Entrevista | Henryk Siewierski

Uma nação à procura de leitores

Marcada pela história de dominação e guerras vivida pelo país ao longo dos séculos, a literatura polonesa produziu autores e obras instigantes, que ainda são pouco conhecidos no Brasil

Luiz Rebinski


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Mesmo com uma história pautada por invasões de vizinhos com ímpeto colonialista (como a Rússia), a Polônia produziu uma literatura pungente e instigante desde a fundação do seu Estado, há mil anos. De Bruno Schulz (por vezes comparado a Kafka) a Czeslaw Milosz (poeta e um dos cinco Prêmio Nobel do país), de Witold Gombrowicz (grande artífice da linguagem) a Stanislaw Lem (nome mundial do romance de ficção científica), o país tem uma história literária tão rica quanto a de outras nações europeias, como Alemanha e Inglaterra. Ainda assim, autores poloneses nunca foram muito cultuados no Brasil. Mesmo o país tendo uma colônia de descendentes de imigrantes gigantesca, grande parte dela estabelecida no Paraná.

Autor do livro História da literatura polonesa (2000), Henryk Siewierski fala a seguir sobre a tradição literária da Polônia e a difusão desses autores no Brasil. Professor da Universidade Jaguielônica de Cracóvia e da Universidade de Lisboa até a metade dos anos 1980, Siewierski chegou ao país em 1986, a convite da Fundação Nacional Pró-Memória, de Brasília, para trabalhar em um projeto relacionado às comunidades eslavas do Sul. 

O plano era ficar dois anos, mas, passadas três décadas, segue no país. Atualmente ele é professor do Departamento de Teoria Literária e Literaturas da Universidade de Brasília (UnB), além de tradutor de autores como Bruno Schulz e Andrzej Szczypiorski. “No último quarto do século, depois de colapso do comunismo e da recuperação da independência e da democracia, a literatura polonesa entrou numa fase mais normal, mais livre dos compromissos sociais e políticos”, diz Siewierski. Ele também comenta, entre outros assuntos, sobre a literatura polonesa contemporânea, que conta com nomes mundiais como Dorota Maslowska e Tomek Tryzna, ambos já traduzidos no Brasil.

Witold Gombrowicz, Bruno Schulz, Czesław Miłosz, Henryk Sienkiewicz e Wisława Szymborska são os autores poloneses mais conhecidos no Brasil. Esses escritores representam bem o que é a literatura polonesa? Quais autores, além desses, o senhor acha que os leitores brasileiros mereciam conhecer? 

Sim, é uma boa seleção nacional, mas daria para completar ou colocar no banco de reserva pelo menos alguns outros escritores também traduzidos no Brasil, como Stanisław Lem, Bolesław Prus, Ryszard Kapuściński, Sławomir Mrożek ou Andrzej Szczypiorski. Foram também traduzidos e publicados em revistas ou coletâneas alguns poemas de Jan Kochanowski, Adam Mickiewicz, Cyprian Norwid, Zbigniew Herbert, Tadeusz Różewicz, Aleksander Wat, Adam Zagajewski. Estes mereceriam bem mais traduções. Agora, se tiver que escolher alguns nomes aqui ainda desconhecidos, que mereceriam ser traduzidos, a escolha não seria fácil. Talvez começaria por Eliza Orzeszkowa, Władysław Reymont, Zofia Nałkowska, Stanisław Ignacy Witkiewicz, Bogdan Myśliwski, Miron Białoszewski...

A literatura de um país é composta por diferentes vozes, em qualquer lugar do mundo. Mas o senhor conseguiria conseguiria descrever características que unam os escritores poloneses e que possam ser identificadas como próprias da literatura do país?

Há uma grande diversidade de vozes, de caracteres, de estilos, como em cada literatura nacional, e eu preferiria não procurar um ou outro denominador comum ou características unificadoras da literatura polonesa. 

