Entrevista: Zuenir Ventura
“Meu tempo é hoje”
Autor de um livro presente no imaginário brasileiro — 1968: o ano que não terminou —, Zuenir Ventura, aos 81 anos, publica Sagrada família, romance de cunho memorialístico que tem os anos 1940 como pano de fundo
Márcio Renato dos Santos
Zuenir Ventura está com a agenda completamente lotada. E o motivo da movimentação é o seu mais recente livro, o romance Sagrada família, no qual ele reelabora por meio da ficção a década de 1940, “uma época fundamental na minha formação emocional de adolescente, mas também na do país. É uma década pouco estudada, embora seja um marco divisor em termos de comportamento”. A obra tem várias camadas. Em um primeiro plano, o texto problematiza a perda da inocência de um menino, o personagem Manuéu. Há também o contexto histórico, que mostra direta e indiretamente os impasses da Segunda Guerra Mundial e do Estado Novo no Brasil. O autor respondeu, por e-mail, algumas perguntas enviadas pela reportagem do Cândido.
“A vantagem da ficção sobre o jornalismo é que você não tem o menor compromisso com a verdade; pode mentir à vontade”, disse, a respeito dessa sua obra que mistura invenção e memória. “No romance [Sagrada família], o que predomina é a memória involuntária, proustiana, aquela que se intromete, que aparece onde não é chamada.”
O escritor mineiro de 81 anos soma mais de meio século de atuação na imprensa brasileira e, nesse depoimento, ele fala sobre as transformações no jornalismo, comenta a sua atividade de cronista, atualmente no jornal O Globo, e admite que tem os olhos bem abertos para o tempo presente. “O jornalista que não procura se conectar com o espírito de seu tempo deve mudar de profissão. O historiador é que precisa ficar olhando para o passado”, afirma.
O que motivou o senhor a escrever Sagrada família? Não parece haver nostalgia no livro, e sim a problematização de questões e a reelaboração por meio da ficção de um tempo que existiu e não tem mais volta.
De fato, mais do que nostalgia, há o que você chamou de “reelaboração por meio da ficção” de um tempo passado. Essas lembranças me perseguiram durante dez anos, mas eu ia adiando a hora de transformá- las em livro. Essa decisão aconteceu muito recentemente, quando meu editor, Roberto Feith, pediu para ver, sem compromisso, o que eventualmente eu já tivesse escrito. Enviei-lhe os oito capítulos mais ou menos prontos, mas não obtive resposta. Achei que ele não tinha gostado e fui cuidar de minha vida. Até que um dia, por intermédio de minha agente Lucia Riff, fiquei sabendo da confusão. Ela me garantia que ele mandara um e-mail que certamente se extraviara. Procurei e acabei localizando. Nele, Bob dizia que tinha gostado muito do que lera e me incitava a continuar. Não tive outro jeito.
Por que a escolha dos anos 1940 para situar a ação do romance?
Porque foi uma época fundamental na minha formação emocional de adolescente, mas também na do país. É uma década pouco estudada, embora seja um marco divisor em termos de comportamento. Eram tempos de conservadorismo moral, em que era mais importante parecer do que ser. Os preconceitos, estigmas e tabus comandavam a conduta de homens e mulheres, principalmente destas. Foi uma época de muito pudor e recato, mas também de muita hipocrisia.
Quanto há de autobiográfico em Sagrada família? Há muito do Zuenir Ventura no Manuéu e em outros personagens? De que maneira?
Digamos que o ponto de partida dos personagens e de muitas situações é autobiográfico. As pessoas do livro existiram, mas com outros nomes e outros scripts. Nem tudo o que aconteceu com elas no romance aconteceu na vida real. As histórias são uma mistura de memórias pessoais, emprestadas (ou roubadas) e inventadas. O resultado é uma obra de ficção, bem resumida na epígrafe do grande Manoel de Barros: “Só dez por cento é mentira. O resto é invenção”. Com o tempo, até as memórias reais se transformam em ficção. Pedro Nava, nosso memorialista maior, dizia que não se sabe quando terminam as lembranças e começa a invenção. Não quis contar uma história de amor que se limitasse aos fatos reais, que fosse uma autobiografia convencional. Achei que a narrativa teria mais liberdade deixando minhas fantasias correrem soltas, embora algumas tenham tido como ponto de partida a realidade.
