dos beats, se tornou autor de cabeceira de Montenegro. O seu trabalho de conclusão de curso incluiu uma análise do american way of life sob a ótica da contracultura, sobretudo dos beats. “Lembro que entre os pilares teóricos do trabalho — ao lado de Eric Hobsbawm, Nicolau Sevcenko e alguns historiadores da Escola dos Annales — estavam os poemas ‘América’, do Allen Ginsberg e ‘Autobiografia’, do Lawrence Ferlinghetti”, conta Montenegro, poeta, autor dos livros Orfanato portátil (2003/2012) e Garagem lírica (2012).

Montenegro afirma que, para ele, o grande legado beat foi a descoberta, ou então, o estímulo para encontrar a própria voz poética. “Os beats me influenciaram a ‘ser eu mesmo’. E, derivado disso, a integridade. Antes de qualquer coisa, eles buscaram modos sinceros — individuais e intransferíveis — de se viver, de estar no mundo”, afirma. “Seguramente, compartilho com o Kerouac a compaixão, a busca pelo singelo, a ternura pelas coisas simples e comoventes, o lirismo, a beatitude”, completa o poeta.

Um mundo mais livre

Além de Montenegro, José Agripino de Paula, Jorge Mautner, Waly Salomão, Roberto Piva, Antonio Bivar, Reinaldo Moraes, Claudio Willer, Mário Bortolotto, Rodrigo Garcia Lopes, Ademir Assunção e Demétrios Galvão são, entre outros, autores brasileiros que incorporaram a herança beat em seus escritos.

E o que seria esse legado beatnik? O professor de Literatura e Cultura Norte- Americana da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Marco Alexandre de Oliveira lembra que foi Jack Kerouac quem denominou a chamada geração beat que, por sua vez, diz respeito a toda uma geração pós- -guerra de jovens escritores angustiados e “vagabundos” que se sentiam “abatidos, derrotados e fracassados”.

O termo beat, explica Oliveira, também deriva das palavras beato e/ou beatificado, e da palavra beat no sentido de batida e/ou batuque — e ainda pode significar uma venda de drogas mal sucedida. “Portanto, os diversos significados de beat, com todas as suas contradições, expressam perfeitamente a relação daquela geração [principalmente Jack Kerouac, Allen Ginsberg, Gregory Corso e Lawrence Ferlinghetti] tanto com a espiritualidade, seja no transe provocado pelo jazz ou no êxtase produzido por experiências místicas, quanto com a materialidade, seja na embriaguez induzida pelo álcool e outras drogas ou no prazer proporcionado pelo sexo e comportamentos ilícitos”, comenta o estudioso que leciona na PUC-Rio.

A professora de Literaturas de Língua Inglesa da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Luci Collin observa que, ao escreverem livros que expunham a violência e a censura impostas pelo establishment, denunciando a alienação causada pelo materialismo desmedido, os autores da geração beat gradualmente colocaram em xeque a noção convencional de temáticas adequadas à literatura e, assim, ampliaram o conteúdo da expressão literária. “Os beats também contribuíram para a abertura em relação ao amor livre, a liberação gay e, embora alguns deles, como Kerouac, sejam taxados de ‘machistas’, vale dizer que a expressão beat, ao discutir a questão da opressão, também incidiu na revisão da condição da mulher, pedindo uma reavaliação de todos estes valores que a sociedade repressora impunha”, afirma Collin, tradutora e autora de 14 livros, entre os quais Querer falar (2014).
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Cotidiano reinventado

Claudio Willer costuma dizer que o legado da geração beat é plural, além de literariamente complexo. “Evidentemente, há a qualidade do que os autores beats escreviam, evitando, assim, a redução [da herança] a um fenômeno apenas comportamental. Isso é corroborado por uma bibliografia crítica de qualidade, que vem crescendo nos últimos anos, de 2000 para cá”, diz Willer, poeta que conhece as obras dos beatniks desde 1961, traduziu textos de Allen Ginsberg e Jack Kerouac e acaba de publicar Os rebeldes: geração beat e anarquismo místico.

