Entrevista: Humberto Werneck
A arte da conversa
Sucessor da fantástica geração de cronistas mineiros dos anos 1970, Humberto Werneck, que acaba de lançar novo livro de crônicas, faz uma defesa apaixonada desse “gênero que nós não inventamos, mas que aqui se aclimatou e ganhou molejo e cintura”
Felipe Kryminice, Monique Cellarius e Yasmin Taketani
Deve haver algo de especial na água mineira. E não estou falando das famosas cachaças de Minas, mas sim de sua capacidade de produzir bons escritores, em especial os cronistas. No rastro de uma gloriosa história literária, que trouxe ao centro da cena brasileira autores como Paulo Mendes Campos, Otto Lara Resende, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade, Humberto Werneck parece ser um dos mais talentosos e prolíficos sucessores dessa turma que agitou nossa literatura no século passado – da mesma geração ainda constam nomes como Ruy Castro e Zuenir Ventura.
Jornalista do primeiro time da imprensa nacional e biógrafo dos mais competentes, Werneck fez da crônica uma espécie de assinatura. Entusiasta do gênero que consagrou Rubem Braga (ou seria o contrário?), Werneck, há anos, vem travando aquilo que chama de “conversa com o leitor” nas páginas dos jornais – ainda hoje, a despeito da crise do jornalismo impresso –, o altar da crônica no Brasil. “Crônica é aquele momento em que você sente que o autor está sentado no meio fio com você, no mesmo plano, nunca num caixotinho acima, perorando ou dizendo umas coisas solenes, te ensinando uma coisa”, diz o escritor à reportagem do Cândido.
Apesar da certeira definição, Werneck ainda prefere sair com a clássica tirada de Rubem Braga para explicar o gênero: “Se não é aguda, é crônica.” “Uma das coisas mais difíceis que tem é conceituar crônica. Muitos estudiosos já tentaram fazer isso, mas ninguém alcançou grande sucesso. Para mim, a crônica é uma boa conversa.”
Autor da biografia do enigmático Jayme Ovalle, “do qual se sabia três ou quatro coisinhas e que rendeu um livro de 400 páginas”, Werneck acaba de lançar Esse inferno vai acabar, que abre a coleção “Arte da Crônica”, da Arquipélago Editorial, que deve lançar anualmente pelo menos três livros dedicados ao gênero – Nós passaremos em branco, do curitibano Luís Henrique Pellanda acaba de sair e, ainda em 2011, o mineiro Ivan Ângelo também lança sua coletânea de crônicas.
“Dei preferência àquelas crônicas que pudessem talvez constituir, para o leitor, uma conversa boa – pois essa, a conversa boa, quer dizer, a leveza com substância, me parece ser uma característica forte da crônica bem-sucedida”, afirma o autor, que escreve semanalmente no jornal O Estado de S. Paulo e no site Vida Breve.
Como o senhor selecionou as crônicas para seu mais recente livro, Esse inferno vai acabar?
São 44 crônicas, a maioria delas publicadas originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, do qual sou colaborador desde janeiro de 2010, sempre aos domingos, no caderno Metrópole/Cidades. Outras saíram no extinto caderno “Outlook”, do jornal Brasil Econômico, no qual colaborei durante mais de um ano. Quase todas foram publicadas, também, no site Vida Breve, provavelmente o único território na imprensa brasileira dedicado exclusivamente à crônica.
Minha preocupação, na hora de montar o livro, foi selecionar textos cujo interesse não tivesse se esgotado na publicação na imprensa, como frequentemente acontece com a crônica, em geral feita para a circunstância. Dei preferência àquelas que pudessem talvez constituir, para o leitor, uma conversa boa – pois essa, a conversa boa, quer dizer, a leveza com substância, me parece ser uma característica forte da crônica bem-sucedida. Fiquei honradíssimo com o convite para estar, com Luís Henrique Pellanda e Ivan Ângelo, entre os autores escolhidos pelo editor Tito Montenegro, na coleção “Arte da Crônica”. Foi uma excelente ideia criar essa série, porque o brasileiro adora o gênero, que nós não inventamos, mas que aqui se aclimatou e ganhou molejo e cintura.
