Entrevista: Ricardo Azevedo
“A vida pode não ter sentido, mas não é proibido dar-lhe algum”
Felipe Kryminice e Monique Cellarius
O escritor Ricardo Azevedo, um dos mais premiados autores infantojuvenis do Brasil, critica o ceticismo e niilismo da literatura dita intelectual e diz que prefere deixar no leitor uma expectativa positiva diante da vida e do mundo
Quando era criança, na década de 1950, Ricardo Azevedo foi apresentado a uma série de discos em que poetas como Carlos Drummond de Andrade declamavam poemas de sua própria lavra. Foi o primeiro contado com a literatura do futuro escritor, que hoje é autor de mais de cem livros para crianças e jovens.
“Tive acesso a esse material lá pelos meus nove ou dez anos. Até hoje trago na cabeça a voz de Drummond recitando ‘José’, ‘Caso do vestido’ e ‘Morte do leiteiro’. Qual a questão aqui? Eu, criança de dez anos, de fato teria dificuldades para ler aqueles poemas. Mas não tive nenhuma para escutá-los, o que fiz com grande interesse e emoção! Noto que eram poemas para ‘adultos’”, diz o escritor, que esteve na Biblioteca Pública do Paraná participando do projeto “Aventuras Literárias”.
A história serve hoje para que Ricardo Azevedo explique por que torce o nariz para a segmentação que se faz entre literatura “adulta” e “infantojuvenil”. “Certamente alguns livros são capazes de estabelecer maior identificação com crianças ou com jovens do que outros, mas é simplista demais reduzir a literatura a produções dirigidas a determinadas faixas etárias. Tal postura tem a ver com mercados, não com literatura.”
Azevedo também falou ao Cândido sobre as novas tecnologias e o desafio de tornar a literatura atraente a crianças que já nascem com um mouse nas mãos. “O que preocupa não são as novas tecnologias, mas sim sua utilização por gente individualista e consumista, por técnicos acríticos e despolitizados.”
Há mais de 30 anos escrevendo, Azevedo diz que a experiência, ao contrário do que se pensa, aumenta ainda mais o desafio de escrever uma nova história que seja atraente, singular e que não repita àquilo que um autor com tantos livros publicados já fez. “Com o passar do tempo, a gente se torna mais exigente e crítico. Em princípio, ninguém quer ficar repetindo coisas que já fez. Meu desafio tem sido tentar utilizar a experiência que adquiri ao longo dos anos para fazer algo que ainda não fiz. Acho um desafio estimulante, desses que dão sentido à vida.”
Uma pergunta que sempre surge quando o assunto é literatura infantojuvenil, mas que é praticamente impossível deixar passar: qual o cuidado que se deve ter na hora de escrever uma história infantil? Separar ficção e realidade é sempre uma preocupação?
Separar a ficção da realidade sempre foi algo difícil para todas as pessoas, independentemente de faixas de idade. Isso porque, olhando bem, o que chamamos “realidade” não costuma ser algo objetivo, palpável e consensual. Faz de conta que alguém na infância teve uma experiência ruim com certo cara. Digamos que, quando adulto, esse mesmo alguém vá trabalhar na área de contratações de uma empresa. Um dia, aparece para ser entrevistado um sujeito muito parecido com aquele certo cara. A tendência do entrevistador será não simpatizar nem um pouco com o candidato, pois projetará nele, de forma injustificada, suas experiências anteriores. É humano que seja assim e, se bobear, o tal cara não vai conseguir o emprego. Trata-se de um exemplo banal, mas, acho, pode ser esclarecedor. Seres humanos, independentemente da faixa etária, têm experiências individuais, processos inconscientes, singularidades, emoções, culturas, crenças, costumes pessoais e tudo isso irá interferir na sua visão do que seja a “realidade”. É pura idealização imaginar que crianças não saibam separar a realidade da ficção e que adultos saibam. Felizmente, as coisas são um pouco mais complicadas que isso.
Você costuma criticar a divisão que se faz entre literatura infantil e infantojuvenil. Quais são as diferenças significativas entre esses subgêneros? Você os vê como subgêneros da literatura?