Tomando por base a literatura de Witold Gombrowicz (o seu Ferdydurke fez algum sucesso no Brasil), trata-se de uma prosa bastante afeita a experimentos de linguagem. Os autores poloneses do entre-guerras tinham uma predileção pela experimentação? 

Sim, tinham, como os três maiores daquela época, ou seja, Witold Gombrowicz, Bruno Schulz e Stanisław Witkiewicz. E havia também um forte grupo de poetas de vanguarda de Cracóvia, enquanto os de Varsóvia cultivaram a poesia mais tradicional. Alguns desses últimos passaram pelo Brasil como refugiados nos tempos da Segunda Guerra Mundial, entre eles Julian Tuwim, que em um longo poema digressivo, “Flores polonesas”, deixou belas descrições do Rio de Janeiro. 
  Reprodução
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O romancista Witold Gombrowicz, o pintor Józef Jarema, o poeta Czeslaw Milosz e o tradutor Alastair Hamilton, em foto de 1967.

No livro que o senhor traduziu para a editora Cosac Naify contendo a ficção de Bruno Schulz (Ficção completa), Czeslaw Milosz, no prefácio da edição, escreve que “não é fácil fazer de Schulz um escritor internacional”. De um modo geral, os escritores poloneses e suas obras têm apelo para se internacionalizar? Ou seja, é uma literatura que se abre para o mundo ou são autores realmente mais herméticos, na forma e no conteúdo?

Muitas vezes são as obras muito difíceis de serem traduzidas que melhor representam as literaturas nacionais no cenário internacional. É o caso da prosa de Bruno Schulz. Czesław Miłosz tem toda a razão quando fala sobre a dificuldade de “fazer de Schulz um escritor internacional”. Por que então ele se tornou um dos mais traduzidos autores poloneses? Eu diria que antes de tudo é a própria obra, seu valor literário, que a fazem internacionalmente conhecida a longo prazo. Porque o sucesso a curto prazo ainda não diz muito sobre o valor e a dimensão da obra. O valor literário depende, em grade parte, da criatividade no nível da linguagem. Assim surgem as obras impossíveis de serem concebidas em outras línguas, e também impossíveis ou quase impossíveis de traduzir. São elas que mais desafiam os tradutores.

A poeta Wisława Szymborska fez sucesso recentemente no Brasil. O senhor já havia traduzido, nos anos 1990, uma coletânea de poetas poloneses (Quatro poetas poloneses) em que o trabalho de Szymborska era mostrado. Por que só agora ela ganhou atenção no país? A que o senhor credita esse sucesso? 

Como acontece em grande parte da literatura estrangeira publicada no Brasil, geralmente os editores só se interessam em investir depois do sucesso internacional. Neste caso o Prêmio Nobel foi decisivo. Também uma relativa facilidade de tradução dessa poesia, que aposta na simplicidade, na linguagem coloquial. Mas a simplicidade e a facilidade podem enganar, porque a poesia de Szymborska não deixa de ser sofisticada, tanto no nível da linguagem, como das ideias e de suas relações intertextuais.

Que impacto as invasões da Rússia e da Alemanha e, mais tarde, a anexação ao bloco soviético tiveram na literatura da Polônia? Esses fatos estão bastante presentes na ficção dos autores poloneses? 

Desde o final do século XVIII a Polônia teve que enfrentar os apetites imperiais insaciáveis dos seus vizinhos. Se fosse só de um, até seria possível se defender, mas com três (Rússia, Prússia e Império Austro-Húngaro) não dava, e o país, por mais de 120 anos, tornou-se praticamente uma colônia dos três. Depois, a experiência das crueldades do nazismo alemão e do comunismo soviético sensibilizaram a literatura e a cultura polonesa ainda mais em relação ao valor que tem a liberdade, a democracia, assim como a religiosidade, sempre muito forte nessa cultura desde a sua adesão ao cristianismo e a fundação do Estado no século X. 