Qual a importância da crônica na sua formação? O que o senhor leu no colégio e em seus primeiros anos de escritor?
Eu pertenço a uma geração que talvez tenha sido a primeira a ter como texto, nas aulas de português, a crônica – estou falando de meados dos anos 1950, começo dos 1960. Até então, os livros de português traziam autores muito antigos. Você tinha poetas como Raimundo Correia, que estava morto havia décadas, e Graça Aranha, que ninguém mais lia. O autor mais próximo que a gente tinha era Mário de Andrade que, só para ter uma ideia, morreu em 1945, ano de meu nascimento. E aí, em torno de 1960, surgiu no Rio uma editora criada por Fernando Sabino e por Rubem Braga. Eles criaram a Editora do Autor, que pôs na praça uma série de bons cronistas, a começar por eles mesmos. Gente como Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes, Paulo Mendes Campos, Rachel de Queiroz e Manuel Bandeira.
Então, alguns professores mais jovens e mais atentos ao que deveria ser o bom ensino da língua, começaram a soltar esses autores para a gente – foi uma festa.
E hoje, como anda a crônica no Brasil?
A crônica perdeu bastante espaço ao longo dos anos. Sem desmerecer outros gêneros, o que a gente tem muito hoje é coluna, e que, às vezes, nessas colunas, o que aparece como crônica são artigos, editoriais. Por exemplo: o Arnaldo Jabor faz uns comentários em cima da realidade ou faz os seus delírios no jornal. Mas aquilo, a rigor, não é crônica. Não no sentido que tinha a crônica na época de ouro do Rubem Braga, do Paulo Mendes Campos, do Fernando Sabino, do Antonio Maria, em que a crônica tinha um caráter mais de conversa com o leitor, uma coisa amigável, amistosa, parecia que o cara estava sentado com você no meio fio, conversando. O que a gente vê muito hoje é análise. Enfim, a crônica literária – que é aquela que mais me interessa – não tem tido muito espaço. Fernando Sabino dizia que os veículos de comunicação passaram a dar espaço cada vez mais reduzido à expressividade, valorizando a comunicação, a informação, a notícia. Então, desapareceu um pouco essa coisa um tanto “gratuita” que era a crônica. Porque a boa crônica, na minha maneira de ver, é algo que vai na contramão do conteúdo do jornal e da revista – no sentido de que é algo com uma carga subjetiva grande, enquanto o noticiário todo tem que ser objetivo.
O senhor falou que hoje se publica muito texto analítico travestido de crônica. Mas o senhor conseguiria definir o que é crônica – e àquilo que caracteriza uma boa crônica?
Uma das coisas mais difíceis que tem é conceituar crônica. Uma vez, perguntaram para Rubem Braga: “Mas afinal, o que é crônica?” Essa pergunta foi feita para o maior cronista brasileiro de todos os tempos. E ele respondeu: “Olha, se não é aguda, é crônica.” Muitos estudiosos já tentaram fazer isso, mas ninguém alcançou grande sucesso nessa tentativa de conceituação. Para mim, a crônica é uma boa conversa. É aquele momento em que você sente que o autor está sentado no meio fio com você, no mesmo plano, e não num caixotinho acima perorando ou dizendo umas coisas solenes, te ensinando. A boa crônica não tem solenidade, tem leveza, não tem preocupação de aprofundar assuntos, fazer análises. Nessa leveza, a crônica levanta coisas na sua imaginação, na sua inteligência, na sua sensibilidade. Você carrega a crônica com você por aí afora.
A crônica, desde sempre, esteve associada à urgência do jornalismo diário, não?