O livro é um acerto de contas com sua família?
De jeito nenhum. Sempre curti muito minha família. Meus pais eram pobres, meu pai era pintor de parede, e essa foi minha primeira profissão; mas o afeto com que nos cobriam superava as dificuldades materiais e reforçava os laços familiares. Cresci cercado pelo carinho de irmãs, tias, primas e primos. Depois, formei o meu próprio núcleo, mulher, filha, filho e uma netinha, Alice, que é o meu maior patrimônio.
“Continuava sem compreender bem o que faziam, mas com certeza era por isso que ela gemia. A posição devia ser muito incômoda. Seria preciso tudo aquilo para tomar uma injeção?”. Logo no início de Sagrada família, o personagem narrador, Manuéu, presencia a cena na qual a sua tia, Nonoca, está com o personagem Canuto, o farmacêutico, fazendo algo que o narrador não sabe o que é. Uma questão se abre: Manuéu começa a deixar de ser criança em direção ao mundo adulto. É a noção de que existe o sexo que sela o fim da infância? Este é o ponto central de sua obra?
Acho que é sim o ponto central. Se tivesse que resumir o romance, diria que é sobre a perda da inocência. É o rito de passagem, o flagrante dos choques e revelações daquele menino descobrindo o pecado, o sexo, o mundo, enfim, a vida.
Mas há outras questões em Sagrada família, entre as quais, a seguinte: as filhas da Nonoca, tia de Manuéu, as primas dele, Cotinha e Leninha, são irmãs e, em alguma medida, adversárias. Uma parece lutar contra a outra, ambas parecem sentir inveja da felicidade da outra (da felicidade que a outra ainda não experimentou), e até mesmo parecem se auto-sabotar. O senhor quis tratar desta luta, Caim e Abel, da guerra entre parentes, incluindo também o confronto das filhas com a mãe?
Muito bem observado. Eu diria que a construção dos personagens das irmãs só foi possível porque antes, para escrever o livro Inveja, mal secreto, tive que estudar e pesquisar muito esse sentimento, que é um dos sete pecados capitais. A definição que uso no livro, “inveja é não querer que o outro tenha”, esclarece muito das relações das irmãs entre si e delas com a mãe.
No seu romance aparece a Leiteria e Sorveteria Favorita — uma espécie de central de difusão de fofocas. É ali onde tudo se sabe, onde se sabe quem fez e o que não fez. E hoje? Onde são as Leiterias e Sorveterias Favorita? Na internet? Nas redes sociais? No Facebook? Ou os ambientes de fofocas vão existir sempre com o ser humano, na realidade?
Ampliadas numa escala às vezes planetária, as fofocas, os boatos, os rumores, as intrigas, as mentiras estão na internet e nas redes sociais. Mas não são exclusividades desses meios. Recebi muitos comentários de leitores não só reconhecendo personagens (“Sou íntimo de Tia Nonoca, tive uma na infância”. “Existiu um farmacêutico como aquele na minha cidade”.), como identificando Florida, a cidade imaginária do romance, com suas cidades: “Fui criado em uma no interior de São Paulo que era igualzinha à do livro”, me escreveu um leitor. Outros me garantiram que na sua pequena cidade natal o comportamento até hoje é muito parecido.
O senhor tem uma trajetória de mais de meio século de imprensa. O que mudou durante esse tempo e o que permanece o mesmo na imprensa brasileira?