O povo polonês é sempre identificado por uma certa melancolia, própria de sua personalidade. Esse traço é relevante na literatura dos autores do país? 

É interessante esta sua observação. É um daqueles estereótipos que, por exemplo, faz identificar o povo brasileiro com a alegria, a paixão pelo futebol e pelo carnaval. Obviamente, seria fácil encontrar exemplos da melancolia na literatura ou na música polonesa, mas ela é apenas um dos componentes da sua identidade e talvez não o mais relevante.

E a literatura polonesa contemporânea, o senhor acompanha? Consegue defini-la? Que tipo de literatura os jovens poetas e prosadores do país estão produzindo? Aliás, quem são esses autores?

No último quarto do século, depois de colapso do comunismo e da recuperação da independência e da democracia, a literatura polonesa entrou numa fase mais normal, mais livre dos compromissos sociais e políticos que assumia nos quase dois últimos séculos da sua história em que a participação da luta pela independência e até pela sobrevivência nacional era o seu grande dever e desafio. Não foi um dever único, mas era o que predominava e marcava a literatura e a cultura daqueles tempos sombrios, nas épocas do romantismo, positivismo (realismo) e do modernismo. Depois de 1989, as correntes do pós-modernismo encorajam e incentivam os escritores a explorar os temas e os territórios antes marginalizados (como o das minorias e marginalidades), as outras culturas, investir na criação da literatura não mimética, que convida os leitores a entrarem nos “países da literatura”, imaginários e fantásticos. Os nomes são muitos, mas para não exagerar com as recomendações, citaria apenas alguns. Dois já tem romances traduzidos no Brasil: Dorota Masłowska e Tomek Tryzna. Os outros, são Olga Tokarczuk, Andrzej Stasiuk e Jerzy Pilch, que ainda aguardam tradutores e editores.
Divulgação
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A jovem Dorota Maslowska, nascida em 1983, é autora do best-seller Branco neve, vermelho Rússia, que já foi traduzido para mais de 15 idiomas, incluindo o português. A obra foi adaptada para o teatro e recebeu o prêmio Paszport, da revista Polityka.

Na Polônia há programas de apoio à tradução da literatura do país, visando difundir essa produção no exterior? 

Sim, o Instituto do Livro (Instytut Książki), órgão do governo da Polônia, tem um programa de apoio às traduções da literatura polonesa de que já se beneficiaram várias editoras brasileiras. Ano passado, o Instituto promoveu algumas ações visando a formação dos tradutores da literatura polonesa no Brasil, como o concurso de tradução e, em parceria com o curso de polonês da Universidade Federal do Paraná (UFPR), um curso intensivo para tradutores. 

O Brasil tem uma colônia grande de descendentes de poloneses, a maioria estabelecida no Sul. Mas, ainda assim, parece que os autores poloneses nunca fizeram muito sucesso no Brasil. Por que isso acontece? 

Houve um tempo em que os imigrantes e seus descendentes podiam ler a literatura polonesa no original, tanto os livros vindos da Polônia quanto as obras publicadas aqui, sobretudo em muitas revistas polonesas. Mas com o decreto do presidente Getúlio Vargas, de 1939, que extingue o ensino das línguas e as atividades culturais dos imigrantes, não só dos poloneses, e com um processo de assimilação e inserção na vida cultural brasileira, os descendentes dos imigrantes cada vez mais dependem das traduções. E posso dizer, conhecendo muitos deles, que esse interesse pelas traduções da literatura polonesa existe.

Também vemos poucos descendentes de poloneses publicando no Brasil. Aqui em Curitiba tivemos Paulo Leminski, mas não muitos outros. O senhor conhece outros nomes? Por que esse número reduzido?

De fato, não chovem escritores de origem polonesa no Brasil, mas com Paulo Leminski e Samuel Rawet, já não está tão mal. Existem também numerosas obras de testemunho escritos pelos imigrantes e seus descendentes, publicados aqui ou na Polônia, pouco conhecidas pelo público brasileiro.