Certamente alguns livros são capazes de estabelecer maior identificação com crianças ou com jovens do que outros, mas é simplista demais reduzir a literatura a produções dirigidas a determinadas faixas etárias. Tal postura tem a ver com mercados, não com literatura. Daqui a pouco teremos livros de poesia escritos para o mercado de viúvas de 48 anos. As mulheres casadas de 49 anos “naturalmente” deverão ler outro tipo de poesia. Brincadeiras à parte, vejo muita confusão nesse assunto. Em resumo, penso que existem literaturas escritas por especialistas tendo em vista a leitura de especialistas. Estas utilizam recursos muito valorizados em certos meios, como a metaficção; as buscas do estranhamento; a intertextualidade; as experimentações formais; a voz de outsiders; as sobreposições de códigos e os chamados fluxos de consciência, entre outros. Como resultado, temos algumas obras relevantes e muitas obras insignificantes – em geral, por aplicarem os recursos citados de forma mecânica. Todas, porém, com um denominador comum: a feitura especializada tendo em vista o leitor especializado. Muitas vezes, essas obras são chamadas de “adultas”. Ocorre que, talvez 90% dos leitores adultos, independentemente do grau de escolaridade, não são tão especializados, nem estão capacitados para ler tais obras que costumam ter um público acadêmico, de técnicos e especialistas. Ao lado dessa literatura para iniciados, e sempre em resumo, creio que existem outras, bastante heterogêneas, que, da mesma forma, podem resultar em algumas obras boas e muitas ruins. No geral, elas poderiam ser chamadas de populares por duas razões: um: invariavelmente, recorrem a uma linguagem pública, direta e acessível; dois: abordam temas e questões humanas da vida concreta buscando gerar identificação na maioria das pessoas, independentemente de graus de instrução e faixas de idade. Creio que a chamada literatura infantojuvenil está inserida neste vastíssimo e heterogêneo grupo de obras. Por esse viés, ela é muito mais uma literatura popular do que infantil ou juvenil.
Qual o papel dos livros didáticos na difusão da leitura entre crianças?
Infelizmente, a maioria das escolas confunde livros didáticos com livros de ficção e poesia. Em suma, pegam um texto de ficção ou um poema e, de forma utilitária, transformam numa lição objetiva. Ora, a literatura é sempre um discurso marcado pela subjetividade, tende a ser plurissignificativa e implica a leitura sem intermediações. O leitor lê porque quer ler, porque se emociona, se identifica e, ainda, o que é muito importante, porque sente-se livre para construir sua interpretação pessoal. A escola em geral solicita o contrário: ler para receber informações objetivas e assimilá-las. Não tem cabimento interpretar lições de gramática ou de matemática, mas sim estudá-las para aprendê-las. Em outros termos, enquanto nos livros informativos há uma única mensagem a ser compreendida por todos, nos textos literários cada leitor pode e deve criar a sua leitura pessoal. Tento dizer que livros informativos e livros de ficção implicam princípios completamente divergentes e isso precisa ser compreendido por professores e estudantes.
Com a informação cada vez mais resumida e de fácil acesso, ficou mais difícil seduzir as crianças por meio da literatura? Pensa nas novas mídias, de que forma a literatura deve se adaptar a essa nova realidade?
Essas chamadas novas mídias são muito recentes e não consigo me posicionar com clareza diante delas. Veja a questão das redes sociais. Creio que ninguém neste momento pode prever que efeito elas vão ter em nossas vidas. No que diz respeito às novas mídias, minha sensação é a de que, no fundo, estamos principalmente diante de novos suportes e de novos recursos. Entretanto, continuamos seres humanos cheios de sentimentos, dúvidas e contradições. Gosto da frase: “penso, logo, existo, mas quem sou eu?” A ficção e a poesia são formas de lidar com questões assim. Se serão lidas em livro de papel ou não, em princípio, parece ser uma questão menor. O que preocupa não são as novas tecnologias, mas sim sua utilização por gente individualista e consumista, por técnicos acríticos e despolitizados. Infelizmente, muita gente tem saído das escolas e faculdades nesse estado, formados para ser mera massa de manobra da sociedade tecnológica e de consumo. Isso sim assusta. Na década de 1950, Hannah Arendt falava sobre a responsabilidade intransferível de apresentar aos recém-chegados ao mundo o homem e as culturas humanas. Imagine um cara individualista, consumista, despolitizado, com mentalidade meramente técnica, em suma, um analfabeto social, tendo nas mãos poder político ou armas de destruição em massa. É o que mais se vê por aí!