Algumas das melhores coisas da literatura brasileira no século XX foram escritas por cronistas nessa peleja de cumprir prazo. Eu não acredito no cronista que resolve: “Ah, vou sentar e escrever uma crônica.” Não tem isso. O cronista mesmo, o cronista de ofício, é um cara sempre apertado pelo prazo e pelos limites que são dados a ele no veículo para o qual escreve.
Algumas das melhores crônicas de Rubem Braga – quem diz isso é Manuel Bandeira –, foram escritas quando ele não tinha assunto nenhum. Nenhum!
O senhor se lembra dos primeiros passos que deu como escritor?
Aos 25 anos, eu tirei da gráfica um livro de contos. Eu tive um padrinho literário, uma figura importantíssima na minha vida, que é um grande escritor chamado Murilo Rubião. Esse escritor dirigia a Imprensa Oficial de Minas e queria que eu estreasse. Ele me fez montar um livro com meus contos e quando o livro entrou na gráfica, saiu da minha mão, eu senti uma perda de controle sobre aquilo. E, ao mesmo tempo, descobri que eu não era nem um milésimo daquilo que ambicionava ser quando jovem – quando se é muito jovem você quer ser Tolstói, você quer ser Shakespeare. Quando eu vi que não era nem uma sombra remota disso aí, falei: “Então, eu não quero ser Humberto Werneck”. Tirei o livro da gráfica, botei no meu armário e pensei: “Vou esquecer essa merda.” Mas aquela lembrança, aquele esqueleto no armário, ficou me incomodando. Bom, quando completei 60 anos, o que eu fiz? Peguei esses contos, corrigi umas coisinhas neles e fiz um livrinho pago do meu bolso. Você tem que completar o gesto. Acho que a minha missão é escrever, sem nenhuma apoteose mental, sem nenhum Tolstói, sem nada, sabe? Mas existe uma ordem universal na qual a pessoa precisa se encaixar: Relojoeiro conserta relógio, sapateiro conserta sapato, o mecânico conserta os carros, o escritor escreve. Ou seja, o mundo não perde nada se eu não escrever, mas eu perco tudo.
Quando o senhor vai escrever, pensa no leitor e no alcance do texto?
Não. Eu não penso no leitor. Ou, por outra: Eu não consigo imaginar o leitor, nunca consegui. O leitor é uma entidade muito abstrata. Há milhões de leitores potenciais. Procuro escrever uma coisa que eu goste de ler. E nunca tive reclamações, sabe? Procuro esticar a minha corda o máximo possível para melhorar o texto, para chegar mais perto daquilo que quero dizer. Se eu buscar escrever uma coisa que gostaria de ler, muito provavelmente alguém mais gostará. Porque também é estranho, o jornalista às vezes se mete numa empreitada de imaginar um leitor e escreve para uma entidade. Você sempre subestima o leitor. Nos jornais e revistas, o que tenho visto é isso: Uma subestimação do leitor. Eu procuro ser claro quando jornalista e ser pouco jornalista quando escrevo crônica.
O senhor também é biógrafo. Já escreveu sobre Chico Buarque e Jayme Ovalle, dois personagens bastante distintos. Como definiria o trabalho de um biógrafo?
O trabalho de um biógrafo é o trabalho de um perfilador, de um jornalista. João Cabral de Melo Neto falou, em uma entrevista, que escrever é “dar a ver com palavras”. Ou seja, é você catar a coisa e botar na frente de quem quiser ler. No caso do Chico, eu tinha um desafio específico de falar de uma pessoa que supostamente é totalmente conhecida. Como é que você encontra alguma face nova, algum lado diferente de um cara que já foi explorado à exaustão, por tudo quanto é mídia? O desafio é tremendo. E existe também o desafio de você pegar uma pessoa desconhecida, de quem não se sabe nada e botar aquilo na frente do leitor. Eu tive uma aventura nesse departamento que me custou 17 anos de trabalho: a biografia de Jayme Ovalle, que é um super personagem, do qual se sabia três ou quatro coisinhas, e deu um livro de 400 páginas.