Sergio Cohn analisa que, no caso dos beats, não dá para separar a linguagem da temática e do elemento existencial presente em suas obras. Cohn, poeta e editor da Azougue Editorial, tem a percepção de que a herança beat permitiu, a todos que beberam na fonte beatnik, a
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possibilidade de adotar uma escrita mais espontânea, uma linguagem cotidiana e aberta para termos muitas vezes tidos como ofensivos ou como não-literários. Ele chama a atenção para o fato de que, diferentemente do que algumas vozes dizem, os beats não eram talentosos ingênuos, às vezes tidos como mais importantes no plano comportamental do que no literário.

“Quantos garotos, acreditando nessa ideia, acharam que era necessário apenas escrever caudalosamente sobre a própria vida para se criar um poema com a força de Uivo (1956), esquecendo que Allen Ginsberg era um artesão sofisticado dos ritmos e das sonoridades da língua inglesa, tendo inclusive escrito durante anos poemas metrificados e rimados”, observa Cohn.

Dialogando com o editor da Azougue Editorial, Marcelo Montenegro conta que os poemas que escreve, apesar do impacto beatnik, têm pouco ou mesmo nada a ver com o que se convencionou chamar de “escrita beat”, que seria algo solto e espontâneo. “Jamais, por exemplo, consegui escrever um poema que saísse num fluxo, de uma vez. Acho até uma ideia linda, mas, comigo, não funciona. E olha que busco uma linguagem simples, límpida e até mesmo, em certo sentido, espontânea, mas, no meu caso, é uma ‘espontaneidade trabalhada’”, conta Montenegro, explicando que escreve como um “marceneiro”: “Preciso ficar muito tempo trabalhando um poema até ele ficar do jeito que eu quero”.

Era uma vez

Em sala de aula, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Sérgio Medeiros comenta com os alunos sobre o legado de Allen Ginsberg e William Burroughs. “A violência intrínseca dos seus textos mais inconformistas não perdeu a força política e estética”, afirma. Mas, a exemplo de outros professores universitários, Medeiros sabe que a geração beat é um movimento histórico encerrado: “Ninguém mais precisa ir para o México ou para o norte da África para escrever como Burroughs, ou atravessar os Estados Unidos de carro para reescrever On the road. Isso seria ridículo”.

Marco Alexandre de Oliveira, da PUC-Rio, acrescenta que, atualmente, se apresentar como beat seria o equivalente a se autodenominar surrealista ou tropicalista. “Esses movimentos aconteceram em determinados momentos históricos e culturais, portanto, os nomes não devem ser ‘repetidos’. A geração beat, por exemplo, se inspirou na geração perdida dos anos 1920, mas não se apresentou como tal. Um beatnik hoje é um macaco de imitação”, diz Oliveira.

Claudio Willer acredita que, no caso da herança beatnik, a questão não é identificar autores influenciados pela geração beat e sim mostrar como se processa essa influência: qual é o intertexto, com qual autor ou aspecto da geração beat ocorre a relação. Afinal, o diálogo com o legado de Keroauc, Gisnberg e Corso é amplo, difuso e complexo de mensurar. A professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Flavia Benfatti lembra que, devido ao impacto beat, John Lennon teria batizado a sua banda com nome The Beatles. Marcelo Montenegro observa que os beats influenciaram, “de forma definitiva” Bob Dylan — “E Dylan, quantos influenciou? Abrindo o flanco aleatoriamente, podemos pensar, sei lá, em Roberto Piva e Claudio Willer no início dos anos 1960 em São Paulo. Em Sam Shepard. Em Johnny Deep. Em Jim Morrison. Em ‘Só as mães são felizes’, canção do Cazuza. Acho que o legado cultural é imenso e em várias direções”, analisa Montenegro.