Quais os livros que marcaram sua infância? Há algum em especial que o fez se apaixonar pela literatura?
Lá pelos meus 15 anos, por aí, tive acesso aos contos do poeta suíço Peter Bichsel. Fiquei fascinado e disse para mim mesmo: quero escrever que nem esse cara. Muitos anos depois, por minha insistência, o livro foi publicado no Brasil pela Ática: O homem que não queria saber de nada e outras histórias. Continuo achando um excelente livro e recomendo vivamente.
Por outro lado, quando eu era criança, na década de 1950, foram produzidos, pela gravadora Festa, discos com poetas como Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira e com atores como o grupo Jograis de São Paulo, declamando poemas. Tive acesso a esse material lá pelos meus nove ou dez anos. Até hoje trago na cabeça a voz de Drummond recitando “José”, “Caso do vestido” e “Morte do leiteiro”, além de os Jograis recitando “Carnaval”, de Mário de Andrade, ou o extraordinário poema “Jandira”, de Murilo Mendes. Qual a questão aqui? Eu, criança de dez anos, de fato teria dificuldades para ler aqueles poemas. Mas não tive nenhuma para escutá-los, o que fiz com grande interesse e emoção! Noto que eram poemas para “adultos”.
Você também é ilustrador. Qual o papel das ilustrações nos seus livros? Tem algum receio de que as figuras possam “duelar” com o texto?
Na minha visão, num livro ilustrado de forma adequada, as imagens devem não só dialogar com o texto como, ao mesmo tempo, ampliar as possibilidades significativas desse texto. Neste caso, o todo – o livro em si – resulta em algo maior e mais complexo do que a simples soma de suas partes – texto e imagens – vistas isoladamente. Por essa razão, um livro ilustrado pode ser um objeto interessantíssimo.
Quais são os elementos que você considera importantes em uma história infantil?
Insisto neste ponto: acho que uma história “infantil” não vai interessar nem estabelecer identificação com ninguém. Nem mesmo com crianças. Mas aproveito sua pergunta para tocar em dois outros pontos. Primeiro, sempre escrevo partindo do princípio de que crianças, jovens e adultos têm mil vezes mais pontos em comum do que diferenças. Isso me abre um leque imenso de possibilidades. Em segundo lugar, há a questão da esperança. Creio que as literaturas populares tendem ao final feliz ou, pelo menos, a deixar no leitor uma expectativa positiva diante da vida e do mundo. O niilismo pertence a um modelo cultural mais elitista e intelectualizado e, a meu ver, em geral não passa de narcisismo e pretensão. De qualquer forma, a vida e o mundo são muito maiores, interessantes e inesperados do que nossos próprios umbigos. A vida pode não ter sentido, mas não é proibido dar-lhe algum! Adaptando o que disse o carnavalesco Joãozinho Trinta: “o povo sempre gostou de final feliz; quem gosta de final infeliz, ceticismo e niilismo é intelectual.” Não creio que faça sentido escrever um texto que leve o leitor, independentemente de sua faixa de idade, a um beco sem saída. Todorov, aliás, publicou recentemente um livro onde, entre outros assuntos, trata da disseminação mecânica e acrítica do niilismo (Tzvetan Todorov, autor de A literatura em perigo, Difel, 2009). De qualquer forma, acho curioso que niilistas escrevam livros. Se estiverem falando sério, escrevem para quê? Uma última coisa: ter esperança não significa, nem de longe, ser ingênuo ou deixar de se ter pensamento crítico, ao contrário. Pretender escrever um livro que emocione, faça pensar, traga ideias inesperadas e um sentimento bom e vital, da mesma forma que pretender construir um futuro melhor e mais civilizado, onde haja uma maior solidariedade entre todos os homens e um diálogo melhor entre o homem e a natureza, são exercícios de puro pensamento crítico.