Como é lidar com tantos detalhes e informações e transformar isso em um texto fluido e agradável?
Tem um grande e famoso arquiteto chamado Mies van der Rohe, alemão que fez carreira nos Estados Unidos, que dizia: “Deus está nos detalhes.” Eu não acredito em Deus, mas acredito nos detalhes. Eu acho que é muito difícil você construir um todo se você não montou aquilo com as partezinhas. Eu me sinto, muitas vezes, como esses caras que catam pedaços de avião que explodiu ou de navio que afundou, e tentam remontar o que havia antes.
No caso do Jayme Ovalle, era até diferente porque eu não sabia se era um avião, se era um navio, se era isso, se era aquilo, que bicho ia dar com os pedaços que eu achei.
Escrever, para o senhor, é como estabelecer uma conversa – consigo mesmo ou com o leitor?
Sim. Mas nem sempre eu tenho uma ideia lá no começo, algo como “vou falar disso aqui”. A crônica, para mim, acaba sendo um pouco o seguinte: É como se houvesse uma ponta de um fio saindo de alguma coisa e eu não sei bem o que é. Você vai puxar esse fio para saber o que é que vem. Isso é diferente de você sentar para demonstrar uma tese – às vezes, a crônica é isso, você sentar e contar uma história que já está na sua cabeça. Mas já me aconteceu muito de estar contando uma história que é muito factual e entra uma lente ficcional que dá uma distorcida. Você muda aquilo e não tem a menor obrigação de ser jornalista naquela hora, de ser fiel aos fatos. Não sou nenhum Rubem Braga, mas algumas das melhores crônicas que fiz, no sentido de eu olhar para ela e falar “você está legal, crônica”, foram crônicas em que não sabia bem o que ia dizer, em princípio. Acho que a crônica, mais do que qualquer outro texto, tem que ser uma coisa tão costuradinha, tão amarradinha, que o leitor não consegue sair.
Isso vai ficando mais fácil com o tempo?
Vai ficando cada dia mais difícil. Escrever é uma coisa cada dia mais difícil. Porque o seu padrão de exigência vai aumentando – a não ser que você seja uma pessoa relaxada, a não ser que você queira se repetir. Mas se você não quer se repetir e quer manter um tônus literário, é um desafio cada vez maior. Falamos aqui do Chico Buarque – é a mesma coisa com ele. No começo da carreira, ele tinha material para fazer dois discos. Aí fazia um, soltava o outro. Hoje, não. Conversa com o Verissimo, que é um cara que escreve muito – a cada dia é mais dificuldade. Porque você vai falando tudo e, de repente, sei lá, ainda tem assunto?
Falando da sua reunião de crônicas, Boa companhia, lançada em 2005. Há textos, por exemplo, do Bandeira, que é de uma escola nordestina; do Verissimo, que é de Porto Alegre; do Machado de Assis, que escrevia dois séculos atrás. Qual é o ponto de convergência entre entre autores tão diferentes?
A capacidade de permanentemente ou eventualmente, levar uma boa conversa envolvente para o leitor. Está aí o Jabor, nesse meu livro. Eu não acho que o Jabor seja um cronista, mas, da massa de coisas que ele escreve, de repente tinha um texto com cara de crônica. Eu sou incapaz, qualquer pessoa é incapaz de defender isso rigorosamente, cientificamente – isso é uma crônica por isso, por isso e por isso. Assim como, quem é que pode defender e dizer “isso é um conto ou não é um conto?” O Mário de Andrade já dizia: “conto é tudo aquilo que chamamos de conto.” Enfim, eu acho que são momentos em que aqueles autores foram capazes de sentar no meio fio e dizer coisas de uma maneira leve, de uma maneira substanciosa.