A maior mudança operada no jornalismo se deve, acredito, à revolução tecnológica. No meu tempo de correspondente na França, uma matéria levava dias para chegar ao Brasil. Hoje, a informação é em tempo real. Houve uma aceleração do ritmo do tempo e da História, o que exige mais rapidez na apuração e na publicação dos fatos. É muito mais difícil acompanhar os acontecimentos.
O fato de ser cronista é algo que lhe obriga a estar atento continuamente ou é resultado de uma necessidade, algo orgânico, do senhor, uma postura que faz com que sempre tenha algo a dizer e sobre o que refletir?
O cronista é um voyeur, ou seja, alguém que está sempre olhando atentamente para o que está acontecendo e que, digamos, escreve mais com os olhos do que com a cabeça. Esse olhar “viciado” é uma espécie de deformação profissional que acompanha o cronista.
Após as chacinas da Candelária e Vigário Geral, nas quais foram mortos, respectivamente, oito meninos e 21 pessoas, o senhor ajudou a criar a ONG Viva Rio. Posteriormente, o senhor escreveu o livro Cidade partida, sobre as causas da violência no Rio — obra ganhadora do Prêmio Jabuti de Reportagem. O senhor é um sujeito que demonstra necessidade de, mais que pensar, agir sobre a realidade?
Como nunca fiz militância política, pois acho que essa não é nossa função, procuro agir sobre a realidade por meio da prática jornalística. Nós não somos juízes ou promotores, mas testemunhas de nosso tempo. Mesmo no caso citado, eu acompanhei a criação da ONG mais como observador. Eu “cobri” a fundação, mais do que ajudei a fundar.
Temas que marcaram, e são fatos inegáveis do nosso mundo, como o ano de 1968 e a jornada de Chico Mendes mereceram a sua atenção, e se transformaram em obras, respectivamente, 1968: o ano que não terminou e Chico Mendes: crime e castigo. O senhor considera- se um sujeito com um radar muito bem sintonizado no zeitgeist, continuamente?
Não sei se o meu radar é bem sintonizado no zeitgeist, mas faço esforço para que seja. O jornalista que não procura se conectar com o espírito de seu tempo deve mudar de profissão. “Meu tempo é hoje”, como diz Paulinho da Viola. O historiador é que precisa ficar olhando para o passado.
E o Rio de Janeiro? Mudou nos últimos tempos, no que diz respeito à violência, à sensação de segurança? A UPPs foram, são, uma solução? O senhor poderia falar sobre isso?
Hoje há no Rio uma política de segurança pública na direção certa, muito diferente da que existia em 1994, quando frequentei durante nove meses a favela de Vigário Geral para publicar o livro Cidade partida. Em vez de entrar, matar e sair, para depois fazer o mesmo, numa incessante estratégia de enxugar gelo, o objetivo agora é a ocupação com a retomada do território dos traficantes. É o primeiro passo, indispensável, para o processo de pacificação. Ainda há muito o que fazer, a cidade ainda é partida, mas o caminho é o que está sendo seguido.
Como o senhor se define? Acima de tudo um jornalista? Em Sagrada família, não teria feito também uma grande reportagem a respeito do tempo em que passou em Friburgo, na adolescência, tendo atuado como aprendiz de pintor de paredes, faxineiro, mas sem recorrer a pesquisa formal, e sim ao que o marcou profundamente?
Sou sempre jornalista, e talvez você tenha razão: é possível que Sagrada família seja uma grande reportagem sobre a minha adolescência, tendo como pano de fundo a II Guerra Mundial e o Estado Novo. Para o meu caso, usei três tipos de memória: a pessoal, a dos outros e as inventadas. Quanto ao material histórico, aí tive que pesquisar como um repórter. A vantagem da ficção sobre o jornalismo é que você não tem o menor compromisso com a verdade; pode mentir à vontade. Por outro lado, no jornalismo você usa a memória voluntária: procura se lembrar. No romance, o que predomina é a memória involuntária, proustiana, aquela que se intromete, que aparece onde não é chamada.