Na literatura de um modo geral se percebe uma clara distinção entre as classes sociais. Há, inclusive, gêneros e autores classificados como elitistas, outros são vistos como mais populares. Essa distinção social também é vista na literatura infantil?
Não há espaço aqui para falar das eventuais associações entre as literaturas e as diferentes classes sociais, assunto muito complicado e mais ainda nos dias de hoje. Mas, olhando bem, se levarmos em conta a existência de um todo abstrato e mais ou menos homogêneo, a “sociedade brasileira”, vamos concluir que ela é profundamente identificada com os modos de vida “subalternos” e “populares”. Isso ocorre mesmo em seus estratos escolarizados, inclusive universitários, e em que pese a influência dos meios de comunicação de massa. Em outras palavras, é perfeitamente possível, além de muito comum, encontrar em nosso país pessoas que, embora tenham “nível superior” – terceiro grau, bons salários, acesso a tecnologias, preparo técnico e especializado –, mantenham hábitos, valores e crenças ligados às culturas populares e seus modelos. Eis porque, acredito, as culturas, as literaturas e as artes populares deveriam ser mais valorizadas e estudadas. Trata-se de uma obviedade e de uma questão de inteligência social.
Você escreve há mais de 30 anos. O que mudou de lá pra cá? As crianças têm hoje mais aceitação pela leitura? A sua forma de escrever mudou, sente isso?
Quando publiquei meu primeiro livro, em 1980, não se falava tanto em educação como se fala hoje. Parece que a sociedade, aos poucos, está percebendo que sem um maior equilíbrio social, o que implica educação melhor para todos, maior acesso às informações, aos bens culturais, às literaturas e às artes, seremos todos prejudicados. Ao que tudo indica, hoje, um número muito maior de crianças está tendo acesso à escola e à leitura. Trata-se, porém, de um processo lento e que precisaria ser acelerado e aprimorado. Todo cidadão deveria estar seriamente empenhado nele. Mas, voltando à sua questão, francamente, não vejo nenhuma diferença essencial entre, por exemplo, a criança e o jovem que eu fui e as crianças e jovens de hoje. Todos, antes e agora, se apaixonam, têm contradições, têm dificuldades nas relações com o outro, confundem a realidade e a fantasia, gostam de conforto, detestam ser mal tratados, têm dúvidas morais, sonham e têm utopias pessoais, são corporais, sexuados, envelhecem e vão morrer. Aliás, como todo mundo, independentemente de faixas de idade. São esses, creio, os assuntos da literatura.
Como você enxerga a literatura infantil brasileira no cenário literário internacional?
Num mundo globalizado, esse “cenário internacional” parece cada vez mais igual e padronizado. Em todo o caso, até onde posso ver, hoje no Brasil se produz uma literatura interessante e significativa que pode ser comparada a qualquer outra.
Qual a dificuldade que as crianças têm na hora de ler?
O contato com adultos leitores, ou seja, o contato com pessoas que saibam diferenciar os diversos tipos de livros ou de discursos – ficção, poesia, ciência, filosofia, tecnologia, informação, etc. – e utilizá-los em benefício próprio, certamente vai fazer com que a criança se torne uma ótima leitora e, melhor que isso, uma pessoa mais sensível, humana e civilizada.
Pensa na responsabilidade que tem ao escrever para pessoas ainda em formação? Isso pesa na hora de criar?
O que posso dizer é que, com o passar do tempo, a gente se torna mais exigente e crítico. Em princípio, ninguém quer ficar repetindo coisas que já fez. Meu desafio tem sido tentar utilizar a experiência que adquiri ao longo dos anos para fazer algo que ainda não fiz. Acho um desafio estimulante, desses que dão sentido à vida.